25 Abril 2025
Para reformar o governo da Cúria Romana, o Papa Francisco desenterrou uma distinção medieval entre poder de ordem e poder de jurisdição: superada pelo Concílio Vaticano II e sua adoção da teologia dos tria munera dos bispos, essa quinquilharia jurídica permitiu que ele confiasse até mesmo às mulheres funções e poderes na Cúria Romana, dizendo para si e para os outros que isso permitia que o papa delegasse a quem quisesse o desempenho de funções nas quais os poderes supremos do pontífice romano são devolvidos a figuras que não precisam estar revestidas da graça do episcopado
O artigo é de Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha, publicado por Adista, de 21-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Houve dois Franciscos no plano temporal. Um primeiro pontificado durou de março de 2013 até o final de dezembro de 2022, quando o Papa Ratzinger morreu. O outro é o que ocupou os últimos anos de seu pontificado e de sua vida. O que se encerrou é um pontificado “dividido” em dois em muitos planos: tanto que, em vez de aplicar de forma enviesada a fórmula dos “dois papas” para a convivência entre o Papa Bergoglio e o Papa Ratzinger, aquela fórmula poderia ser usada com muito mais pertinência para os dois Franciscos que se evidenciaram em vários níveis e que desenharam aos pares dois pontificados muito diferentes entre si, cuja ação produziu uma profunda solidão, institucional e pessoal, vivida pelo pontífice jesuíta com uma coragem de herói de guerra e com consequências para a Igreja que não são fáceis de inventariar e recuperar. Houve dois Franciscos no plano temporal. O primeiro pontificado de Francisco durou de março de 2013 até o final de dezembro de 2022, quando morreu o Papa Ratzinger. O outro, aquele que ocupou os últimos anos de seu pontificado e de sua vida.
a) Na primeira parte de seu pontificado, Francisco incidiu de forma muito enérgica sobre o protocolo, o cerimonial, a disciplina, a práxis: mas com uma cautela invisível, quase como se, olhando para seu antecessor, o Papa Bergoglio percebesse uma linha a não ser ultrapassada. Bento XVI nunca deu qualquer sinal, direta ou indiretamente, de apoiar o boicote antibergogliano de algum segmento ultraconservador da igreja: mas, para o Papa Francisco praticamente estabeleceu através dele uma linha que não deveria cruzar, mesmo quando sua opinião era diferente ou se presumia ser diferente.
Veja-se o caso da ordenação de homens casados como presbíteros, que todos esperavam após o sínodo sobre a Amazônia e que Bergoglio não concedeu, simplesmente porque nunca leu na admissão disposta por uma lei ratzingeriana sobre padres casados na Igreja, desde que anglicanos, a quebra de um tabu que o papa argentino acreditava vigente.
b) No segundo segmento de seu pontificado, Francisco foi muito mais solto e realizou escolhas muito mais pessoais sem se preocupar com os chamados contra: incluindo a nomeação do teólogo “Tucho” Fernandes como prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé e sua súbita nomeação a cardeal; a esse cardeal (que ocupou o lugar que antes foi do cardeal Ratzinger) devemos atos muito distantes entre si, como as normas para a bênção do amor entre pessoas do mesmo sexo ou a reiterada condenação à “teoria do gênero”, imaginada como unitária, sem entender que uma dessas teorias opera na soteriologia cristã, se o corpo masculino do Verbo encarnado que morreu e ressuscitou salva todo homem e toda mulher.
Essa sucessão fez com que, enquanto na primeira parte apenas um pequeno arquipélago de ultraconservadorismo excitado agrediu nada menos que a ortodoxia do papa, despertando hilaridade e compadecimento, na segunda parte cresceu o número de bispos que, na mais plena devoção e obediência, não conseguiram mais entender o rumo de Francisco.
Ao mesmo tempo, o Papa Bergoglio se apresentou aos fiéis e à opinião pública sob duas vestes de desigual visibilidade e legibilidade.
a) Houve, de fato, um Francisco do púlpito: homem de um absoluto frescor evangélico; todos perceberam algo de eloquente no seu modo de pregar, na credibilidade dos seus gestos, na radicalidade da sua renúncia ao cerimonial da monarquia papal, e muitos se encantaram e muitos se comoveram, porque uma Igreja que tantas vezes pareceu madrasta assumia um rosto materno e fraterno.
b) Completamente diferente o Francisco do trono, aquele que governou com uma verticalidade que não se via há mais de um século: um pastor da Igreja universal que usa a jurisdição que o direito canônico lhe concede até nos níveis mais ínfimos, apropria-se de tarefas da cúria, escolhe os bispos das grandes e pequenas dioceses, não raro até os auxiliares, causando não só surpresa, mas às vezes até irritação e perplexidades. Quase todos os colaboradores mais diretos tiveram que suportar decisões tomadas sem sequer informá-los, e retroceder com base em disposições que mais de uma vez foram tomadas sem uma fase de instrução completa ou satisfatória. Se isso se deveu a uma cultura política peronista ou ao costume do superior jesuíta que escuta a todos e decide por si só, é uma questão que não é tão fácil de desvendar: mas isso significou que, embora Francisco tenha promovido pessoas de calibre nem sempre excelente a cargos de altíssima responsabilidade, no final ele não teve o reconhecimento de ninguém.
Por último, mas não menos importante, a distância entre o papel de pontífice romano e de soberano da Cidade do Vaticano deve ser enfatizada.
a) Para reformar o governo da Cúria Romana, o Papa Francisco desenterrou uma distinção medieval entre poder de ordem e poder de jurisdição: superada pelo Concílio Vaticano II e sua adoção da teologia dos tria munera dos bispos, essa quinquilharia jurídica permitiu que ele confiasse até mesmo às mulheres funções e poderes na Cúria Romana, dizendo para si e para os outros que isso permitia que o papa delegasse a quem quisesse o desempenho de funções nas quais os poderes supremos do pontífice romano são devolvidos a figuras que não precisam estar revestidas da graça do episcopado (apesar das afirmações do Vaticano II).
b) Por outro lado, em uma revisão da constituição da Cidade do Vaticano, ele inseriu uma frase que faz com que as funções de chefe de estado e o exercício do poder executivo, legislativo e judicial, que tradicionalmente pertencem ao papa rei, remontem ao munus petrinum (ou seja, a autoridade conferida a Pedro). Essa tese nunca foi defendida por nenhum de seus antecessores; assim como nenhum dos papas que reinaram após o fim do poder temporal em 1870 e após a estipulação da Concordata jamais fez realmente uso da verdadeira soberania sobre a Cidade do Vaticano para governar e punir seus súditos, como ao contrário aconteceu com Francisco. Pois, se o “processo” contra o mordomo infiel de Bento XVI e os jornalistas que compravam documentos dele tinha, apesar de sua falta de jeito, um caráter totalmente simbólico e terminou com absolvições e perdões que revelavam a natureza de um processo de fachada, Francisco enviou um núncio e até mesmo um cardeal diante de seu tribunal, fornecendo à acusação as medidas necessárias para evitar que o procedimento encalhasse e deixando que uma condenação fosse imposta em seu nome contra seu antigo substituto.
Nessa soldagem entre uma restauração de um poder temporal liliputiano em dimensões, mas verdadeiro em sua eficácia, e uma concentração não apenas de decisões, mas do processo de preparação das decisões na pessoa do pontífice, criou-se a sensação de que o papa percebido por grande parte da opinião pública por sua ênfase na misericórdia como um critério teológico-pastoral tenha sido ad intra o papa da mão de ferro.
É previsível que esses problemas venham a ser objeto de discussões aprofundadas no Colégio Cardinalício e que, entre eles se perguntem como “salvar” da tendência oscilatória ideal que frequentemente marca a sucessão do bispo de Roma aquelas pérolas sem ambiguidade do pontificado bergogliano - a práxis da misericórdia, a doutrina da fraternidade universal, a condenação moral da posse de armas atômicas, a exigência da pobreza cristã - que constituem uma herança que pode ser comprometida pela necessidade de resolver as outras ambiguidades, mas que identifica um núcleo reformador de que a Igreja Católica precisa na transição da longa temporada dominada pela agenda e por uma cultura euro-americana, agora desfeita pelo deslizamento para democracias pós-democráticas e liberalismos pós-capitalistas, para uma agenda e cultura afro-asiática cujos contornos ideológicos ou políticos ninguém ainda vê, mas que certamente não serão indolores para ninguém.