11 Julho 2022
Com uma expressão que lembra uma estrela musical, o filósofo francês Éric Sadin (Paris, 1972) se propôs uma tarefa colossal: desvendar episódios que, embora desconcertantes, governam nossas vidas hoje. Por que absurdas teorias da conspiração triunfam, ao mesmo tempo em que as sociedades ocidentais se fragmentam em pedaços cada vez menores?
Em La era del individuo tirano (Caja Negra), uma obra que traz uma nova abordagem crítica à tecnologia, reunindo as contribuições de livros anteriores, como La silicolonización del mundo, busca responder questões assim. A resposta, segundo ele, é multidimensional: não se baseia apenas na precariedade ou na polarização política, mas nasce, em grande medida, de um ethos individualista que governa o mundo há várias décadas.
A entrevista é de Pelayo de las Heras, publicada por Ethic, 08-07-2022. A tradução é do Cepat.
Apesar do otimismo generalizado, após a queda do Muro de Berlim, em “La era del individuo tirano”, você argumenta que foi quando definitivamente se cristalizou a quebra de confiança entre os indivíduos, o corpo social e as instituições. Como a tecnologia nos fez evoluir?
Em duas décadas, experimentamos uma transformação absoluta de nossa percepção das tecnologias digitais. Partindo do entusiasmo inicial, as consciências estão hoje marcadas pela desilusão. Mas entre estes dois momentos houve um meio-termo, quando se jogou o essencial: em inícios dos anos 2010, sistemas dotados de capacidades interpretativas e sugestivas começaram a enquadrar nossas vidas com fins comerciais, apresentando diariamente produtos supostamente adequados para cada um de nós, sempre com o objetivo de hiperotimizar determinados setores da sociedade.
Pensemos no mundo da logística, em que os fabricantes recebem sinais que indicam o que fazer. Este foi o ponto de partida, conforme avançavam meus livros, minha pesquisa sobre a natureza e o alcance dos efeitos induzidos. No entanto, não o vimos claramente e ainda não o vemos. Não estamos mais no momento de elaborar sequer uma crítica ao tecnoliberalismo, mas de alguma forma inverter o foco, apreender os efeitos induzidos em nossas psiques pelo uso mais assíduo das tecnologias digitais.
Em sua obra, conforme indica o título, você fala em “indivíduo tirano”, enfatizando um individualismo extremo desprovido de quase toda coletividade. O que exatamente você quer dizer com esse conceito?
Vivemos um momento de extrema saturação na ordem política e econômica que reaviva a intenção de não ficar de braços cruzados. Isso está em vigor há quase meio século. Desde então, a maioria se dividiu entre dois estados opostos: por um lado, a constatação de não mais pertencer a si mesmo e enfrentar situações cada vez mais precárias, por outro, o fato de utilizar tecnologias para facilitar nossa existência, o acesso imediato à informação, a formulação de opiniões e essa sensação de ganhar ainda mais poder.
É uma tensão explosiva, pois contribui para nos imaginarmos como sujeitos autárquicos, voltados para nossos instrumentos – que supostamente nos oferecem maior controle –, libertando assim a expressão contínua de nosso ressentimento. Esta seria a era do indivíduo tirano: uma condição civilizatória sem precedentes que contempla a abolição progressiva de uma base comum para dar lugar a um enxame de seres que se consideram tão enganados que não conseguem dar crédito à sua própria percepção das coisas.
Você fala do smartphone como uma ferramenta essencial por contribuir, com as possibilidades que oferece, em situar o indivíduo como a primeira e última instância de um poder legítimo, criando uma sensação de falso controle da realidade. Nesse sentido, até mesmo a letra 'i' de iPhone é simbólica.
Durante os Trinta Gloriosos, a indústria desenvolveu produtos que respaldaram o processo de individualização, como o automóvel, o camping e o magnetoscópio. Técnicas que davam a sensação de viver a vida que se deseja.
Em fins dos anos 1990, surgiram simultaneamente dois dispositivos que dariam uma nova dimensão a esse movimento: a internet e o celular. Eles nos permitiam maior mobilidade e ampliavam o acesso à informação, gerando a ilusão de nos sentirmos mais ativos (no sentido de atuar, de realizar). Porque a utopia da emancipação pelas redes é uma fábula. Quem poderia acreditar que através de simples trocas em fóruns online, iríamos nos livrar de nossas alienações?
Por outro lado, muito cedo se criou um mito: o de maior autonomia e valorização de nosso capital humano. Essa letra ‘i' que você menciona foi celebrada em todos os lugares, consolidando o indivíduo autorrealizado: as pessoas se apropriavam das lógicas neoliberais, mas sob uma forma aparentemente cool e o smartphone ampliou o fenômeno. O círculo está fechado: o tecnoliberalismo gerou um autoliberalismo.
O falso empoderamento é a razão de se concentrar especialmente nas redes sociais?
As redes encarnam os dispositivos que generalizariam uma relação inflada com a realidade e os outros. Decolaram em fins dos anos 2000, quando a maioria vivia com a sensação de inutilidade e invisibilidade social. Então, uma plataforma permitia se expor diante dos outros, enquanto recebia um banho de satisfação simbolizado por um polegar ereto.
Durante a crise de 2008, que respaldou uma desconfiança nas instituições econômicas e políticas, o Twitter deu voz ao ressentimento com fórmulas sucintas que favoreceram a afirmação categórica e rapidamente levaram a uma brutalização dos intercâmbios. No momento em que a indústria digital estava ocupada mercantilizando a totalidade de nossas vidas, proporcionou uma interface destinada a criar uma aura simbólica. Quanto ao Instagram, esta rede levou a uma estilização pública da existência com a finalidade de monetizar o poder de recomendação.
Você rejeita uma das principais teses sobre o capitalismo atual, que é a de “capitalismo de vigilância”, de Shoshana Zuboff. Onde estamos, então?
A vigilância caracteriza-se pela coleta de informações para fins de controle disciplinar, algo que só é utilizado pelos Estados. Para a indústria digital pouco importa nos espionar, o que deseja é penetrar em nosso comportamento – geralmente com o nosso consentimento – com o único objetivo de definir o rumo de nossas vidas diárias. Mais concretamente, trata-se de um capitalismo da administração de nosso bem-estar, no qual não paramos de nos abrigar.
Não pode mais ser apenas o momento de denunciar os gigantes digitais que nos absolvem de nossa parcela de responsabilidade. É preciso entender que nossos usos têm gerado surdez entre os diversos componentes do corpo social, principalmente pela declaração ad nauseam de nossas opiniões nas redes sociais.
Tais práticas nada mais fazem do que consolidar nossas próprias crenças, suscitar tensões interpessoais que provêm de uma ilusão de envolvimento político, pois em geral se dão à margem de qualquer compromisso específico. Essa grande dissimetria entre o discurso e a ação representa um drama de nossa época.
A sensação de poder oferecida pelos dispositivos tecnológicos, a sensação de ter sido politicamente enganados e a vontade de não continuar sendo enganados é o que cria a situação de “ingovernabilidade permanente” que você defende?
Desde inícios de 2010, não pararam de martelar que estamos frente a um aumento dos populismos. É uma leitura que não me parece adequada para analisar fenômenos inéditos, pois quem diz populismo supõe aspirações comuns, promessas feitas por figuras fortes a quem as massas dão a sua aprovação.
No entanto, hoje, estamos tratando da chegada de uma nova condição de indivíduo contemporâneo, como resultado de suas feridas, em um momento da história que, década após década, trouxe muitas experiências fracassadas. Nisto, a ira atual surge menos de motivos ideológicos do que de afetos subjetivos, que se expressam com o smartphone na mão. Esse novo ethos embaralha as cartas do pacto entre governantes e governados para desvelar o que chamo de estado de ingovernabilidade permanente.
A pandemia marcou um antes e um depois em nossa concepção tecnológica?
Da noite para o dia, o confinamento impôs a necessidade de realizar muitas atividades comuns online. Isto teve três efeitos importantes. Primeiro, uma intensificação repentina do uso de protocolos digitais. Segundo, a extensão destes para muitas atividades, algumas que até agora era inimaginável que pudessem acontecer de forma remota.
E, por fim, o terceiro efeito: um fenômeno de naturalização, como se agora fosse normal realizar atividades humanas sem uma presença carnal compartilhada. Atravessamos o limiar de uma nova condição, individual e coletiva, marcada por uma relação com os sistemas digitais cada vez mais totalizadora.
Agora, a crise econômica que viveremos e que se traduzirá especialmente na necessidade de reduzir custos, vai nos levar ao fortalecimento de processos como o teletrabalho. Por exemplo, os funcionários do Facebook que desejarem poderão teletrabalhar de forma permanente. Por sua vez, o Daily News se tornou o primeiro jornal sem uma redação física. Onde quer que a distância possa destronar o face a face, assim será.
Estamos assistindo a um progressivo apagamento do corpo e da presença e veremos chegar uma nova globalização, a dos serviços, onde a localização será cada vez menos relevante e o assalariamento será questionado a favor do trabalho por encomenda. Então, será necessário que todas essas mudanças, bem como o alcance de suas consequências, sejam objeto de debates e acordos. Caso contrário, inevitavelmente surgirão novas formas de concorrência desleal entre os países do Norte e do Sul.
Há um fracasso desse ideal iluminista que almeja conjugar a autonomia com o interesse geral?
Exatamente. Hoje, entendemos que o individualismo liberal é um mito que durou mais de dois séculos. Ao final de uma sequência muito longa, só nos resta tomar nota do fracasso desse pacto político supostamente virtuoso, porque nunca deixou de gerar desigualdades e feroz concorrência, enquanto em uma corrida desenfreada busca o progresso sem fim, que nos levou à beira do precipício.
Também é preciso destacar que voltou a ser recolocado repetidamente sobre bases mais equitativas para acabar produzindo, como é inevitável, o mesmo resultado. Nesse sentido, deveríamos nos esforçar para definir de forma muito diferente os termos desta nobre aspiração inicial. E isso exige constatar que o princípio de delegação como modo exclusivo de governança está esgotado, para então implementar uma infinidade de práticas capazes de nos tornar mais atores de nossas vidas.
“A fase destrutiva dos protestos nunca dá lugar a uma fase construtiva”, lê-se em ‘La era del individuo tirano’. Estamos sequestrados por uma espécie de niilismo universal? E mais, é possível enxergar hoje alguma dimensão construtiva?
Deveríamos trabalhar para o estabelecimento de uma democracia radical, nas palavras do filósofo John Dewey. Mais do que instituir uma renda universal, seria sensato que os fundos públicos pudessem apoiar todos os tipos de projetos que busquem estabelecer formas de organização menos preocupadas com o lucro e que visem a melhor expressão de cada um no campo do cuidado, educação, artesanato etc. O alternativo não deve ser um ato heroico, mas deveria ser incentivado em todos os níveis.
Devemos defender o direito de experimentar outros modos de existência mais virtuosos e solidários: é hora de frustrar as paixões tristes que nos minam, atiçadas pela amarga sensação de sentir nossa própria inutilidade, para substitui-las pela lógica inversa. Em outras palavras, a alegria de se envolver em assuntos comuns e de se sentir plenamente envolvido no desenvolvimento de nossos destinos individuais e coletivos. Caso contrário, é provável que a fúria de todos contra todos se torne o traço dominante da época.
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“Nossa época está marcada pela ingovernabilidade permanente”. Entrevista com Éric Sadin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU