02 Agosto 2022
O filósofo francês aponta que esta época está produzindo a "abolição progressiva de todos os fundamentos comuns". Em sua substituição, diz ele, há apenas "um enxame de seres".
A reportagem é de Maria Daniela Yacar, publicada por Página/12, 30-07-2022.
No livro“Na Era do Indivíduo Tirano. O fim de um mundo comum”, o escritor e filósofo francês Eric Sadin oferece um retrato sombrio dessa época. O comum, o político como o conhecíamos, morreu. A sociedade não existe mais; há uma reunião de seres. Surgiu um novo ethos, uma subjetividade favorecida pelo celular e pela internet, que proporcionam autonomia em confronto com um panorama de pobreza, precariedade, desigualdade e humilhação, no qual afetos como ódio e raiva são comuns.
O texto em francês, editado na Argentina por Caja Negra, avança com fluência por dois motivos: não só é uma rica análise cultural e política, cheia de detalhes e boas ideias, mas também se destaca pela prosa e tem voo, algo não tão comum nos livros de filosofia.
Crítico agudo da mutação tecnológica, autor de livros como The Silicon Colonization of the World e Artificial Intelligence. The Challenge of the Century, Sadin aqui muda o foco para focar na psicologia individual e coletiva.
Nesta obra, cada parágrafo vale a pena e cada ideia está perfeitamente ligada à anterior, com um olhar dedutivo que vai do particular ao geral, chegando sempre a algum lugar inesperado.
Resumindo muito, a tese é a seguinte: no decorrer dos anos 2010, emergiu uma nova condição do indivíduo contemporâneo. É constituído por duas tendências opostas, de um "deslocamento".
Por um lado, as pessoas não se sentem no controle de si mesmas, sofrem pressões permanentes no exercício de suas funções, são cada vez mais confrontadas com situações "brutais e precárias", não conseguem sobreviver, agravam-se as desigualdades, os serviços públicos e solidariedade.
Por outro lado, estão munidos de tecnologias que facilitam a sua existência, dão-lhes acesso imediato à informação, dão-lhes voz, permitem-lhes expressar a sua opinião e dão-lhes um sentido de autonomia.
O cerne da era do individualismo tirânico é a "abolição progressiva de todos os fundamentos comuns". Em seu lugar há um “enxame de seres dispersos que pretendem doravante representar a única fonte normativa de referência e ocupar uma posição preponderante de direito”. “É como se, em duas décadas, a intersecção entre a suposta horizontalidade das redes e o desencadeamento das lógicas neoliberais (...) , para fazer prevalecer reivindicações de prioridade sobre suas próprias biografias e condições", explica o autor.
A expressividade é a "nova paixão contemporânea": narramo-nos como se a própria existência fosse excepcional; sentimos paixão por organizar uma narrativa da própria vida. Não nos basta ter experiências, queremos duplicá-las em uma história e só aí elas parecem ter validade. Com base nessa premissa, o pensador dedica páginas e páginas para explorar os detalhes e funções de, entre outras, três das redes sociais mais importantes, por ordem de aparição: Facebook, Twitter e Instagram.
O escritor também aborda plataformas como Uber, que nos permitem avaliar o serviço de cada motorista, ou aplicativos de namoro, que ao nos convidar a deslizar para a esquerda em perfis que não nos interessam, nos fazem sentir donos não apenas de nossos dispositivos, mas também de nossos corpos.
Antes de quebrar as redes sociais - um aspecto muito divertido do livro que acaba de chegar na parte 3 -, Sadin faz um passeio, também cronológico, a partir do pós-guerra, pelas circunstâncias políticas, econômicas e culturais que levaram à ethos atual. Porque esse ethos não nasceu apenas do celular e da internet, Ele foi se construindo.
Ele faz uma breve crônica, década a década, para argumentar como se chegou a um presente de "saturação" em que praticamente ninguém pode imaginar "horizontes providenciais", porque isso seria um luxo.
O ponto de partida é uma rápida análise da origem do liberalismo moderno, através da figura de John Locke. O processo que constrói a era do individualismo tirânico passa também pelo mito do self-made man típico da cultura neoliberal e pelo narcisismo de massa das sociedades de consumo.
Nesta primeira parte começamos a ver algo da abordagem que estará presente ao longo do texto: para Sadin, o mundo cultural ocupa a mesma importância que o político. O objeto de sua análise são os skates, as funções que os programas de rádio incorporam, os reality shows, downloads gratuitos de filmes, Siri, selfies, skates elétricos... Quase tudo era um atentado à sociabilidade. E embora as redes deem a ideia de estarem mais conectadas, é uma ficção sem interferência no plano da realidade.
A pós-verdade e o fenômeno das fake news também fazem parte deste ensaio. Eles fazem parte de uma nova era na liberdade de expressão. O verdadeiro e o falso não se opõem, mas o eu e o nós. Surgem "subjetividades revanchistas", "particularismos autoritários" que lutam para construir sua própria conta das coisas e "torcem o pescoço de todos os discursos que deveriam surgir da ordem 'oficial’".
Um exemplo recente é o que aconteceu na pandemia. A sociedade não está fraturada: não há sociedade. Dentro das minorias, Sadin é implacável com a linguagem inclusiva, o Me Too, a ruptura do gênero binário. Essas dissertações não são muito originais, são também desagradáveis porque parecem ter perdido de vista o lugar de onde enuncia: masculino, ocidental, branco, com lugar reconhecido na palavra pública.
Este é o tempo do ódio, afeto que surgiu nos anos 1990, hoje inerente a todos os indivíduos e canalizado através das redes sociais. No plano político, é o momento de um fenômeno sem precedentes: a repetida vacilação das estruturas tradicionais de poder, a ingovernabilidade permanente.
Nas últimas páginas, o autor enfoca novas formas de violência: desde altercações e comportamentos grosseiros em espaços públicos até assassinatos de pessoas conhecidas ou desconhecidas que funcionam como bodes expiatórios.
Talvez imbuído do clima da época, o filósofo passa algumas linhas traçando hipóteses sobre o futuro: talvez o que virá seja um "fascismo da moda", "um fascismo individual atomizado". Diante dessa possibilidade, a História impõe a reconstrução do comum.
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Éric Sadin oferece um retrato sombrio da nossa época - Instituto Humanitas Unisinos - IHU