17 Dezembro 2024
"Ter transformado Saidanaya em um dos símbolos do mal para toda a humanidade é a maior ofensa, a mais grave afronta que o regime de Assad cometeu contra todo o mundo cristão, sem exceção.", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 17-12-2024.
Primavera de 2011: os primeiros protestos sírios levaram às ruas alguns grupos de manifestantes corajosos e desarmados contra um regime cuja crueldade aprendemos a conhecer, horrorizados, apenas agora. Os fatos se agravaram quando, em uma escola de Daraa, no sul do país, um grupo de crianças escreveu slogans irreverentes contra o presidente no muro do pátio escolar.
Elas foram capturadas pelos serviços secretos, torturadas e, em seguida, devolvidas às suas famílias como "lição". A Síria gritou de indignação. Pouco depois, um patriarca cristão – não importa qual deles – escreveu: “Assad falou publicamente ontem, e houve uma manifestação em todo o país em apoio ao presidente [...]. Sou testemunha de muitas iniciativas positivas empreendidas pelo regime nesses anos. O país está se desenvolvendo”.
Posteriormente, ele enviou uma carta aos líderes europeus afirmando que a Síria não estava pronta para uma “democracia ao estilo europeu”. Recorda-se também a visita de um patriarca baseado em Beirute, que declarou que a vida é sagrada e nada pode justificar a perda de uma só vida, nem mesmo a busca por liberdade. Outro evento significativo, frequentemente omitido nos relatos sobre a tragédia síria, foi o assassinato de um cristão, Basel Shehadeh, cujo funeral foi impedido pelo regime, que chegou a disparar contra os amigos da sua comunidade de fé que haviam se reunido para rezar por ele. O incidente foi encerrado dessa forma.
É difícil discordar do professor Bernard Heyberger, da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, que afirmou: “As igrejas se estruturaram sobre um sistema autoritário”. Mas é necessário acrescentar que muitos, tanto à direita quanto à esquerda, usaram a magnitude da Primavera Árabe como pretexto para evocar o habitual “complô internacional”.
Ainda falta compreender plenamente o legado otomano para os cristãos. Tolerante na época da intolerância europeia, quando adotou a prática de “proteção das minorias do livro” em contraposição à perseguição e expulsão do outro na Europa, tornou-se intolerante ao se prolongar na era da tolerância europeia com o surgimento do estado pluralista.
No entanto, essa ideia de proteção permaneceu como uma necessidade profunda das minorias cristãs, desprovidas de confiança no outro islâmico, devido a dificuldades objetivas que, porém, não deveriam ter feito esquecer experiências luminosas, como a convergência islâmico-cristã na grande experiência da Nahda árabe (Renascimento ou Ressurgimento Árabe) do século XIX. Infelizmente, esta foi seguida pelo colonialismo europeu, que afastou as partes e favoreceu nacionalismos doentios e totalitários, tanto lá quanto aqui. O nacionalismo sírio, em particular, revelou-se o pior e mais perverso.
Foi essa ideologia da proteção que gerou um evidente cesaropapismo, não muito diferente do que encontramos na ortodoxia russa, cuja proximidade ao Kremlin não é distinta. Que a figura de Alois Brunner conecte o sistema de poder sírio ao nazismo não surpreende, mas ajuda a compreender. Ele, colaborador mais próximo de Adolf Eichmann, foi consultor de segurança de Hafez al-Assad durante os 30 anos de seu governo – os dois morreram com pouco tempo de diferença. O século XX árabe está, talvez, terminando somente agora, em meio a tantas contorções?
A história não é uma estrada reta; há curvas, problemas, incompreensões, equívocos, ações e reações incontestáveis, discriminações e graves culpas. Mas é evidente que confiar em um nacionalismo tão cruel, profundamente totalitário, expressão de um tribalismo sectário, levou as igrejas sírias, em nome do medo, a permanecerem em silêncio por meio século: sobre seus crimes, sua crueldade, sua lógica resumida no slogan de suas milícias: “Assad ou queimaremos o país”.
Lembrar com esses simples e superficiais exemplos o silêncio das hierarquias eclesiásticas hoje significa apenas perguntar: não deveria ter havido pelo menos um gesto “cristão” diante deste mar de vítimas, abusados, torturados, violentados, eliminados? E qual poderia ser esse gesto?
Muitas vozes, dentro e fora da Síria, levantaram a questão da proteção dos cristãos em uma nova Síria – e estavam certas. A proteção deles, como cidadãos sírios, vale e importa tanto quanto a de todos os outros cidadãos sírios. Isso seria uma prova indispensável do pluralismo de que a Síria desesperadamente necessita. E o pluralismo é verdadeiro, sempre, se começa com a liberdade de culto.
Mas os cristãos devem redescobrir-se e ser redescobertos como concidadãos de seus vizinhos e por seus concidadãos – de todos os ritos e de todas as etnias sírias. Isso exige um gesto de contrição e respeito, não por parte de indivíduos – muitos dos quais lutaram contra os horrores – mas de suas lideranças espirituais, que estão sozinhas diante do peso da história. Cinquenta anos de silêncio não são poucos. Qual gesto poderia reparar isso e permitir um novo começo, juntos?
A desconfiança é antiga e é fruto de muitas culpas, de muitos erros, de muitos horrores, de muitas ideologias, a começar pelo jihadismo islamista. Mas é impossível esperar por um futuro diferente, melhor, livre do sectarismo, permanecendo na desconfiança e, portanto, no próprio sectarismo − é preciso superá-lo!
Assim, a meu ver, a melhor maneira de iniciar essa purificação da memória poderia ser uma visita de todos os patriarcas ao local simbólico do abominável regime de Assad, preferencialmente juntos. Poderia ser a ocasião para lembrar, mesmo apenas mostrando uma imagem, que Saidanaya foi, durante séculos, desde a mais remota antiguidade, um lugar de peregrinação cristã, pois ali se guardava um ícone milagroso da Virgem Maria, atribuído a São Lucas.
Ter transformado Saidanaya em um dos símbolos do mal para toda a humanidade é a maior ofensa, a mais grave afronta que o regime de Assad cometeu contra todo o mundo cristão, sem exceção.
Não seria necessário dizer ou fazer mais nada para demonstrar o desejo de recomeçar juntos, livres da cultura da proteção ou da do abuso, após tantos horrores e tantas ideologias aberrantes.
Fazer isso seria extremamente importante para garantir a todos os sírios, inclusive cristãos, a proteção necessária de um governo que se espera respeitoso das diversidades, da complexidade, da cidadania comum e igualitária. É justo ser cético quanto à possibilidade de isso ser alcançado com a liderança atual da Síria? Certamente!
É necessário o ceticismo em relação a eles e ao seu abandono de ideologias religiosas conhecidas e odiosas, contrárias ao homem e à sua dignidade. Mas fazer isso em defesa dos direitos humanos de todos os sírios, algo que não pode ser estranho a nenhuma religião celestial, seria o melhor caminho. Também para encerrar meio século de silêncios insuportáveis.
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Síria: o longo silêncio das hierarquias eclesiásticas. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU