27 Novembro 2024
Pablo Semán é antropólogo e professor da Universidade de San Martín, na Argentina. Desde 2019, pesquisa o crescimento de grupos libertários e seus vínculos com a direita tradicional. Reconhecido por suas pesquisas nas áreas de cultura popular, política, religião e consumo cultural na América Latina, especialmente na Argentina, o pesquisador descreve o processo de politização juvenil e a emergência de uma subjetividade neoliberal que foi o fermento do mileísmo.
Nesta entrevista realizada para o podcast “Os Monstros Andam Soltos”, considera que a pandemia acelerou brutalmente a crise do Estado e que em vez de se perguntar como funciona o global, é necessário revisar a escala nacional dos conflitos.
A entrevista é de Ana Cacopardo, publicada por El Diario, 22-11-2024. A tradução é do Cepat.
Dentro do universo da militância libertária existe um núcleo intenso e agressivo. O antiprogressismo, o antikirchnerismo e o antifeminismo são a marca da discursividade cada vez mais violenta nas redes. A maioria vinda de homens jovens que hoje monetizam suas redes e são a face visível dos canais de streaming mileístas. Que relevância possuem dentro desse universo de garotos e garotas que se mobilizaram com a figura de Milei?
Hoje, têm mais visibilidade, maior protagonismo, por várias razões. A primeira razão é que começam a ter recursos políticos próprios derivados da conexão com o Estado, e também porque se impõe a crença de que isto é o novo e é uma onda invencível. Como são a militância mais leonina, e em geral os dirigentes políticos, têm o comportamento de que que aos mais próximos, aos mais leais, há um lugar, então, assim como o Gordo Dan, começam a ficar mais visíveis, mais fortes.
E há uma terceira questão: há todo um processo de densificação política, organizacional e ideológica da coalizão A Liberdade Avança e estes tipos empoderados começam a ganhar espaço, motivo pelo qual a sua voz e inclusive a sua capacidade de direção são amplificadas. Isto, por sua vez, penso que, sim, traz atritos e traz modificações que eu diria que vão de cima para baixo, da cúpula ou do Estado à sociedade civil. E também ativa alguns núcleos da sociedade civil em prol dessa revolução não igualitária a que agora almejam.
Vejo uma ativação, mas não sei até onde essa ativação consegue dirigir os apoios à coalizão A Liberdade Avança. Pode ser que para alguns setores muito intensos a narrativa antifeminista, por exemplo, tenha funcionado como algo que compensa. ‘Você não me oferece soluções econômicas, mas ao menos fechou o Ministério da Mulher’. Do mesmo modo, penso que a demagogia de direita acerca desses temas não estabiliza o processo político na direita. O que o estabiliza na direita é outra coisa.
É a capacidade de intervir nas condições materiais?
Sim, ou a repressão. E/ou a repressão.
Você vem trabalhando com outros pesquisadores em torno das culturas políticas juvenis e da emergência de uma espécie de subjetividade neoliberal como um dos fermentos do projeto político de Milei. O que você vê em seu trabalho de campo, que cenas significativas surgem para compreender essas subjetividades?
Para mim, uma das mais impactantes continua sendo a entrevista coletiva que fizemos em Florencio Varela, com jovens de família peronista que também votaram no peronismo. Não é que tenham votado em Milei. E há duas cenas nesta situação. Uma é que quando lhes perguntamos sobre o futuro, primeiro nos responderam burocraticamente, muito rápido.
Voltei a fazer a pergunta, quando contaram um pouco mais sobre suas situações, e aqueles garotos começaram a chorar. Ou seja, não é que tenham dito que o viam muito escuro, mas diretamente tiveram um branco, ficando sem palavras e com lágrimas nos olhos. E isso para mim foi uma demonstração da angústia que os atravessa.
E aí vem a segunda cena. Tinham uma descrição do mundo, algumas ideias sobre os problemas e suas soluções que eram totalmente mileístas. Então, essa cena é muito importante porque demonstrava um repertório simbólico que se conectava com Milei.
Como você descreveria esse repertório simbólico?
Primeiro, a ideia de que o principal problema era a inflação e segundo, por exemplo, que existia uma grande injustiça na forma de distribuir os subsídios, os auxílios e os planos. Tanto é que se colocavam como exemplo e diziam ‘eu o estou recebendo, mas eu não deveria recebê-lo, se houvesse prioridades claras’. Depois, todo um apelo ao esforço, à autonomia e à iniciativa individual.
E esclareço que quando digo uma descrição mileísta do mundo, não estou dizendo que sejam sujeitos construídos por Adam Smith. Não sei se calculam algo e são mais individualistas que a minha avó, mas não são monstros. Isto está no fermento do mileísmo e demonstra até que ponto o mileísmo pôde ser massivo. Penso que isso agora está mudando, porque com o mileísmo acontece o mesmo que com qualquer grupo político que chega ao governo.
Nos relatos e nessas referências a como os planos sociais são distribuídos, há uma crise das narrativas de igualdade? Lembro-me da citação de uma das entrevistas: “não me fodam com direitos que empobrecem”.
Para a maioria desses jovens existe toda uma série de regulamentações da vida trabalhista que são vividas como um obstáculo, como um custo. Nunca se beneficiaram da existência dessas regulamentações. Provavelmente, os seus pais nem sequer recebem uma aposentadoria ou recebem uma muito reduzida.
Então, veem toda uma burocracia que preside e regulamenta as relações trabalhistas que lhes impõe tributos sobre o seu salário que depois não se traduzem em direitos que receberão. Esta ideia de direitos que empobrecem, que é uma ideia muito mileísta, adquire sentido neste contexto prático.
Nesta visão de mundo, o empreendedorismo individual emerge como um valor. Por que você diz que é mais uma categoria moral do que econômica?
Não deixa de modo algum de ser uma categoria econômica. Mas, além disso, é uma categoria de valor. Eu digo como eles pensam. ‘Não é que eu consumo porque me dão, mas porque ganho, não tenho um chefe e organizo os meus horários’. Por mais que se possa dizer que são os algoritmos e os aplicativos que governam, é assim que a experiência lhes é apresentada e é assim que a avaliam. A ideia de não depender de ninguém.
Tudo isso são valores, certo? E efetivamente a autonomia individual e a capacidade de definir os próprios objetivos e de se virar são valores morais. Para eles, possui sentido de valor, não é simplesmente um número em uma conta.
No caminho para a construção de uma reflexão sobre as identidades políticas juvenis, esta caracterização transcende ao mileísmo. Mais do que uma guinada à direita, você diria que há uma espécie de subjetividade neoliberal em ação...
Há uma mudança sociocultural muito grande e as condições da experiência social e cultural se transformaram. Isso não começou agora. Tampouco com a pandemia. A força de trabalho em relação de dependência e registrada está em uma porcentagem abaixo de 50%, há mais de 20 anos. O prolongamento desta situação que vem dos anos 1990 gerou percepções, hábitos, compromissos e certas normatividades. Isto é obviamente mais intenso nas novas gerações que são mais homogêneas por sua experiência de um novo regime de relações de produção e de emprego.
Então, sim, existe um neoliberalismo de baixo ou, digamos, um impulso à autonomia e à individualização muito mais forte do que há em outras gerações. Depois, se isso se traduz ou não em voto a um candidato neoliberal, em uma adesão a uma doutrina, à ideia de que a inflação é, em todo tempo e lugar, um fenômeno monetário, isso é outra coisa. Nós destacamos o surgimento dessa subjetividade que não implica necessariamente em apoio a Milei. Não há uma relação direta com esse apoio.
Estas coordenadas de politização juvenil pela direita expressam condições globais ou poderíamos dizer que condensam algo deste momento histórico. O apoio de um núcleo intenso, sobretudo de homens jovens, é próprio das ultradireitas trumpistas.
Há tempo venho discutindo a ideia do global. E saio do tema das juventudes porque acredito que é necessário discutir isto, pois as coordenadas do global são utilizadas de forma cada vez pior. Eu não ignoro que a nível internacional existem fóruns, conversas, articulações programáticas e intelectuais, ou seja, essas questões, na minha rápida relativização, são inegavelmente importantes.
Contudo, quando olhamos para os resultados eleitorais deste ano na França, na Espanha e no México, parece-me que se há algo que se revela é a importância da escala nacional dos conflitos. A estrutura desses conflitos e as mediações culturais, sociais e políticas da escala nacional são determinantes frente ao vetor global. Nem tudo funciona igual, nem funciona igual o tempo todo.
Se pararmos na experiência das ultradireitas latino-americanas, a Argentina, por exemplo, tem alcances institucionais mais fracos do que o Brasil. Lula conseguiu ter uma estratégia política que supôs colocar o corpo em sua própria detenção, porque podia confiar que isto poderia ser revertido. Essa questão dos alcances institucionais não funciona assim na Argentina. Penso que as eleições a que acabo de me referir mostram muito mais do que eu esperava a especificidade latino-americana e a especificidade argentina de tudo isto. Em nenhum lugar a ultradireita mais radicalizada ganhou tanto como na Argentina.
Então, considero os argumentos que se referem ao global cada vez mais fracos. E também sintomáticos de pessoas que querem colocar no global as causas que correspondem às suas responsabilidades políticas. Olhando para a Argentina, teriam que se perguntar por que a pior versão da direita venceu com o melhor dos resultados, em vez de se perguntar como funciona o global.
A pandemia foi um fenômeno global. Como contribuiu para a emergência das ultradireitas?
Aí, sim, eu vejo algo global ou internacional, ou seja, situações concomitantes dos países que precisam ser levadas em conta, pelo menos nos países onde existem regimes deliberativos. Eu colocaria aí a incidência aceleradora e brutal da crise do Estado com a pandemia, em nível mundial. Porque o que aconteceu com a COVID-19 teve algumas características de que independentemente do que o Estado fizesse, estaria mal. Não por acaso, quase todos os governantes saíram muito fragilizados do período pandêmico. A pandemia fez brilhar, aumentou e ampliou a crise do Estado.
O peso das condições locais explicaria, por exemplo, que na Argentina o cordão sanitário não tenha funcionado como estratégia para deter o avanço das ultradireitas.
Tomei a figura do cordão sanitário porque penso que é necessário criticar as análises, que pressupõem que na América Latina, e sobretudo na Argentina, pode haver um cordão sanitário como aquele que, em algum grau, ainda existe na França ou talvez na Alemanha, onde a direita se distingue da ultradireita por seus compromissos democráticos. Se precisa permitir que um candidato de esquerda ganhe para que a ultradireita não ganhe, age desse modo.
Na Argentina, essa esperança é totalmente infundada. Porque o que vinha sendo visto, e creio que ainda se vê, é um processo de fusão dos eleitores de centro-direita e de ultradireita, com fronteiras não muito nítidas. A situação, sobretudo na Argentina, é muito mais fluida do que na Europa, onde o sistema político e as instituições do sistema político, apesar de questionados, são muito mais atuantes do que na Argentina.
Se alguma vez acreditamos nisso, paremos de acreditar. Porque na Argentina essa fusão de eleitores de direita e de extrema direita também já vinha acontecendo e se mostrava muito clara na percepção de um tipo inteligente, cuja inteligência é desconhecida, que é Macri. Já em 2018 se torna trumpista, quando nota que o seu próprio eleitorado de centro-direita, entre aspas, apresentava-se como de extrema direita. Então, essas categorias, com essa compartimentação entre direita e extrema direita na Argentina, não funcionam há tempo.
O debate em torno do Estado volta recorrentemente, mas nos termos da direita: ajuste e desmantelamento. Por que os progressistas não conseguiram promover um debate com chaves próprias?
Primeiro é necessário dizer que estamos vivendo uma crise de Estado. Do Estado que funcionava como um acordo entre democracia, capitalismo e classes trabalhadoras. Mundialmente, e sobretudo no Ocidente, a tendência do capital como vetor global é a de romper esses acordos que sustentavam o casamento entre democracia, estado social e capitalismo. É um processo histórico de longa duração que segue sendo determinante.
Outra questão, que abarca mais diretamente os protagonistas da disputa política, é a instrumentalização do Estado para resolver as disputas internas e só depois as políticas nacionais e as funções estatais. Uma prática que a política argentina historicamente teve pelo menos nos últimos 40 anos, que foi se agravando e despedaçando o que é estatal, justamente em um momento histórico em que o estatal está sendo tão criticado.
Olhando também para a experiência kirchnerista ou de Lula no Brasil, em geral, as intervenções estatais tiveram vocação para resultados mais imediatos, como as transferências monetárias. O que é compreensível, não era descuido, nem maldade, porque o sistema político impunha testes eleitorais às forças políticas que as obrigavam a agir de forma imediatista. Então, foi muito difícil assumir a necessidade da criação de bens públicos.
“No claro-escuro de um velho mundo que está morrendo e um novo que demora a aparecer, surgem os monstros”. Encerramos nossa conversa com esta citação de Antonio Gramsci, situada no contexto da Europa do período entreguerras do século passado. Isto ressoa em você para pensar o nosso tempo? Que monstros andam soltos?
Ressoa em mim, mas de uma forma diferente. O que nos permite pensar uma diferença específica é que naquele momento o mundo asiático não estava presente nessa reflexão. O capitalismo, como sistema-mundo, estava menos desenvolvido e tinha uma composição muito diferente da que tem agora. E havia uma coisa rara, quando se olha de longe, que está em que nesse capitalismo que emerge da Primeira Guerra Mundial e acaba de se consolidar após a Segunda Guerra, apesar de vir de uma experiência em que milhares de pessoas morrem na guerra, havia uma ideia de que os humanos não sobravam.
Parece contraditório, porque eram estados que não tinham problemas em enviar para a guerra e que morressem milhares e milhares de cidadãos, mas, por outro lado, tinham gerado políticas de cuidado de seus cidadãos. Tinham criado os sistemas previdenciários, a atenção ao trabalho, toda a forma de relação distinta entre sociedade civil e política, entre estado e mercado, que, ao contrário, são removidos pela situação contemporânea e as forças capitalistas contemporâneas, que tendem a romper compromissos entre Estado e sociedade civil. Um pouco da ideia de que se sobram pessoas, que se virem como puderem. E se não se viram, não importa, certo?
Parece-me que é a grande diferença em relação àqueles anos e por isso são outros monstros. É a dispensa ativa e a construção de humanidades, de certas formas de humanidade como execráveis e como descartáveis. E eu diria algo mais, no século XXI, a grande questão é a dos muros e como destituir povos inteiros de direitos.
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“No século XXI, a grande questão é a dos muros e como destituir povos inteiros de direitos”. Entrevista com Pablo Semán - Instituto Humanitas Unisinos - IHU