25 Abril 2025
"O seu semblante no domingo de Páscoa era o de um pastor mártir, tal como os antigos pastores, que selavam com a própria vida o cuidado do rebanho. As palavras de agradecimento ao seu enfermeiro pessoal foram sinceras e cheias de sentido. A gratidão pela última ida à Praça e seu último passeio no meio do povo eram o que faltava para viver a sua Páscoa. Nesse gesto derradeiro de encontro com o povo a essência de sua missão: um amor concreto e palpável pela humanidade que ele pastoreou. Sua Páscoa pessoal se completa no abraço derradeiro à sua comunidade. Dos braços do povo para os braços do Criador", escreve Marcus Tullius, mestre em Comunicação e coordenador de comunicação da Cáritas América Latina e Caribe. Atuou como coordenador da Pascom Brasil entre 2018 e 2024 e integra o Grupo de Reflexão sobre Comunicação (Grecom) da CNBB. Apresenta o programa Igreja Sinodal em emissoras de inspiração católica.
Franciscus. O desejo expresso em seu testamento é a forma como ele deseja ser lembrado: “O túmulo deve ser no chão; simples, sem decoração especial e com uma única inscrição: Franciscus”. Essa escolha contrasta fortemente com nossa cultura, que, para fazer memória e marcar o espaço-tempo, recorre a monumentos, símbolos, placas e que, nas lápides, encontramos o nome completo, com data de nascimento e morte, alguma citação marcante, muitas vezes de origem duvidosa. Francisco escolheu uma única inscrição. E ele tem razão. Todo o resto é acessório. Talvez essa escolha radical nos questione sobre a própria natureza da memória. Ser lembrado por um nome, não seria a forma mais pura de perpetuar uma essência, livre das camadas de interpretação e dos adornos da história?
Esse é o nome que ele escolheu para se apresentar diante de Deus. Não precisará de nenhuma alcunha ou complemento, nem de nenhuma carta de recomendação ou currículo. Não terá que comprovar experiência laboral. Será conhecido e reconhecido por ser Francisco. E nada mais. Despojar-se para permanecer a identidade. Ser reconhecido pela pura ressonância do nome, sem os títulos que o mundo lhe conferiu.
O lugar do seu descanso terreno ficará no chão, pois teve os seus pés fincados no concreto da vida e nos ensinou que, para ser pastor de verdade, não se pode afastar da realidade. É o “pastor com cheiro de ovelhas”. Será simples e sem decoração especial, como ele, que continuou usando o mesmo sapato, o seu anel de bispo e a batina branca, por vezes com as mangas rotas. Não buscar erguer-se sequer na morte para subverter a lógica de ascensão e o desejo de poder.
Li, especialmente nos últimos dias, muitos títulos dados a Francisco: o misericordioso, o de todos, o da paz, o da esperança e tantos outros. Concordo com todos eles. Estas são apenas facetas de um homem poliédrico; por isso, bastará Francisco. Não precisaremos mais distinguir Francisco de Assis e de Roma, como muitas vezes fizemos em alusão ao santo que o inspirou na escolha do nome. Não precisaremos fazer distinção, tampouco justificar, pois ele mostrou no corpo e no coração, nos gestos e nas palavras, que ele é Francisco.
O seu semblante no domingo de Páscoa era o de um pastor mártir, tal como os antigos pastores, que selavam com a própria vida o cuidado do rebanho. As palavras de agradecimento ao seu enfermeiro pessoal foram sinceras e cheias de sentido. A gratidão pela última ida à Praça e seu último passeio no meio do povo eram o que faltava para viver a sua Páscoa. Nesse gesto derradeiro de encontro com o povo a essência de sua missão: um amor concreto e palpável pela humanidade que ele pastoreou. Sua Páscoa pessoal se completa no abraço derradeiro à sua comunidade. Dos braços do povo para os braços do Criador.
No entanto, essa mesma bússola evangélica que guiava seus passos e suas palavras o colocou, por vezes, na mira de olhares desconfiados e condenatórios. Sua obstinação em dar voz e vez aos que a sociedade silenciava – os pobres, os últimos da fila, os descartados pela lógica do mundo, aqueles a quem faltava até mesmo um abraço – foi interpretada por alguns como desvio ou como heresia. Incomodou. A Igreja de portas escancaradas, em saída, acolhendo quem estava nas margens, incomodava quem preferia muros e distinções. Acolher quem estava nas margens mostrando que a margem é o centro.
Estou seguro de que, para muitos, a lembrança mais vívida não resida nos seus discursos, mas em detalhes singelos: o desgaste de seus sapatos pretos a percorrer os caminhos do mundo, a cruz simples que portava como único ornamento e que mostrava a centralidade do Cristo Bom Pastor, um gesto de acolhimento para com um necessitado, um aceno de esperança em meio à multidão, um sorriso que irradiava uma paz profunda. Se assim for, se forem esses fragmentos de sua humanidade e de sua fé a permanecer na memória coletiva, terá sido o suficiente. Nesses pequenos sinais, nessa linguagem silenciosa do amor e da humildade, muitos terão vislumbrado, de forma inequívoca, o seguimento radical e apaixonado de Francisco a Jesus.
Talvez não haja outro Francisco. Nossa lógica mundana, que muitas vezes busca comparações ou continuadores da tarefa, pode ser quebrada com isso. Talvez ainda levemos um tempo para assimilar tudo o que se passou nestes 12 anos de um homem chamado Francisco, que buscou viver com coerência o Evangelho. Eu não tenho dúvidas de que Francisco não descansará nem na eternidade. Continuará o mesmo Francisco, sem o seu corpo mortal, mas incansável, intercedendo pela Igreja a qual tanto amou.