21 Novembro 2024
Paule Zellitch, presidente da Conférence catholique des baptisés francophones, e Guy Legrand, membro da CCBF, deploram a persistência de uma modalidade de governo arcaica e antidemocrática na Igreja, que “não é estranha à imensa dificuldade do sistema eclesial em combater os abusos”.
O artigo é de Paule Zellitch e Guy Legrand, publicado por Le Monde, 17-11-2024.
Em sua forma atual, um sínodo dos bispos é uma assembleia consultiva e deliberativa, com o papa tendo a palavra final. O objetivo inicial do último sínodo, cuja assembleia geral, também aberta a alguns leigos, terminou no final de outubro, era pensar quais mudanças fossem desejáveis na Igreja, no contexto das revelações sobre a disseminação dos abusos de todos os tipos cometidos por padres.
No decorrer do processo sinodal, o objetivo primário foi perdido de vista em favor dos meios a serem utilizados para alcançá-lo. O “método sinodal”, o “método de sínodo”, foi usado para avaliar a eficácia do sínodo. O “método sinodal”, concebido como um fim em si mesmo, tornou-se o principal objetivo desse sínodo. Como resultado, a assembleia não conseguiu enfrentar uma série de questões importantes, especialmente os fundamentos da governança.
No entanto, algumas lições podem ser tiradas das duas sessões.
Em primeiro lugar, quando aos católicos é dada a palavra, eles a usam. O sínodo deu a palavra aos fiéis que, em sua maioria, a usaram, no quadro da ampla consulta organizada na fase de preparação.
Assim, apesar da inevitável diluição e reformulação das sínteses produzidas pelos bispos de cada país e depois de cada continente, a reivindicação por uma maior igualdade entre homens e mulheres nas funções eclesiásticas emergiu amplamente da consulta em todo o mundo.
No entanto, durante as assembleias gerais do sínodo, assistimos a uma recusa de princípio do debate [o tema do diaconato feminino, entre outros, foi excluído das discussões] como método de construção de consenso pela instituição eclesial. Uma recusa implementada com a escolha da noção de “conversação no Espírito Santo”: o objetivo era reduzir o espaço para o debate e o confronto construtivo, percebido pelo magistério da Igreja como um ataque ao seu conceito de unidade, herdado nas suas modalidades do Império Romano, a partir da época de Constantino.
Esses elementos são característicos do paradoxo que esse sínodo deveria ter resolvido: a Igreja Católica Romana, sociedade organizada em ordens hierárquicas, pode coexistir hoje em uma sociedade civil cujo princípio fundamental, agora secular, é a igualdade dos indivíduos, com a organização social que disso resulta?
A Igreja e a sociedade civil operam de acordo com dois modelos antinômicos. Uma sociedade de ordens, organizada em duas castas separadas e hierarquizadas (clérigos e leigos), diante de uma sociedade baseada na igualdade dos direitos, sem distinção entre os sexos, com características diferentes:
uma sociedade de ordens em que a legitimidade se baseia em uma unção sacralizadora que define a casta superior (os clérigos), em relação a uma sociedade em que a legitimidade se baseia na competência ou na representatividade;
uma sociedade de ordens em que todos os poderes, sacralizados, estão concentrados nas mãos dos clérigos, em relação a uma sociedade civil organizada com base na independência e na separação de poderes, que percebeu que somente o poder limita o poder, pressuposto essencial para combater os possíveis abusos inerentes a qualquer sociedade humana na origem;
uma sociedade de ordens na qual a unidade é um dado de partida, que se deveria redescobrir por meio da “conversação no Espírito”, em relação a uma sociedade na qual o consenso é construído juntos por meio de debates e confrontos institucionalizados. Uma oportunidade perdida?
Aportar pequenas mudanças para preservar o status quo a todo custo: foi nesse exercício de mudança apenas das aparências que se empenhou a Igreja com esse sínodo? Se assim for, acima de tudo não há intenção de mudar a modalidade de governança - “O rei governa em seu conselho” - sobre o qual todo o edifício eclesial se apoia.
Alguns canonistas entenderam isso; eles tentam encontrar limites para o poder não compartilhado do clero, contudo sem nunca questionar a primazia do clero na tomada final da decisão.
Assim, para limitar um arbítrio que evidentemente se tornou cada vez menos suportável, parecem ter, se não descoberto, pelo menos promovido a noção de “parecer conforme”, que obriga o tomador de decisão a levar em conta o parecer de seu conselho...
Mas a Igreja institucional continua a se recusar a nomear e considerar o poder pelo que é: a capacidade de coagir e de tornar essa coação aceitável e aceita. Sistematicamente chama o poder de “serviço”, enquanto o espírito de serviço é apenas uma modalidade, embora desejável, do exercício do poder. Essa confusão impede uma reflexão séria sobre o exercício do poder e não é estranha à imensa dificuldade que o sistema da igreja encontra em identificar e combater os abusos de poder, inclusive os de natureza penal. A sociedade e a igreja são, portanto, dois tipos de organização, fundadas em bases radicalmente diferentes e dificilmente compatíveis; elas ainda podem coexistir no mesmo espaço social hoje? Essa é a pergunta posta ao Sínodo. No entanto, é na tradição eclesial, na afirmação de Cipriano de Cartago [c. 200-258], que encontramos o seguinte princípio sábio de governo: “O que diz respeito a todos deve ser discutido e aprovado por todos”.
Será que este Sínodo dos Bispos perdeu uma oportunidade excepcional de atualização? Em uma época em que todos pedem para participar como protagonistas na elaboração das decisões comuns, será que uma forma cada vez mais anacrônica da Igreja ainda pode desempenhar a função primária dessa instituição - que é a proclamação tangível do Evangelho e de seus valores humanizadores - em uma sociedade em plena transformação?
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“O Sínodo demonstrou que a Igreja Católica mantém uma confusão que impede qualquer reflexão séria sobre o exercício do poder”. Artigo de Paule Zellitch e Guy Legrand - Instituto Humanitas Unisinos - IHU