04 Mai 2023
Sob o título “Filosofia do metaverso e ChatGPT”, o autor de A era do indivíduo tirano fez um alerta sobre “os riscos de abrir mão do controle de nossa linguagem”. Sadin dedicou a primeira parte da sua fala a lembrar o recém-falecido jornalista do Página/12 Eduardo Febbro.
A reportagem é publicada por Página/12, 03-05-2023. A tradução é do Cepat.
Diante de uma sala lotada, com um tom inflamado e espírito performático, o filósofo francês Éric Sadin compareceu à Feira do Livro de Buenos Aires e, em uma intervenção de caráter urgente, convidou para questionar o avanço indiscriminado e acelerado da inteligência artificial em diferentes áreas de nossas vidas, um fenômeno que não hesitou em considerar como um “movimento civilizatório”: “Não é possível que certos engenheiros desconectados da realidade tenham a chave do destino da humanidade e que, além disso, entrem desfilando sobre um tapete vermelho”.
Sob o título “Filosofia do metaverso e ChatGPT”, Sadin falou durante mais de uma hora e foi orientado por perguntas do jornalista Facundo Carmona. Ele se desculpou por não poder se expressar em espanhol sobre “um assunto tão relevante para a linguagem” e dedicou a primeira parte da sua fala a lembrar o jornalista argentino Eduardo Febbro, falecido em Paris em abril. “Eduardo, como correspondente do Página/12 na França, me propôs em 2013 fazer uma entrevista para o jornal e assim nasceu minha relação com a Argentina, com a editora Caja Negra e com o restante da América Latina. Quero homenageá-lo porque foi um grande conhecedor do pensamento francês e porque muito lhe devo. Sou muito grato pelo interesse que ele demonstrou pelo meu trabalho e pela fidelidade que demonstrou com meus livros”, disse, emocionado, perante o público.
“O que é a inteligência artificial? Não sei exatamente. Venho tentando desenvolver essa definição há anos, mas até que ponto essas tecnologias aderem ao nosso discurso é chocante”, analisou o autor de La inteligencia artificial o el desafio del siglo (A inteligência artificial ou o desafio do século), La siliconización del mundo (A silicionização do mundo) e La era del individuo tirano (A era do indivíduo tirano), todos publicados pela Caja Negra. Na mesma linha, assinalou até que ponto a chegada do ChatGPT, a tecnologia da inteligência artificial gerativa, implica uma ruptura: “No momento em que se consolidavam tecnologias dotadas de capacidade de fala e todos nós nos acostumamos a ouvir o Siri com uma voz humana e agradável, espectral... logo então surge o ChatGPT, um sistema que pede instruções e nos torna caprichosos”. Para Sadin, a relação com a instrução entrou na nossa relação com a linguagem e contribui para a “abjeção civilizatória”, que nos afasta do “fazer, do criar, da política, da luta e de tudo o que vai além de dar instruções”.
Com a vivacidade e a autoconfiança de um pop star e diante de uma longa fila de pessoas que se aglomeravam na porta da Sala Carlos Gorostiza, o filósofo foi o primeiro a entrar. Nesse exato momento, foi abordado por uma trabalhadora da Feira que lhe pediu seu “@ no Instagram para compartilhar nas redes da Feira”. “Ouch, não. Não uso redes sociais”, disse-lhe gentilmente o filósofo, que, durante a sua fala, minutos depois, não hesitou em chamar de “criminosos” os engenheiros do Facebook que consideram a democratização da Inteligência Artificial como “um novo Iluminismo”.
Sadin mergulhou inteiramente no tema mais urgente do pensamento e das ciências sociais: o surgimento do ChatGPT e seu impacto na educação, no mercado de trabalho e no presente mais urgente. “Precisamos de menos jornalismo e mais pensamento. Nos últimos anos, percebemos as coisas quando já era tarde demais. Devemos tentar captar o que está por vir e os efeitos de consciência que isso pode engendrar”, defendeu sobre o papel da filosofia em semelhante situação.
Sadin considerou que os tempos se aceleraram entre outubro de 2021, quando Mark Zuckerberg divulgou “um vídeo pré-gravado em que anunciava a todos nós a chegada do metaverso sozinho diante de uma câmera”, e dezembro de 2022, quando “ocorreu um terremoto com a irrupção do ChatGPT”. “É um grande erro conceitual e moral falar em ‘vício em tecnologia’. Não existe tal coisa; o que existe é uma condição existencial pixelizada inaugurada com a chegada dos smartphones e que deixou nossa existência atrelada às telas”, apontou.
Para Sadin, já não são mais os sistemas que organizam melhor as ações para a vida humana, senão podemos confiar a eles “o poder de assumir e lidar com nossas faculdades humanas mais fundamentais: a linguagem e a representação da imagem. E este é um movimento civilizatório com profundas consequências antropológicas”. A mudança é de tal magnitude que considera que “o estatuto do ser humano está sendo redefinido”: “Já não é só a relação com o tempo e o espaço que está em jogo, mas o que se espera do ser humano. E essa ruptura tão forte é reduzida, desnaturalizada e apresentada como uma evolução quase normal do curso da história”.
Questionado sobre o pedido assinado há um mês por magnatas como Elon Musk e intelectuais como Yuval Harari em que pediam uma moratória no desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA), Sadin recorreu à sua autoconfiança e ironia para responder: “Sim, sim, Harari é um historiador… mas um historiador pré-histórico!, que de repente começa a falar sobre IA. E isso se ouve com valor de suma verdade. Até quando vamos aturar isso, é incrível. E bom, Elon Musk é esquizofrênico. É uma das caras da tecnologização das nossas vidas e do desenvolvimento da IA e agora dizem-nos que o mundo vindouro é extraordinário mas que temos de ter cuidado porque pode ser uma catástrofe. Isso é de uma incoerência que não leva a lugar nenhum”.
Sadin entende que “estamos vivendo uma mudança no estatuto das tecnologias no que diz respeito à enunciação da verdade: já não são capazes de apenas coletar e manipular dados, mas também reúnem a capacidade de processá-los, avaliá-los, diagnosticá-los e depois nos dizer o que devemos fazer. As tecnologias de poder combinatório têm o poder de nos sugerir ações e nos dizer o que é verdade e o que não é. E isso é extremamente perigoso, porque a ideia de verdade tem um efeito performativo, influencia o que decidimos fazer”.
O que fazer diante deste cenário? “Bem, podemos bani-lo ao considerar que foi longe demais e enviar todos esses magnatas para fazer permacultura, mas não acho que teremos muito sucesso. Acho que é preciso mobilizar a sociedade e recorrer à sua interposição. Que os professores, cientistas, políticos, estudantes ponham na mesa quais são os riscos de abrir mão do controle de nossa linguagem”, afirmou.
Sadin encerrou sua apresentação na Feira do Livro com um apelo para despertar a sociedade civil: “Não é apropriado que certos engenheiros desconectados da realidade tenham a chave do destino da humanidade e, além disso, entrem desfilando sobre um tapete vermelho”.
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Éric Sadin: “O ChatGPT é um movimento civilizatório com profundas consequências antropológicas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU