03 Abril 2023
A idade veio para lembrar a todos – inclusive ao papa – que o imprevisível também pode ocorrer na liberdade interior e canônica.
O comentário é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha. O artigo foi publicado por La Repubblica, 31-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A internação de Francisco no Policlínico Gemelli, que começou na quinta-feira à tarde, suscita dois níveis de preocupação. Por um lado, abriu-se naquele dia à noite um vislumbre sobre a comitiva do papa: não foi um médico, mas sim um enfermeiro quem sugeriu a internação no Gemelli; e ali foi concebida a ideia de encobrir com a mentira de uma “internação programada” uma pneumonia que vem respondendo aos tratamentos.
Nada comparável às misérias do arquiatro pontifício de Pio XII, que vendeu as fotos do papa moribundo ou as acrobáticas descrições de Navarro-Valls (que em 2005 falava de um papa muito doente que havia comido “um iogurte e sete biscoitos”): mas o sinal de uma ingenuidade muito pouco tranquilizadora.
Por outro lado, também preocupa o fantasma de 2005: o único ano em que João Paulo II não pôde presidir o tríduo pascal (ele teria morrido no sábado in albis). É isso que está levando os médicos a tentarem curar Francisco às pressas, para que ele possa celebrar ou pelo menos rezar o Ângelus: mas a ausência de Francisco na Semana Santa aumentaria os discursos sobre a renúncia do papa, em relação aos quais a crise cardiorrespiratória da quinta-feira marcou uma mudança de ritmo.
O Papa Bergoglio jogou várias vezes com sua renúncia nas inúmeras entrevistas a jornais, revistas, rádio e TV nos últimos anos: nessas conversas, que criaram uma nova tipologia de magistério – o “magistério líquido” –, Francisco muitas vezes sondou, ajustou, corrigiu, enunciou, evitou temas e problemas.
Ele falou sobre a duração do pontificado (“breve”, profetizou a Spadaro há nada menos do que 10 anos) e sobre as razões de sua possível renúncia (“governa-se com a cabeça, e não com o joelho”, disse recentemente): e brincou de gato e rato com os jornalistas.
Ele confidenciou a alguns deles que havia entregado ao secretário de Estado, Bertone, uma carta de renúncia em caso de haver um impedimento médico: um ato que não tem nenhum valor, porque o próprio Colégio Cardinalício tem o dever de providenciar um bispo a Roma quando a primeira sé fica vacante (por morte, por renúncia ou por incapacidade de se comunicar pelo menos “por carta” com os fiéis).
A outros, ele explicou que está com saúde, embora saiba que pode morrer no dia seguinte: algo verdadeiramente evidente. A outros, repetiu que, se se sentisse incapaz de decidir (ou se alguém “gritasse” isso a ele), ele renunciaria; mas a outros confidenciou ainda o temor de que sua eventual renúncia crie uma práxis e condicione o sucessor: promessas e temores sem razão de ser, porque a renúncia do papa só deve ser livre e não pode ser nem acolhida, nem procurada, nem rejeitada por quem quer que seja.
Além disso, a idade veio para lembrar a todos – inclusive ao papa – que o imprevisível também pode ocorrer naquela liberdade interior e canônica.
Francisco é um homem acostumado a decidir tudo sozinho, mesmo quando importava muito pouco, e continuou a fazer isso também no exercício do ministério de comunhão entre bispos e de unidade entre Igrejas: ele terá de decidir sozinho o peso a dar a essa prova que não poderá deixar de lhe recordar as palavras do Ressuscitado a Pedro: “Quando eras jovem, cingias-te a ti mesmo e ias para onde querias; quando, porém, fores velho, estenderás as mãos, e um outro te cingirá e te levará para onde não queres. [...] Quando acabou de falar, disse-lhe: ‘Segue-me’”.
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Todas as dúvidas de Francisco. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU