16 Novembro 2024
“Atualmente, não vivemos apenas ‘o esquecimento do ser’, como alertou Heidegger, mas também uma preocupante crise de todo pacto comunitário, em que tanto a sociedade em rede digitalizada, como a extrema-direita e os neofascismos recentes, estão influenciando emocionalmente os sujeitos, desterrando o ser social”. A reflexão é de Carlos Fajardo Fajardo, em artigo publicado por Desde Abajo, 09-11-2024. A tradução é do Cepat.
Martin Heidegger chamou o fenômeno de “esquecimento do ser”, mas hoje mais do que nunca vivemos um “desterro do ser”, um certo exílio da condição humanista, um ostracismo onde o ser humano é simplesmente banido da existência. Este “esquecimento do ser”, pensado por Heidegger como o resultado da falta de sentido ou perda do sentido de ser sob o domínio da técnica moderna, torna-se mais visível neste tempo das redes e das tecnologias digitais, em que tais esferas ocuparam e tomaram o lugar do ser, o que poderíamos interpretar como o esquecimento do próprio ser humano, transformado este em utensílio da técnica e da razão instrumental.
Ao mesmo tempo, segundo Heidegger, o esquecimento do ser é também o esquecimento da linguagem (Logos), uma vez que esta foi reduzida a um mero instrumento, a pura funcionalidade. Mais do que um utensílio, a linguagem, para este filósofo alemão, é a casa do ser. “A linguagem é a casa do ser. É nessa morada que habita o homem”. Em sua obra Introdução à Metafísica, Heidegger afirma que se trata de “restabelecer novamente a expressividade genuína da linguagem e das palavras, pois as palavras e a linguagem não são invólucros que servem para embalar as coisas e depois serem trocadas via oral ou por escrito. Na palavra, na linguagem, as coisas primeiro estão sendo, vão sendo feitas. Portanto, o uso indevido da linguagem através de fofocas, palavras vazias e frases sem sentido faz com que perca a sua verdadeira relação com as coisas”. Consequentemente, ao conceder todo o poder à instrumentalização tecnológica, o ser humano não apenas é esquecido, mas desterrado.
Este “desterro do ser” ocorre numa comunidade transformada em sociedade-rede ou “rede digital”. Nela a subjetividade é transformada. Emergem novos componentes e papéis de poder e de organizações institucionais e individuais, bem como novos regimes de opinião, com uma enorme carga de notícias falsas, que impactam nas determinações políticas. A carga ideológica é grande, dir-se-ia monstruosa. Estamos nos abrindo para uma era de discursos fáceis, onde a desfaçatez é viável e aceita.
Consequentemente, o humanismo sobrevive numa espécie de parênteses, sofrendo com os desajustes econômicos neoliberais, as desigualdades, o desemprego, as privatizações, o consumismo, as mudanças climáticas, as migrações em massa. Tudo isso nos leva a uma sensibilidade que transforma o indivíduo em empreendedor de sua aparência através do uso dos dispositivos digitais. Nessas condições, o desterro do ser vem crescendo: viciados em telas, viciados em ícones, viciados no digital, viciados em informação, viveiros para as transformações das subjetividades.
Assim, por exemplo, com a interface tátil, facilitada pelo Smartphone, entramos em outra dimensão corporal de poder. Sentimo-nos poderosos, autônomos, sem realmente o ser. A partir deste dispositivo pessoal acreditamos que dominamos o mundo graças à multiplicidade das suas aplicações. Tudo parece estar ao nosso alcance e serviço, dando uma falsa sensação de controle e ordem. Uma ordem virtual, neste simulacro de poder, é cumprida tanto digitalmente como na realidade fatual: domicílios, pagamento de passagens e de transportes, bilhetes para o cinema e espetáculos, uma infinidade de serviços estão ao nosso alcance. Tudo acontece quando nos conectamos ao Twitter – agora X –, ao WhatsApp, Instagram, Tik Tok, Google, Apple, Facebook, Amazon, Uber, sendo controlados e vigiados mais que controladores autônomos, uma vez que os nossos desejos, movimentos, localizações, pensamentos, desejos e emoções se multiplicam.
É a adição de dispositivos que está aumentando essas formas de controle digital por meio de seus rastreadores. Acreditamos que os controlamos quando emitimos ordens sobre tais aplicativos. Nas palavras de William Davies, “se caímos na armadilha das redes digitais, através dos aplicativos e plataformas, isso se deve à promessa de uma coordenação mais eficiente: não é que vamos conhecer melhor o mundo, senão que este nos obedecerá mais”. Isolados, absorvidos pelas telas, assumimos uma posição corporal diante delas, que não nos permite olhar para o nosso entorno, tornando-nos autistas antissociais, sem estabelecer qualquer comunicação com os outros (1).
Isto nos transformou, segundo Éric Sadin, em tiranos midiáticos (2) e, pior ainda, nos fez desejar a tirania imposta pela infomania, o vício digital dos ícones, que moldou e formatou as nossas vidas atuais. As selfies, por exemplo, nos levaram a observar mais nossos simulacros e idolatrias diante do smartphone, o que na realidade reverte em tirania midiática, em autocomplacência, em poses estáticas e sorridentes diante de um “eu mesmo”. Rápidas, passageiras, efêmeras, urgentes. É assim que as selfies funcionam. O que aqui se perde é a aura da fotografia, sua força e garantia de preservação da memória, já que esses registros fotográficos ficam arquivados no depósito digital do aparelho e raramente são vistos novamente, perdendo-se assim a atividade de contemplação e seu reconhecimento.
Há alguns anos o mundo está a apenas um clique de distância. Podemos inclusive nos tornar preceptores digitais de disciplina que avaliam, classificam e criticam os cidadãos através do nosso “poder” tátil. A tirania se manifesta nesta desqualificação do Outro tão somente com um clique. Desta forma, seguindo a lógica da competição e do empreendedorismo neoliberal, transformamos o nosso próximo num objeto intercambiável, em pura mercadoria. O clique e as pontas dos dedos tornaram-se mecanismos de poder individual. Com eles estabelecemos relações digitais.
O micropoder que se exerce é supremo, subjuga quem o pratica e, em grande medida, este se considera dono da realidade. Além disso, agora podemos “varrer” os aplicativos, os nomes, os perfis com a ponta dos dedos, o que, simbolicamente, nos transforma em censores digitais que incluem ou excluem, conforme os gostos que temos (Éric Sadin). O imaginário autoritário é patético, o encanto de exercê-lo é sedutor e perverso. Por isso, uma certa democracia das emoções digital é gerida a partir desses artefatos e dispositivos que vêm modificando os comportamentos e as sensibilidades.
Como simulacro, miragem, superficialidade e vaidade, a conexão digital produziu distanciamento da presença física dos outros. Privatização mercantil da individualidade e privacidade consumidora egocêntrica da subjetividade. Estes são os efeitos sobre as emoções da sociedade digitalizada (3).
Solitários e isolados, consumimos a nossa angústia pessoal, onde o niilismo e a desconfiança em relação à comunidade se tornam evidentes. A confiança na sociedade foi quebrada. A preocupante aceleração da falta de solidariedade está aumentando. Os indivíduos sentem que têm o direito de construir as suas próprias narrativas, de elevar a verdade os seus discursos em detrimento dos “muitos”. É a crise de todo pacto comunitário, o desterro do ser social.
Alguns destes sintomas são as humilhações e os assédios na internet, os jovens andando com os seus capuzes neomedievais, isolados dos transeuntes, demonstrando uma atitude hostil, rancorosa e odiosa para com a cidade por onde transitam; assim como exercer a justiça com as próprias mãos, vingando-se de todas as ofensas recebidas; assassinatos em série, terror coletivo; violência nas ruas em encontros com pedestres; a competição constante para alcançar a possibilidade de lucro a qualquer preço.
Estas e outras ações estão produzindo uma ruptura sistemática entre a subjetividade autoritária desorientada e as lógicas da integração; é a encenação de uma suposta liberdade individual trancada, dogmática, superestimulada e que se nega a ter consciência da alteridade e da importância do respeito às diferenças.
Portanto, esta solidão online é propícia aos neofascismos de última hora, neofascismos excludentes, xenófobos, racistas, islamofóbicos, classistas, homofóbicos, onde o ódio reina e perdura. É uma ressignificação do fascismo que atualiza os nacionalismos radicais, chauvinistas, contra o comunitário, na contramão dos direitos humanos e com finalidades religiosas, como a defesa da fé cristã e a favor do mercado e da rentabilidade capitalista neoliberal.
O autoritarismo antidemocrático, de matriz neonazista, permeou as classes médias, os desempregados, os trabalhadores e, sobretudo, uma juventude influenciada tanto pelas elites midiáticas hegemônicas quanto pelos dispositivos e redes digitais. Nas palavras de Xavier Franzé e Guillermo Fernández Vásquez, a direita adaptou-se às democracias que perderam a componente antifascista, uma vez que “agora uma extrema-direita que, embora diversa, procura uma espécie de vingança histórica retrospectiva contra a esquerda e a anteriormente hegemônica democracia social. Agora tudo é ‘comunismo’ e, portanto, deve ser destruído. Na verdade, menos impostos, mais mercado, reafirmação dos modos de vida tradicionais (nacionalismos, machismos, antiambientalismo) e mais ‘meritocracia’ unem-se para encurralar a filosofia do Estado de Bem-Estar Social” (4).
As suas repercussões são observadas na França, país onde, desde 7 de outubro de 2023, dia do ataque do grupo Hamas a Israel, tomou forma oficial a perseguição à liberdade de expressão por parte destes neofascismos. Por esta razão, aumentou “a proibição de fazer manifestações, o cancelamento de conferências públicas, a desprogramação de artistas e intelectuais, as sanções contra comediantes, a proibição de slogans entoados durante décadas e a suspensão de subsídios públicos às universidades consideradas demasiado indulgentes com os estudantes que expressam a sua solidariedade com a Palestina” (5).
Da mesma forma, o extermínio do povo palestino em Gaza, perpetuado pelo Estado sionista, racista, colonial e supremacista de Israel, com o apoio e o desdém dos Estados Unidos, da União Europeia, de alguns países tolerantes e cúmplices de tão atroz mortandade e da mídia hegemônica, é um dos maiores registros deste fascismo global. O genocídio em Gaza sintetiza um dos sintomas do desterro do ser: desterrados por serem palestinos e pobres; desterrados por se oporem ao poderoso, por serem diferentes; desterrados por se levantarem e exigirem o direito a uma pátria soberana e livre onde possam viver, amar, sonhar, lutar e enterrar em paz os seus entes queridos.
Israel e o Ocidente, com esta perversa e bárbara ação, enfiaram o punhal da ignomínia na civilização, abrindo outra ferida no pouco que resta de humanismo democrático no cenário mundial. Ao mesmo tempo, com a inteligência artificial “provavelmente as máquinas começarão a desempenhar um papel crescente na tomada de decisões de políticas públicas, mas não seremos capazes de nos libertar da decisão sobre qual a ideia de bem comum que apoiamos e qual o objetivo que pretendemos priorizar […]. E podemos imaginar que o problema aumentará enormemente nos próximos anos, agora que, além disso, podem ser criados vídeos falsos nos quais uma pessoa, com o seu rosto e voz, diz de forma extremamente realista coisas que você nunca disse. No mundo da IA generativa, as notícias falsas podem ser muito mais sutis e perigosas” (6).
Nesta era de multidões formadas e seduzidas por redes e dispositivos tecnológicos, a democracia das emoções expressa-se numa série de sensações sob o domínio dos contágios digitais, desdobrados com espantosa velocidade, criando uma espécie de pandemia cibercultural, onde, perversamente, predominam as ideologias emocionais do medo, do boato, do ressentimento, do ódio e da rejeição das diferenças. As fontes de informação, sejam fatos comprovados, verdadeiros ou não, começam a perder importância. O que interessa é seu impacto emocional na “multidão” e que desapareça o sentido duvidoso e o julgamento crítico individual.
Para William Davies, “a captura digital do nosso comportamento e da nossa comunicação, combinada com os rápidos avanços na ‘inteligência emocional artificial’ (ou ‘computação afetiva’), está favorecendo o aumento da precisão científica no estudo do movimento das emoções e opiniões através das massas […]. A multidão realmente não se importa com o que é dito, mas apenas com o que isso a faz sentir” (7). Esta “captura” emocional influencia o comportamento dos sujeitos, ao ponto de poderem apoiar tanto o status quo como os movimentos nacionalistas e fascistas da extrema-direita, o que já foi comprovado nos resultados das eleições em vários países.
Suscetíveis aos “contágios de opinião” (Davies), vamos perdendo a nossa autonomia sob o domínio da política das emoções e dos sentimentos. Portanto, são as opiniões emocionais que prevalecem sobre as evidências e as certezas. Este regime de notícias falsas, boatos, conjecturas e opiniões emocionais influencia o dia a dia em tempo real. É aí que, para Davies, “a liderança populista se torna mais perturbadora quando assume o controle da angústia e da impotência, e transforma essas emoções em ódio […]. As pessoas que procuram empatia podem sentir-se atraídas por várias orientações políticas, e o nacionalismo é uma das mais sugestivas. Os estudos mostram sistematicamente que os simpatizantes dos partidos nacionalistas acreditam que o seu país está piorando ao longo do tempo e que as coisas estavam melhores no passado. O líder nacionalista representa a promessa de restaurar uma ordem anterior, incluindo todas as formas de brutalidade […]. É uma rejeição do progresso em todas as suas formas” (8).
Da mesma forma, também é uma rejeição da paz e um apelo à violência. Estas novas esferas tecnológicas estão permeando todas as situações das nossas vidas (9). Portanto, é necessário criar uma estratégia para neutralizar os seus impactos de poder, abordando o conhecimento dos seus atuais componentes digitais. Nem abandono nem total desconhecimento dos mesmos (10). Para além destas formulações, apropriação, conhecimento com senso crítico, reconhecimento e assimilação – e não a justaposição – dos dispositivos, das redes digitais e das ferramentas tecnológicas, para não sermos simples usuários delas, mas criadores e desconstrutores dos seus usos e componentes, tanto técnicos como sociopolíticos, com o propósito de resistir e enfrentar o que chamamos de atual desterro do ser.
1. Davies William. 2019. Estados nerviosos. Cómo las emociones se han adueñado de la sociedad. Traducción Vanesa García Cazorla. Madrid: Sexto Piso, p. 273.
2. Ver Éric Sadin. La era del individuo tirano. El fin de un mundo común. Buenos Aires: Caja Negra, 2020.
3. “No documentário O Dilema das Redes, Tristan Harris argumenta que a China usa ativamente o TikTok para promover agendas conflitantes e promover a polarização do Ocidente. O TiKTok não é usado na China, mas sim uma plataforma semelhante desenvolvida pela mesma empresa chamada Douyin. Apresentam muitas semelhanças, mas também algumas diferenças importantes que, segundo Harris, são explicitamente concebidas para “tornar estúpida” a juventude ocidental e fortalecer a chinesa. Enquanto aqui vídeos de gatinhos e danças viralizam, ali os influenciadores são físicos e astrônomos. Na China servem frutas e vegetais e no Ocidente doces e batatas fritas” (Mariano Sigman e Santiago Bilinkis. “Entre la utopía y la distopía”. Le Monde Diplomatique, edição Colômbia, agosto 2024, p. 14).
4. Le Monde Diplomatique, edição Colômbia, julho 2024, p. 7.
5. Ibid., p. 30.
6. Mariano Sigman; Santiago Bilinkis. “Entre la utopía y la distopía”. Le Monde Diplomatique, edição Colômbia, agosto 2024, p. 13.
7. Davies, op. cit. 38, 39.
8. Ibid., p. 182.
9. Ver Carlos Fajardo Fajardo. “El leviatan Algorítmico”. Le Monde Diplomatique. Edição maio 2024.
10. Para Carlos Maldonado, “uma tarefa pedagógica, mas também acadêmica, científica e política, envolve educar a sociedade nestas tecnologias. De forma elementar: trata-se, muito particularmente, de aprender a ler e escrever código. A UNESCO destacou que hoje a principal forma de analfabetismo é a tecnológica” (Carlos Maldonado. “Una mirada a las revoluciones tecnológicas en curso”. Le Monde Diplomatique, edição Colômbia, setembro 2024, p. 7).
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O atual desterro do ser. Artigo de Carlos Fajardo Fajardo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU