07 Outubro 2024
"A autoridade feminina na Igreja pode dizer respeito ao Corpo de Cristo, não só no seu sentido eclesial, mas também no seu sentido sacramental: de fato, eu diria que só pode dizer respeito ao primeiro se diz respeito também ao segundo. Ai de nós se renunciarmos a esta nova evidência, desenvolvida com o Concílio Vaticano II, devido à incapacidade de pensar a autoridade das mulheres no contexto contemporâneo e no 'espaço público'", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, em artigo publicado por Come Se Non, 07-10-2024.
Com um comentário à publicação da minha postagem, Giuseppe Guglielmi captou um ponto importante do estilo teológico e institucional com o qual o Dicastério para a Doutrina da Fé definiu a pars construens do futuro documento sobre as mulheres na Igreja. Aqui está o que o teólogo de Nápoles observou:
"Não sou bom em distinções eclesiásticas e em atos de equilíbrio, mas me parece que com o n. 3 (história das mulheres com autoridade eclesiástica) queremos, não distinguir, mas pelo menos estender o poder jurídico para além do poder da ordem, de modo a incluir os não clérigos e, portanto, também as mulheres, em tarefas que até agora foram reservadas ao clero? Esta é a posição defendida há algum tempo por vários canonistas...".
Precisamente neste ponto creio que as tradições canônica e teológica devem confrontar-se mais profundamente e desenvolver novos modelos de leitura da tradição e, assim, abrir também novos caminhos para a Igreja do futuro. Na verdade, parece-me que entre as “fontes” que o Relatório do Grupo 5 indica como pontos de referência para o futuro documento, pelo menos duas caminham precisamente na direção indicada por Giuseppe Guglielmi. Na verdade, o breve documento refere-se a uma “teoria” que foi proposta abertamente em Querida Amazônia, onde é afirmado no n. 103:
"Numa Igreja sinodal, as mulheres, que de fato realizam um papel central nas comunidades amazônicas, deveriam poder ter acesso a funções e inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra e permitam expressar melhor o seu lugar próprio. Convém recordar que tais serviços implicam uma estabilidade, um reconhecimento público e um envio por parte do bispo. Daqui resulta também que as mulheres tenham uma incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das comunidades, mas sem deixar de o fazer no estilo próprio do seu perfil feminino”.
O modelo aqui proposto volta a uma divisão entre “ordem” e “jurisdição” que é herança da Igreja latina há mais de um milênio.
Neste modelo medieval e moderno, que remonta a 1983 e que não foi concebido segundo o pensamento funcional tardo-moderno, os dois poderes (o da ordem e o da jurisdição) eram chefiados por dois sujeitos distintos.
O sacerdote-presbítero era o guardião do poder de ordem, enquanto o bispo era o titular do poder de jurisdição. Tomás de Aquino disse, num esplêndido resumo: o poder da ordem é a autoridade sobre o Corpo sacramental de Cristo; o poder de jurisdição é a autoridade sobre o Corpo eclesial de Cristo. Segundo este modelo, que vigorou essencialmente até o Concílio Vaticano II, o episcopado não era um grau do “sacramento da ordem”, como lemos novamente no cân. 949 do Código de 1917.
Desta forma, poderíamos ficar muito surpresos ao saber que as mulheres, se investidas de autoridade eclesial, assumiriam aspectos extraídos do modelo clássico do bispo, em vez do padre. Elas teriam autoridade sobre a Igreja como Corpo institucional de Cristo, sem poder ter qualquer autoridade sobre o Corpo Eucarístico de Cristo. Ao contrário dos “homens leigos”, que sempre poderiam ser ordenados, a mulher “poderosa” em termos de jurisdição seria sempre sacramentalmente “impotente”.
Obviamente, o novo modelo, introduzido pelo Concílio Vaticano II e depois pela reforma do Código de 1983, repensa completamente as coisas. A distinção já não é entre potestas ordinis e potestas iurisdictionis, mas entre as tria munera (reais, proféticas e sacerdotais) nas quais participam todos os batizados, enquanto os ministros ordenados (diáconos, presbíteros e bispos) exercem o funções de governo, anúncio e santificação de forma específica, sem qualquer separação entre as três funções. O modelo do Vaticano II não pode ser bem gerido se a distinção entre “ordem” e “jurisdição” for reintroduzida, precisamente porque é uma forma diferente de pensar sobre a autoridade.
Para compreender os limites desta proposta, que parece convencer alguns canonistas, basta citar dois elementos da tradição medieval e moderna sobre o episcopado, que esquecemos. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que os “ordenados” eram os diáconos e os presbíteros (sacerdotes), enquanto os bispos eram “consagrados”: o ato pelo qual alguém se tornava bispo não era um sacramento!
A teologia medieval teve, portanto, de inventar a categoria do “sacramental” precisamente para justificar a importância da “consagração episcopal”, que para eles não era um sacramento. É curioso saber que as nossas discussões atuais sobre a “bênção” (mesmo de casais em condições irregulares) têm como precedente as discussões medievais sobre a consagração episcopal.
Isto também implicou uma grande diferença no pensamento sobre as “condições” e “impedimentos” para a ordenação e consagração: por exemplo, a menor idade era um impedimento para a ordenação, mas não para a consagração episcopal. Na história, ainda no século XVI, ainda temos bispos consagrados aos 12 anos, enquanto as pessoas só se tornavam sacerdotes aos 25 ou 30 anos!
Não é por acaso que o sexo feminino, que ainda hoje é considerado um impedimento à ordenação, não é, de fato, um impedimento à assunção de cargos de jurisdição. A história nos ensina algo, mesmo que não garanta que sempre encontraremos o melhor caminho.
Gostaria de recordar aqui, com grande simpatia, uma expressão fenomenal do Pe. Ghislain Lafont, quando disse que a maior inovação do Concílio Vaticano II foi a recuperação do caráter sacramental do episcopado.
Há muitos anos, ao ouvi-lo, não entendi muito bem o que ele queria dizer e por que dava tanta importância a algo que me parecia secundário. Esta recuperação, na realidade, transforma radicalmente a mentalidade do exercício da autoridade na Igreja Católica. Nesta novidade insere-se também a nova versão do “poder de governo”, que tem como condição de exercício a ordenação, algo que só lemos no direito canónico desde 1983 (cf. cân. 129).
É claro que a nova visão ganha muito no plano teológico, mas também pode ser a base para uma maior “clericalização”. Se a ordenação é uma condição para o exercício da jurisdição, isso não é novidade.
Por esta razão, parece inevitável que a possibilidade de atribuir autoridade às mulheres não resulte da exumação de antigas distinções, usadas de forma asséptica, mas apenas de uma reflexão mais profunda sobre a recém-descoberta unidade de ordem e jurisdição. Seria paradoxal se, apenas para as mulheres, tivéssemos que reintroduzir no corpo eclesial uma separação entre ordem e jurisdição que o Concílio Vaticano II pretendeu explicitamente superar.
Seria igualmente paradoxal pensar que a clericalização – como parece implicar a Querida Amazônia e na sua esteira também os antevisões do novo documento do Dicastério apresentado pelo grupo n. 5 – é fruto da ordenação sacramental e não do exercício de jurisdição em ofício eclesial.
Pensar que o “caráter feminino” só é salvaguardado pela “ausência de ordenação”, e que pode, pelo contrário, ser totalmente compatível com qualquer forma de exercício da jurisdição não sacramental, parece contraditório e difícil de justificar.
Aparece como a longa sombra de um preconceito, talvez repleto de “princípios marianos” ou “gêneros gramaticais femininos da palavra ‘Igreja’”, usados mais uma vez como uma posição contra uma nova consciência cultural e eclesial. Uma “marca feminina” garantida pela reserva masculina à ordenação, que pode ser perdida pelo exercício da jurisdição, parece ser uma tese sem qualquer fundamento.
Mesmo esta perspectiva de “valorização das mulheres”, que pode dizer respeito a cargos de importância eclesial, desde que não diga respeito à ordenação, parece-me guiada por um preconceito não teológico, mas por um déficit cultural.
A autoridade feminina na Igreja pode dizer respeito ao Corpo de Cristo, não só no seu sentido eclesial, mas também no seu sentido sacramental: de fato, eu diria que só pode dizer respeito ao primeiro se diz respeito também ao segundo. Ai de nós se renunciarmos a esta nova evidência, desenvolvida com o Concílio Vaticano II, devido à incapacidade de pensar a autoridade das mulheres no contexto contemporâneo e no “espaço público”.
Devemos pensar numa mulher que possa ser reconhecida na sua autoridade também graças às categorias de recuperação da sacramentalidade episcopal, sem necessariamente ter que ressuscitar os homens diplomáticos e seculares do antigo Caeremoniale Episcoporum... para nos permitir tolerar o fato de uma mulher poder “presidir” um cargo, também poder presidir uma comunidade, mas continuar a não ter nenhum papel presidencial no altar.
Esta resistência instintiva e visceral, embora encoberta por supostos “princípios”, assemelha-se mais a uma suspeita de “impureza” do que a um claro raciocínio jurídico.
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Mulheres: diaconato não, episcopado sim? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU