31 Agosto 2024
"Na Europa, todos os vetores apontam para a guerra e nenhum para a negociação", escreve Rafael Poch, jornalista espanhol, autor de livros sobre o fim da URSS, Rússia de Putin e China, em artigo publicado por CTXT, 30-08-2024.
O verão tem sido carregado de opróbrio. Em Washington, uma cúpula da OTAN confirmou em julho a vontade de escalar os riscos militares contra a Rússia e contra a China. O mais grave foi o anúncio do presidente Biden e do chanceler Scholz de que em 2026 serão implantados mísseis nucleares na Alemanha.
Na França e na Grã-Bretanha, foi votado em eleições nas quais a suposta vitória da “esquerda” não diminuirá nem um ápice a tensão militar internacional, nem na Ucrânia, nem no Leste Asiático, nem em Gaza.
Na França, a união do que se chama “Novo Front Popular”, e que na verdade é uma frágil aliança da “esquerda de direita” (compatível com o apoio a Israel, o envio de armas para a Ucrânia e o neoliberalismo com ênfase nos “estilos de vida”) com a esquerda de Mélenchon, não venceu as eleições (200 deputados frente a 350 da direita), mas apenas adiou a vitória da extrema-direita, como explica Serge Halimi.
Enquanto isso, foram realizados em Paris os Jogos Olímpicos, nos quais foram vetados os atletas russos e bielorrussos, por feitorias de seus governos incomparavelmente mais leves do que as de Israel e seus cúmplices dos Estados Unidos e da União Europeia.
Como apontou um observador, foi obsceno ver toda aquela gente falar sobre suas taxas escolares e seu serviço nacional de saúde, enquanto as escolas de Gaza estão destruídas e suas economias nacionais são destinadas a bombardear todos os hospitais. “Está sendo realizado um genocídio em seu nome e com seu cartão de crédito, e os britânicos (e franceses) literalmente o subscrevem no ato de votar”.
O anúncio do despliegue de mísseis nucleares na Alemanha que na década de 80 provocou um gigantesco movimento pacifista, particularmente na Alemanha – incluindo a Alemanha Oriental contra os mísseis soviéticos – passou sem pena nem glória. A oposição da opinião pública é majoritária, mas passiva. Somente a formação de Sahra Wagenknecht se pronuncia contra e é denegrida por isso por veículos de comunicação cuja toxicidade não tem precedentes. Também na França, onde Mélenchon é acusado de “antissemitismo” por dizer a verdade sobre Gaza, assim como foi feito na época, com grande sucesso, com Jeremy Corbyn na Grã-Bretanha. Ao contrário daquele, Mélenchon não se amedronta, mas o desgaste é um fato. Na matriz do eixo europeu estão sendo detidas e criminalizadas pessoas por empunharem a bandeira palestina, enquanto avança o cenário de uma crise nuclear no continente, como as da Guerra Fria, com a diferença de que agora não temos todos aqueles acordos, mecanismos e fóruns de controle de armas de destruição em massa dos quais os Estados Unidos se retiraram unilateralmente. As detestáveis ameaças e advertências nucleares da Rússia, que no entanto são uma resposta à ruptura do cânone da relação entre potências nucleares vigente durante décadas, são trivializadas.
Na Ucrânia, que já perdeu um terço de sua população e um quinto de seu território nacional, o desastre se aprofunda. A vantagem em termos de democracia que aquele país teve em relação à Rússia foi completamente perdida em matéria de liberdades, pluralismo e repressão. A ditadura de guerra acaba de ilegalizar em Kiev a igreja ortodoxa, subordinada há séculos ao patriarcado ortodoxo de Moscou. Essa igreja é majoritária no país, 7.600 das 12.000 congregações ortodoxas da Ucrânia pertenciam a essa igreja, que se em Moscou abençoa a guerra de Putin, na Ucrânia era muito mais discreta, longe da “quinta coluna” que a propaganda nacionalista ucraniana difunde. Em nossos católicos diários encontrarão, em pequenas colunas, a condenação do papa Francisco a essa proibição orwelliana.
Enquanto isso, aprofunda-se o grande esquema para evitar ir ao front. Cerca de 800.000 homens ucranianos em idade militar “passaram para a clandestinidade”, mudando de residência e trabalhando na informalidade para não deixar registro laboral e escapar da mobilização, informava em 4 de agosto o Financial Times, citando o chefe da comissão de desenvolvimento econômico do Parlamento ucraniano, Dmitri Nataluji. Radio Free Europe, o veterano aparato da CIA no antigo bloco do Leste, informa que 23.000 homens ucranianos foram detidos nos últimos dois anos e meio tentando cruzar ilegalmente a fronteira com a Moldávia, enquanto o rio Tisza, que marca a fronteira com a Hungria e a Romênia, é chamado de “rio da morte” na imprensa húngara, devido ao gotejamento de ucranianos que se afogam nele tentando fugir da mobilização.
Com o rolo compressor militar russo avançando lenta mas inexoravelmente nas amplas frentes do Donbass, é hora de medidas extremas. Parece confirmado que os ucranianos planejavam tentar eliminar fisicamente Putin e seu ministro da Defesa durante o desfile da marinha russa organizado em 28 de julho em São Petersburgo, informou recentemente o jornal alemão Frankfurter Rundschau. Em todo caso, os militares russos entraram em contato com o secretário de Defesa americano Lloyd Austin para adverti-lo contra tais temeridades. Muitos observadores militares ocidentais e russos – mas os significativos aqui são os ocidentais – acreditam que a incursão militar ucraniana na região russa de Kursk iniciada em 6 de agosto, com grande protagonismo britânico, segundo a imprensa de Londres, faz parte dessa temeridade. Dizem que é um golpe de efeito desprovido de qualquer sentido militar que provavelmente terminará em desastre. Pode ser que seu sentido fosse estourar os gasodutos que alimentam com energia russa países europeus rebeldes como Hungria e Eslováquia, cujo primeiro-ministro foi alvo de um atentado do qual mal se falou apesar de seu contexto malcheiroso, assim como a ameaça à central nuclear de Kursk que não se concretizou. Em suma, uma espécie de castigo e uma aparente demonstração de força para incentivar os padrinhos ocidentais a se envolverem ainda mais no negócio, que pegou os russos de surpresa, o que não deixa de ser surpreendente...
Na Europa, todos os vetores apontam para a guerra e nenhum para a negociação, apesar de que essa é a opção favorecida pelos europeus nas pesquisas com enorme vantagem (88%), frente aos objetivos de “enfraquecer a Rússia” ou “restabelecer as fronteiras da Ucrânia anteriores a 2022”. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, fala mais como um militar quando diz que “o conflito se resolverá no campo de batalha” e defende a eliminação das poucas restrições restantes para utilizar contra território russo os mísseis ocidentais. Sua sucessora designada, a delirante estoniana Kaja Kallas, defensora de reiniciar a mente do povo russo, promete ser ainda pior. Nesse contexto, o chefe de governo húngaro de direita, Viktor Orbán, foi o único a tomar uma iniciativa diplomática carregada de bom senso, mantendo conversas sobre uma possível solução negociada com: (neste ordem) Zelensky, Putin, Pequim e Washington (incluindo Trump). O boicote e a indignação dos líderes de Bruxelas e dos chefes de governo europeus contra a iniciativa de Orbán resumem bem a situação.
Com seu habitual bom senso, o economista americano Michel Hudson diz que essencialmente a guerra da Ucrânia é uma guerra contra a Europa, pois a torna menos competitiva em relação à economia americana e de passo a amarra política e militarmente aos interesses geopolíticos de Washington com o horizonte de um confronto com a China. É surpreendente até que ponto os incompetentes políticos europeus como Von der Leyen, Scholz, Baerbock e tantos outros são até mais beligerantes do que os próprios americanos nessa corrida que prejudica seus países.
Em sua entrevista à revista Time de 4 de junho, o presidente Biden disse de forma muito clara: “Se deixarmos a Ucrânia cair, veja o que lhe digo, a Polônia e todas aquelas nações ao longo da fronteira com a Rússia, dos Bálcãs até a Bielorrússia, começarão a fazer seus próprios arranjos”. É a possibilidade de uma autonomia europeia, e sua integração em um marco euroasiático com motor chinês, o que está em disputa, mas os gênios de Bruxelas, Berlim e Paris ignoram, coroando este verão de opróbrio.
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Noticiário de um verão de opróbrio. Artigo de Rafael Poch - Instituto Humanitas Unisinos - IHU