04 Setembro 2024
"Já é passado o momento de se compreender, de uma vez por todas, que o ciclo de violência presente entre Israel e a Palestina há décadas não vai se resolver com mais medidas violentas. É preciso que os atores envolvidos encontrem novas formas de negociação para que um acordo político real e duradouro seja uma possibilidade", escreve Carla Habif, doutora em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em artigo publicado por The Conversation, 03-09-2024.
Após quase um ano da escalada de violência sem precedentes entre o governo de Israel e o Hamas, a sociedade israelense se engaja de forma cada vez mais intensa no que se mostra ser, até agora, a maior mobilização social e econômica para pressionar o governo pela assinatura de um acordo de cessar fogo que poderá salvar a vida dos reféns ainda em posse do grupo palestino.
Este movimento ocorreu após o anúncio realizado pelo exército de Israel no último domingo, afirmando ter encontrado e recuperado os corpos de seis israelenses que estavam sequestrados desde os ataques de 7 de outubro.
O porta-voz das Forças de Defesa de Israel declarou, ainda, que as seis pessoas provavelmente foram assassinadas pouco tempo antes da chegada das tropas israelenses, após sobreviverem onze meses de cativeiro.
O anúncio das mortes gerou uma mobilização profunda na sociedade israelense, que organizou diversos protestos massivos no último domingo. Estes protestos se mantiveram na segunda-feira, espalhando-se por todo o país, que aderiu ao chamado de greve geral convocado pela liderança da Histadrut (Organização Geral dos Trabalhadores de Israel).
A reação da população e da oposição política é direcionada ao governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que até o momento não assinou um acordo com o Hamas que garanta o retorno dos reféns israelenses.
O Fórum das Famílias dos Reféns e Desaparecidos publicou em suas redes sociais chamados para as manifestações de domingo, com cartazes contendo fotos dos seis reféns que foram, segundo eles, “oficialmente abandonados para morrer”.
Publicação do Fórum das Famílias dos Reféns e Desaparecidos.
As legendas traziam informações sobre locais de encontro para as passeatas e críticas ao governo. Uma delas dizia o seguinte: “Vocês abandonaram eles! O sangue deles está nas suas mãos. Vocês podiam ter salvado eles; eles estavam vivos. Votando contra o acordo, vocês selaram o destino deles. Nós não ficaremos mais parados! Nós não vamos permitir que mais sequestrados paguem o preço do abandono”.
A postagem e a foto em questão se referem aos políticos que votaram no Gabinete de Segurança pela manutenção das Forças Armadas de Israel na faixa territorial entre Gaza e Egito conhecida como Corredor Filadélfia.
Essa posição inviabiliza um acordo com o Hamas pelo cessar fogo e o retorno dos reféns, já que o grupo palestino exige e retirada do exército israelense da região - um movimento que, por ora, ainda se mostra muito difícil de acontecer, como reforçou nesta terça-feira, dia 3 de setembro, o próprio primeiro-ministro, em entrevista a uma rede de TV.
Políticos que votaram para a manutenção das Forças Armadas de Israel.
As críticas a Netanyahu, no entanto, não são limitadas a esta votação. Para compreender o atual cenário, é importante localizá-lo no contexto mais amplo da dinâmica da ocupação por parte de Israel nos territórios palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.
Neste sentido, o longo governo do atual Primeiro Ministro é responsável por uma constante escalada na violência nos territórios ocupados. Para citar alguns exemplos, o relatório da Human Rights Watch, publicado no início de 2023, analisa que as autoridades israelenses dobraram a violência em relação aos palestinos nos territórios ocupados desde 2022.
O relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre a situação dos territórios ocupados, publicado também em 2023, indicou que 2022 foi o ano com o número de mais mortes de palestinos por provocado por parte das Forças de Defesa de Israel nos últimos 17 anos, e marcou o ano com mais mortes de israelenses em decorrência do conflito desde 2016. E, como podemos comprovar ao abrir os jornais todos os dias no decorrer destes últimos 11 meses, esses números vem subindo cada vez mais ao longo de 2024.
A atual escalada das hostilidades em resposta aos ataques do Hamas ao sul de Israel representa a intensificação de medidas violentas que até o momento só resultaram em um aprofundamento das tensões e um aumento no número de vítimas do conflito. Desta forma, as críticas a Netanyahu são, na realidade, muitas. Falou-se bastante sobre o ataque do Hamas no 07-10-2023 ter quebrado o status quo na região.
Por mais terrível que os ataques tenham sido e por mais condenável que seja o assassinato, tortura e sequestro de civis, é necessário compreender que o que está sendo chamado de status quo não era um contexto nem pacífico nem mais tranquilo, para nenhum lado.
Por 11 meses desde o ataque, o governo de Netanyahu tem lidado com a resposta ao 7 de Outubro da mesma forma como vem lidando por mais de uma década de liderança política: com aumento da violência e intensificação de medidas de ocupação. É muito difícil de entender a lógica de que reproduzir, de forma muito mais escalonada, as exatas medidas que resultaram na situação atual pode melhorar a situação na região ou resultar em algum possível acordo de cessar fogo.
As famílias dos israelenses que seguem em cativeiro levantam para o fato, ainda, de que o que está em jogo é a vida de seus entes queridos. Não tem nada mais urgente do que trazê-los para casa. Qual o valor que o governo tem dado a cada uma destas vidas, a cada cônjuge, avô, pai, mãe, filho, filha? Como entender que as medidas tomadas pelo governo são em prol da segurança se elas estão falhando em chegar a um acordo e, a cada dia que passa, mais vidas estão em risco de serem perdidas?
As manifestações dos últimos dois dias levantam a necessidade do governo de se responsabilizar pela vida de seus cidadãos. Ainda com a notícia do assassinato recente dos seis israelenses, Arnon Bar-David, o chefe da Federação Trabalhista Histadrut - o maior sindicado trabalhista do país - declarou greve geral, com o objetivo de pressionar o governo a chegar a um acordo.
Durante sua fala pública, Bar-David declarou que “Um acordo é mais importante do que qualquer outra coisa… Nós estamos recebendo cadáveres em sacos em vez de um acordo”. O chamado de greve foi bem recebido pelo Fórum das Famílias dos Reféns e Desaparecidos, que apoiou a iniciativa. Nesta segunda-feira, porém, Bar-David declarou que respeitará a ordem judicial que determinou o fim da greve.. Mas não resta dúvida de que o movimento aumentou em muito a pressão social sobre o governo.
Diversos setores aderiram à greve, inclusive o aeroporto internacional de Ben Gurion que parou suas atividades por horas antes de retomar os voos. Escolas, comércios e setores de transporte paralisaram por tempo integral ou parcial por todo o país.
As manifestações de domingo representaram a maior mobilização de pessoas indo às ruas pedindo por um acordo de cessar-fogo que garanta o retorno imediato dos reféns até o momento. Segundo as redes sociais do Fórum das Famílias dos Reféns e Desaparecidos, mais de 500 mil pessoas foram aos protestos por todo o país, sendo cerca de 300 mil em Tel Aviv. Em Jerusalém, um grupo grande de manifestantes se reuniu em frente ao gabinete do primeiro-ministro durante os protestos.
Os protestos continuaram ao longo da segunda-feira, concomitantemente com a greve geral por todo o país. Os protestos organizados ocorreram novamente com dezenas de milhares de participantes em diversas localidades, incluindo em frente à casa de Benjamin Netanyahu, em Jerusalém. As manifestações estão sendo majoritariamente não violentas, embora em diversos casos as pessoas presentes tenham enfrentado choques com a polícia.
Em meio às críticas, Netanyahu segue alegando que suas decisões políticas em relação à investida em Gaza, incluindo a manutenção do Corredor Filadélfia, são em prol da manutenção da segurança de Israel e afirma que se o Hamas segue assassinando reféns é porque não está interessado em fazer um acordo. Nesta segunda-feira (02/09), em um movimento raro, o Primeiro Ministro se desculpou às famílias das seis vítimas encontradas mortas.
Ao longo de seu discurso para a imprensa, ele defendeu a posição de não se retirar do Corredor Filadélfia e afirmou que o Hamas vai pagar caro pelas mortes. As famílias das pessoas assassinadas e sequestradas seguem presentes nos protestos, afirmando que Netanyahu é o chefe da nação e que tem a responsabilidade de trazer seus cidadãos seguros para casa.
É importante ressaltar que a escalada da violência desde o 7 de Outubro de 2023 já dura onze meses e resultou na morte de mais de 40 mil palestinos e mais de 1.100 israelenses, Das 251 pessoas sequestradas pelo Hamas, mais de 90 ainda seguem reféns do Hamas. Não é certo quantas permanecem vivas. Na última segunda-feira, o Hamas anunciou que se a pressão militar por parte de Israel continuar, o restante dos reféns voltará ao país em caixões.
Já é passado o momento de se compreender, de uma vez por todas, que o ciclo de violência presente entre Israel e a Palestina há décadas não vai se resolver com mais medidas violentas. É preciso que os atores envolvidos encontrem novas formas de negociação para que um acordo político real e duradouro seja uma possibilidade. Neste sentido, em um momento no qual políticos à frente das decisões de ambos os lados não parecem estar abertos a medidas eficientes de negociação, a mobilização civil é essencial para o aumento da pressão política.
Do lado israelense, Netanyahu segue apoiado pela maioria de cadeiras que sua coalizão tem no Parlamento. A retirada de apoio e a pressão por parte dos civis representa uma forte estratégia não violenta que, se mantida e difundida, tem o potencial de gerar mudanças políticas necessárias.
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Manifestações se espalham por Israel e ampliam pressão por mudança de postura no impasse com Hamas. Artigo de Carla Habif - Instituto Humanitas Unisinos - IHU