07 Março 2025
"Voltam à memória as ansiedades de outros homens e mulheres do final da década de 1930. Nos meses em que os soldados de Hitler estavam conquistando a Europa, Piero Calamandrei colocava em seu Diário questionamentos lancinantes sobre a morte da civilização europeia. Porque este era o medo dos intelectuais europeus: ver cancelados, para sempre, milênios de civilização ocidental, em que, depois de guerras, perseguições e barbáries, haviam se fundido humanismos de diferente raiz (filosófica, religiosa, política)", escreve Paolo Borgna, ex-magistrado italiano e presidente do Instituto Piemontês de História da Resistência e da Sociedade Contemporânea (Istoreto), em artigo publicado por Avvenire, 28-02-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando, em 15 de junho de 1940, o exército alemão desfilou triunfante sob o Arco do Triunfo, o filósofo Bergson, que morreria poucos meses depois, exclamou: “Tivemos sorte, porque pudemos ver com nossos próprios olhos como eram os homens pré-históricos”.
A frase volta à memória hoje em dia, quando todas as manhãs, ao ler os jornais, recebemos o que Marina Corradi chamou de “socos na cara, daqueles que derrubam os boxeadores à lona”: a afirmação de que a guerra na Ucrânia não começou com a agressão russa; a ideia de que a Ucrânia deveria ter se rendido imediatamente porque o agressor era mais forte; o vice-presidente dos EUA que, ao chegar ao continente que há 80 anos os soldados estadunidenses ajudaram a salvar de Hitler, presta homenagem à líder do partido neonazista alemão; o presidente dos EUA que exige como presente as “Terras Raras” como o preço de uma extorsão.
Estes serão anos difíceis para aqueles que amam a paz, a democracia e o mercado civilizado - adverte Luigino Bruni - porque estamos diante de um capitalismo voraz que volta às suas origens primordiais, de forma que “tudo o que não é um aumento de lucros e rendas é apenas uma restrição a ser contornada ou afrouxada”. Nossa angústia - da geração nascida no período pós-guerra, com pais que viveram a guerra e, portanto, nos ensinaram a odiá-la - decorre do fato de que, pela primeira vez, de forma tão brutalmente explícita, vemos sendo questionada e desmontada a ideia que está na base das Constituições europeias, dos Tratados e das Convenções: a ilusão de que as relações entre as nações não são apenas a formalização da força bruta; que tragédias atrozes como as da última guerra mundial nunca mais seriam vistas; e que na eventualidade de crimes de guerra ainda serem cometidos, seriam sancionados. Se às sentenças do Tribunal de Nuremberg se podia criticar ter afirmado a justiça dos vencedores sobre os vencidos, ainda assim se devia reconhecer que aqueles processos haviam lançado a pedra fundamental de um edifício: um novo direito internacional garantido por um Tribunal perene e universal, dotado de poderes coercitivos em relação a todas as nações, capaz de dizer aos poderosos da Terra que crimes como aqueles do passado não teriam ficado impunes.
Esse foi o sentido dos tribunais criados ad hoc pela ONU para os crimes de guerra na antiga Iugoslávia e em Ruanda. O que, por sua vez, abriram o caminho para o Tribunal Permanente de Haia, criado pelo Tratado de Roma de 1998. Mas foi justamente naquele momento que a ilusão de nossos mestres se desfez. Porque as principais potências (EUA, Rússia, China) não ratificaram o tratado, em cujos trabalhos preparatórios os Estados Unidos (Presidente Bill Clinton) haviam contribuído. Hoje a ilusão virou pó, com Trump batendo pesado no Tribunal e ameaçando com sanções seus membros. A angústia é tão profunda que, escreve Corradi, diante dessa nova era que se apresenta aos nossos olhos, somos tomados pela dúvida de não termos mais a “firmeza moral e a força para reagir”.
Voltam à memória as ansiedades de outros homens e mulheres do final da década de 1930. Nos meses em que os soldados de Hitler estavam conquistando a Europa, Piero Calamandrei colocava em seu Diário questionamentos lancinantes sobre a morte da civilização europeia. Porque este era o medo dos intelectuais europeus: ver cancelados, para sempre, milênios de civilização ocidental, em que, depois de guerras, perseguições e barbáries, haviam se fundido humanismos de diferente raiz (filosófica, religiosa, política). Em 21 de janeiro de 1940, Calamandrei fala aos universitários florentinos da Federação Católica Italiana de Estudantes Universitários (Fuci). A guerra já estava em curso há cinco meses.
Nos últimos dois anos, todas as regras do direito internacional haviam sido rasgadas e varridas pela brutalidade da força militar. Então”, pergunta-se Calamandrei, ”o direito internacional nada mais é do que a formalização de um fato consumado? Mas naquele janeiro resiste uma esperança, embora fraca, de que a Itália evite a tragédia não se deixando arrastar para o conflito. A profissão de fé na legalidade que Calamandrei propõe aos estudantes católicos ainda fala daquela esperança do coração, contra a inexorável precipitação dos eventos. Contra a afirmação da “violência sem consideração pelos códigos”, contra o espírito dos tempos, que os jovens que cresceram com o regime estavam respirando a plenos pulmões há vinte anos, o leigo Calamandrei se dirige a outros jovens que se reportam a outros valores. E a eles apela. Lembra que a força que cria a lei não pode ser apenas a “violência cega”, mas é, acima de tudo, “a força da consciência moral, a fé em certos valores humanos irreprimíveis, a aspiração ao bem e à piedade”. Exortando os estudantes universitários católicos a defender a importância do direito, o que não significa isolamento “em uma técnica separada da realidade histórica”. Pelo contrário, dedicar a vida à justiça significa “defender, por meio do respeito às leis, iguais para todos, aquela consciência da igualdade de todos os homens perante o espírito, que é, para quem escuta a história, a mais alta e menos renunciável conquista de nossa civilização cristã”. No espaço de poucos meses, tudo isso foi destruído. Mas, cinco anos depois, esses valores se reergueriam e alimentariam a nova Europa de De Gasperi, Spinelli, Adenauer, Schuman, Spaak.
É um consolo terrificante, se pensarmos que, nesse meio tempo, tinha havido a guerra. Hoje, contra o “eclipse da humanidade”, devemos novamente apelar para esse encontro de diferentes humanismos que inspirou os nossos constituintes. É claro que serão anos difíceis “para quem ama a paz e a democracia”. Mas estamos equipados para não desistir.