19 Novembro 2019
Paris, final do século XIX. O escândalo é o material que rapidamente incendeia uma sociedade em um processo acelerado de transformação econômica e política que resultará, em questão de poucas décadas, na Primeira Guerra Mundial. O sociólogo Gustave Le Bon - o “célebre doutor” - é, além de um físico apaixonado, um pioneiro da psicologia social. Suas ideias sobre o surgimento da “multidão” exercem um tipo de diagnóstico preciso do apetite burguês.
Pessimista, militarista e elitista, Le Bon via aumentar, todos os dias, essas massas que desprezava e começou a pensar nelas como um organismo vivo. Uma série de ideias difundidas entre essas multidões podiam ser como um vírus ou, como escreve William Davies (Londres, 1976), “a multidão se torna um vasto circuito neuronal pelo qual as emoções viajam de um corpo para outro, em uma velocidade vertiginosa”.
A partir de sua posição contrária às massas modernas, Le Bon forneceu pistas para a crítica..., mas também para a utilização dessa potência multitudinária. A influência de sua principal obra, “Psicologia das multidões”, chegou a líderes e oradores - entre outros, por exemplo, Adolf Hitler - que encontraram nas ideias sobre manipulação uma fórmula para obter adesões inabaláveis. “Exagerar, afirmar, repetir e nunca tentar provar nada através do raciocínio, eis os procedimentos de argumentação familiares aos oradores das reuniões populares”, escreveu Le Bon.
O sociólogo e economista William Davies retomou essas ideias sobre a manipulação de massas nascidas da crise das nações do século XIX, no contexto do nascimento das redes sociais, big data e inteligência artificial. Estados Nerviosos: cómo las emociones se han adueñado de la sociedade (Sexto piso, 2019) é um ensaio que visa entender a política dos sentimentos, uma onda que está percorrendo os movimentos xenófobos em todo o mundo.
O Twitter e o Facebook são meios de comunicação “quentes” que geram reações físicas naqueles que participam deles, o que oferece uma oportunidade de negócio e de obtenção de poder a destacados atores do panorama político. Contudo, alerta Davies, não há um retorno possível à ‘razão’ como única guia de funcionamento. Os sentimentos, nossas reações, são um material delicado, mas nenhuma proposta será ampliada no futuro sem as emoções: sem o amor, o prazer e a raiva.
A entrevista é de Pablo Elorduy, publicada por El Salto, 18-11-2019. A tradução é do Cepat.
Na segunda parte de Estados Nerviosos, você escreve sobre as ideias de Carl von Clausewitz sobre a guerra. Ao ler, me perguntava se estamos nos primeiros anos de algum tipo de guerra.
A definição de guerra tem sido algo muito difícil de definir de um tempo para cá, por duas ou três razões. Em primeiro lugar, cada vez mais, as metáforas e a linguagem da guerra se tornaram muito mais comuns na política. Mas, isso não é totalmente novo porque, como você sabe, nos Estados Unidos houve uma “guerra contra as drogas” sob o mandato de Bush e, depois, houve uma “guerra contra o terror”. Na Grã-Bretanha, neste momento, há indignação pelo fato de Boris Johnson utilizar palavras como “rendição” ou “colaboracionismo” em relação ao Brexit e isso é considerado extremamente perigoso.
Quando a linguagem da guerra entra na política, ocasiona a destruição do espaço de compromisso. Isso significa, basicamente, que se você fala em termos bélicos, deixa de reconhecer que está vinculado a algo. E é isso que a linguagem consegue, por exemplo, quando falamos de guerras culturais, que é uma expressão que prosperou para explicar coisas como divisões nas sociedades democráticas entre, por exemplo, universitários e outros.
Mas, outro aspecto mais próximo às ideias de Clausewitz é que as tecnologias da guerra estão sendo utilizadas indistintamente em conflitos militares e na sociedade civil. Sabemos, por exemplo, que a Rússia pratica a guerra de informações para perturbar democracias em todo o mundo. É um fato que conhecemos, não sabemos exatamente até onde está chegando, mas, sim, está acontecendo ao menos até certo ponto.
Sabemos que o Pentágono está utilizando tecnologias para influenciar as massas, no âmbito civil e econômico, por meio de técnicas de contrainsurgência e contraterrorismo. Escrevi sobre a empresa de Peter Thiel, Palantir, uma companhia comercial que atravessa fronteiras de várias maneiras e obtém muitos contratos em atividades de combate ao terrorismo e para influenciar pessoas. Mas, também está sendo utilizada para a vigilância e potencialmente pode ser utilizada para pesquisas de mercado, porque essas tecnologias nos veem como exércitos de pessoas, como hordas.
E, nesse sentido, a mentalidade da guerra e as técnicas políticas de manipulação, que são potencialmente muito violentas, tornaram-se formas habituais de organizar a sociedade. Dessa forma, os partidos políticos, os movimentos políticos são vistos como um exército a ser mobilizado e não como pessoas que devem ser representadas.
Os sentimentos e emoções são usados como as armas dessa guerra?
A publicidade sempre tentou conduzir as pessoas a esse tipo de comportamento, em muitos sentidos bastante apetitosa. Em meu livro anterior, La industria de la felicidade, que foi publicado três anos atrás na Espanha, eu falava sobre as origens desse esforço de utilização da pesquisa psicológica para tentar fazer as pessoas irem às compras de uma certa maneira e votarem de determinada maneira. Sendo assim, não deveríamos exagerar sobre como são inovadoras essas técnicas. Mas, claramente, essa segmentação psicográfica com mensagens que estão cuidadosamente esboçadas para obter determinada reação das pessoas é um fenômeno muito preocupante.
Sabemos que isso foi decisivo no referendo do Brexit, em 2016. Nos dois dias prévios à votação, a campanha pela saída foi direcionada às pessoas que normalmente não votam. Esse é um aspecto importante dessa nova política, o fato de mobilizar pessoas que antes eram simplesmente apáticas, que não se importavam que a política não fosse para elas. Essas pessoas foram “golpeadas” com imagens terríveis, com a ideia de que a Turquia entrará na União Europeia e se enfiará em sua cidade, etc. Procuram induzir uma série de emoções nas pessoas, mobilizá-las e que votem. E esse tipo de propaganda é propaganda de guerra.
Novamente, possui precedentes, mas a economia de plataformas permite fazer isto de uma maneira mais cuidadosa e estratégica. O santo graal, a principal meta do marketing ou a influência por meio das redes sociais - mais especificamente dos influencers - é produzir conteúdos que gerem adesão.
Esse vínculo pode ter muitos significados, mas também pressupõe algum tipo de reação: que as pessoas prestem atenção, cliquem, curtam ou não esse estímulo – de fato, dar um dislike é tão bom como dar um like, a raiva é tão boa como o amor no contexto das redes sociais –, o que significa que você está se vinculando aqui, em vez de lá. Para aqueles que estão olhando “o outro lado” dessas plataformas isso é uma ciência, precisam averiguar quais tipos de conteúdos são criados por essa adesão, e tende a ser o conteúdo que provoca não o pensamento racional, mas o “corpo emocional”: a parte de nós que reage independentemente do que pensemos, impulsivamente: “isso é asqueroso, isso é assustador ou é maravilhoso”.
Depois do livro, publiquei um artigo sobre por que existem tantos comediantes, hoje em dia, na política: Bepe Grillo, Boris Johnson, que ficou famoso com tertúlias cômicas nos anos 1990, e o novo primeiro-ministro da Ucrânia [Oleksiy Honcharuk]. Hoje, os políticos entraram em um tipo de competição nas redes sociais, veem como o Coringa. A pessoa que faz rir, que consegue uma reação visceral, se torna o personagem ideal para criar essa reação afetiva. Por exemplo, Donald Trump era uma estrela dos reality. Sabia como atuar de determinada forma para que as pessoas sentassem e assistissem. E é isso que nossos políticos são hoje: um cruzamento entre ‘reality show’ e comédia.
O livro defende, de qualquer modo, que Trump e Johnson são sintomas da doença, não a doença em si. Que doença é essa?
Em primeiro lugar, descuidamos dos mecanismos com os quais a sociedade costumava representar a si mesma. Acredito que a democracia liberal e o liberalismo em geral são um projeto de representação complexo. Na primeira parte do livro, procuro explicar que pensamos que a democracia representativa tem dois partidos, um Parlamento, etc., e disso se descuidou muito nos anos 1980, 1990 e 2000, com o discurso de que questões como políticas econômicas deveriam ser tratadas por pessoas que não foram eleitas por ninguém. Refiro-me aos tecnocratas.
Mas, os partidos também se tornaram máquinas, também criaram novas maneiras de manipular através dos meios de comunicação. As pessoas comuns não têm nada a ganhar militando em partidos políticos no sentido do que tinham a ganhar nos anos 1950. Acho que há uma perda aí. Graças a pessoas como Thomas Piketty, sabemos que a desigualdade não é apenas “um sentimento”, sabemos objetivamente o que é e o que está acontecendo. Mas, os economistas desprezaram isso durante muito tempo. Também os governos e os políticos. Muitas vezes, utilizam as estatísticas para silenciar argumentos: “O PIB está crescendo, o desemprego é baixo e tudo está indo bem”. Não está correto: esses números foram usados por muito tempo para suprimir o debate.
Enquanto isso, foi crescendo e crescendo essa outra infraestrutura, principalmente a partir dos anos 1990, que basicamente é uma infraestrutura para lidar com reações em tempo real. Primeiro, foi na economia financeira, que transforma a economia nesse tipo de “estado nervoso”. É um estado nervoso no qual ninguém tem que se responsabilizar e as empresas estão em constante estado de reatividade. Depois, nosso ambiente dos meios de comunicação se moveu de maneira semelhante, com o nascimento das redes sociais e o nascimento de notícias em tempo real. Ninguém precisa de fatos nesse ambiente, tudo o que é necessário é a última atualização, a última imagem.
Há eventos ocorrendo a todo momento – nesses dias, em Barcelona, por exemplo -, mas as pessoas recorrem aos meios de comunicação não para reportagens narrativas ou para encontrar um contexto válido, ao contrário, cada vez mais, a função dos meios de comunicação em nossa vida é cobrir uma demanda: “quero ver a polícia batendo em alguém”, “preciso estar no momento”, “quero sentir como é”... e, você já sabe, isso é difícil. Mas, é isso que as redes sociais nos ensinam a esperar. É o que penso que deve ser explicado: como uma maneira de entender o mundo se deteriorou e como surgiu essa outra.
Para grandes empresas do Vale do Silício, trata-se apenas de dinheiro? Estão tentando demonstrar alguma coisa? Querem levar as democracias a um limite?
Obviamente, atualmente, estão ganhando muito dinheiro. Gigantes como Amazon, Google e Facebook se tornaram condicionantes dos mercados, da sociedade civil e da democracia. E isso é muito perigoso. O Google pode destruir pequenos comércios apenas alterando o algoritmo de seus anúncios. A Amazon pode fazer isso com as livrarias. O Facebook pode fazer isso com democracias. O que eles realmente querem? É difícil saber. Eles ainda têm uma visão iluminada sobre o que estão realizando que, no meu ponto de vista, é algo delirante.
Acredito que é possível dizer que a Amazon tem muitas das atribuições de um estado soberano. Têm a capacidade de destruir. Você já sabe, o Pentágono agora depende da Amazon para a sua computação na nuvem, etc. Por isso, o tipo de concorrência da qual participam, de alguma forma, se entende melhor como uma concorrência de guerra do que como uma concorrência de mercado. As leis antitruste, por exemplo, não funcionam para elas, porque não se englobam em um mercado. Os empresários por trás dessas companhias têm um tipo de mentalidade napoleônica, sentem que estão construindo impérios. Nesse sentido, é uma forma de imperialismo. Não precisam ganhar dinheiro, já ganharam muito, não precisam fazer negócios como tal.
O livro insiste em que devemos entender e utilizar as emoções também para lutar contra esses tipos de manipulação, que possivelmente a razão não seja suficiente para combater essas práticas.
Acredito que a nossa própria compreensão do que significa ser humano é muito diferente do que era há 30 anos. Minha filha tem seis anos, está na escola e em sua classe aprendeu coisas sobre seu cérebro. Trabalham para preparar as criaturas em relação a possíveis problemas de saúde mental, fazem meditação na sala de aula. Eu não gosto muito disso, mas ela fala sobre seu córtex frontal e coisas assim.
Estamos em uma sociedade na qual sabemos certamente mais sobre nossas reações físicas, sobre nosso comportamento e nossas experiências. Os partidos políticos interagem conosco, tentando provocar essas reações instintivas. De alguma maneira, somos “seres reativos”. Felizmente, continuamos “pensando” coisas, mas essa particularidade nossa não substituirá a outra, de repente. E as pessoas não vão dizer um dia: “Temos que confiar nessas outras pessoas por seus modelos, suas teorias ou por seus dados”. Acredito que o desafio é resgatar coisas do projeto liberal, que é um projeto pacifista.
Esse projeto é sobre a defesa da paz e a oposição contra a violência. Se continuarmos pensando dessa maneira, não obstante, temos que compreender aspectos do ser humano que podem ser mobilizados para seguir essa agenda, como uma forma de antiviolência ou não violência, mas também para a preservação da vida e da saúde. O status, por exemplo, dos sistemas de saúde é uma das questões políticas fundamentais.
É claro que precisamos que a lei funcione, mas também precisamos de um tipo de igualitarismo que garanta a vida para toda a humanidade. Acredito que isso está ameaçado, nesse momento. Os muros, as fronteiras que os nacionalistas querem levantar, o que dizem é que existem pessoas que devem morrer e pessoas que devem viver. Este é o terreno no qual a política se movimenta agora, essa é uma agenda na qual as emoções estão no centro. As pessoas precisam se mobilizar, porque aqueles que querem a violência sabem como agir.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu XIX Simpósio Internacional. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, na Unisinos Campus Porto Alegre. (Nota de IHU On-Line).
XIX Simpósio Internacional. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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“A mentalidade da guerra se tornou uma forma habitual de organizar a sociedade”. Entrevista com William Davies - Instituto Humanitas Unisinos - IHU