20 Fevereiro 2024
Shir Hever (economista e pesquisador israelense radicado na Alemanha) deposita sua esperança num futuro em que o seu país adote a democracia e acabe com o regime do apartheid e a escalada de violência que o levou a cometer genocídio contra o povo palestino. Por esta razão, este pesquisador – autor de dois livros: La economía de la ocupación israelí: represión más allá de la explotación (Pluto Press, 2010) e La privatización de la seguridad israelí (Pluto Press, 2017) – é ativo no movimento Boicote, Desinvestimentos e Sanções (BDS) e divulga seu conhecimento sobre a política e a economia do Estado liderado por Benjamin Netanyahu.
A entrevista é de Pablo Elorduy, publicada por El Salto, 16-02-2024. A tradução é do Cepat.
Esta semana esteve em Madri e mostrou-se convencido de que o cessar-fogo, que o governo israelense quer evitar, poderia ser o gatilho para a queda de Netanyahu, a realização de eleições e, quem sabe, o fim do Estado de Israel tal como o conhecemos. Para conseguir isso, é necessária a pressão internacional e a pressão das sociedades dos países europeus para garantir que cumpram a sua responsabilidade legal e interrompam imediatamente o fluxo de armas para um país que está cometendo um genocídio, conforme exigência das convenções do direito internacional.
Muitos atores internacionais se distanciaram de Israel pela primeira vez devido à possibilidade de uma incursão em Rafah. Até Joe Biden marcou uma mudança de tendência nesse sentido. Você acha que essa pressão pode levar a uma mudança no curso dos acontecimentos?
Penso que é um sintoma. É claro que há um efeito bola de neve desde a decisão do Tribunal Internacional de Justiça e, por causa dessa decisão, Israel precisa demonstrar que está interrompendo as ações em virtude do artigo dois da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, mas não o fez. O resultado é que alguns países já começam a respeitar o embargo de armas e a compreender que é ilegal vender armas, comprar ou permitir o trânsito de armas para Israel.
A decisão do tribunal da Holanda é muito importante, porque todas as peças dos caças F-35 vêm deste país. O tribunal holandês afirmou que não só é ilegal que a Holanda venda a Israel, como também não está autorizada a transitar dos Estados Unidos para Israel através da Holanda. Agora, o que isso significa para a Espanha, Portugal, Grécia, Chipre, Itália? Todo mundo está transferindo armas.
Que consequências poderia haver se esse fluxo fosse interrompido?
Israel está ciente e sabe que se a União Europeia, um Estado membro, não transferir armas, os Estados Unidos não terão capacidade para fornecê-las. Os Estados Unidos ignoraram no passado as decisões do Tribunal Internacional de Justiça, mas a União Europeia não pode ignorar essa decisão. Em Israel, enfrentam a consciência de que o tempo está se esgotando. Ao mesmo tempo, há muitos protestos em Israel porque o governo não dá sinais de que está preocupado com os reféns, diz apenas que quer ganhar uma guerra.
E todos entendem que não vencerão uma guerra. Não importa quantos civis tenham matado. O Hamas não pode ser derrotado como movimento de resistência. E Israel não está tentando resgatar os reféns por meio de uma troca de prisioneiros. Por razões políticas: se houver uma troca, haverá cessar-fogo, se houver cessar-fogo, haverá eleições em Israel. Se houver eleições será o fim do Governo e talvez o fim do Estado de Israel.
Por que “talvez o fim do Estado de Israel”?
Há uma crise política muito profunda. Por um lado, a situação da direita, dos partidos fascistas e racistas que estão no governo, é insustentável. Eles não podem formar outro governo; a população perdeu a confiança neles. No entanto, a oposição não tem números suficientes para formar um governo alternativo. Assim, a população está começando a perceber que só há uma saída, que é a democracia. O fim do apartheid. Igualdade de direitos. Uma pessoa, um voto.
E quando começar a falar assim, aí sim, será o fim do Estado. Não se trata apenas de uma crise política, é uma crise econômica: a Moody's rebaixou a classificação de crédito de Israel pela primeira vez na história. Mas a resposta de Israel à ação da Moody's foi muito ingênua, porque continua achando que Israel pagará as dívidas. Mas os israelenses sabem que isso não vai acontecer. Porque as pessoas não estão pensando no futuro, as empresas vão quebrar e as pessoas vão deixar o país.
Voltando à questão anterior, você diz que o governo de Netanyahu opera com a sensação de que o tempo está acabando.
O exército está disparando como se não houvesse amanhã. Eles atiram, atiram e matam civis o tempo todo. Até os oficiais ucranianos disseram aos israelenses: “Como vocês disparam nesse ritmo? Nós não atiramos tanto”. Ou seja, estão ficando sem munição e precisam de mais munição dos Estados Unidos. De acordo com o jornal Haaretz, o exército vazou informações de que, se o suprimento de armas for interrompido, Israel ficará sem munição em três dias.
Então, nesta situação em que veem que a União Europeia poderá fechar as portas, o governo vê que tem um prazo muito curto e opta por atacar. E seu ataque pode significar duas coisas. Em primeiro lugar, trata-se de um ataque suicida por parte de Israel, porque sabem que isso significa que serão condenados pelo Tribunal Internacional de Justiça e também – individualmente – pelo Tribunal Penal Internacional. E sabem que será o fim das relações diplomáticas com o mundo inteiro e que não haverá futuro para eles.
Existe outra opção para eles?
A outra opção é saber que não há alternativa senão aceitar um cessar-fogo e um acordo que envolve os prisioneiros. Por isso, estão tentando ganhar pontos para assinar o acordo numa posição mais vantajosa e ameaçar o Hamas de que, se não assinarem um acordo que siga as exigências de Israel, matarão toda a população em Rafah. O Hamas colocou as suas condições sobre a mesa e o problema de Israel com estas condições é que elas incluem um cessar-fogo. Esta é a única coisa que Israel não aceita. Eles não podem parar de matar.
Biden não é a voz da moralidade nesta história. Ele apoiou o genocídio desde o início. Mas ele também entende que isso pode dar muito errado. Se houver algo como um ataque em massa em Rafah que matará milhares de civis, e a Europa continuar a fechar as fronteiras às munições, e os Estados Unidos não puderem enviar mais munições para Israel, então Israel não terá um cessar-fogo, terá uma derrota militar. E então o que os Estados Unidos vão fazer? Farão o que fizeram no Vietnã do Sul? Farão o que fizeram no Afeganistão? Isto é, deixar o país e ir embora. Como consequência, é claro, Biden perderá as eleições e Trump se tornará presidente.
Você explicou em outras entrevistas que o apoio dos EUA tem a ver com os negócios.
O dinheiro que os Estados Unidos gastam no que é conhecido como FME (Financiamento Militar Estrangeiro) para Israel é de 3,8 bilhões de dólares. Desse montante, a quantia de dinheiro destinada à população em Israel é zero. Zero. Tudo vai para empresas americanas. Se você observar as organizações de lobby nos Estados Unidos, tenho certeza de que já ouviu falar do AIPAC (Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel)...
Sim, é um ator fundamental no apoio dos republicanos e democratas a Israel.
O AIPAC é uma grande e poderosa organização de lobby com um orçamento de cerca de 14 milhões de dólares por ano. No entanto, o lobby das armas nos Estados Unidos é 20 vezes maior. O AIPAC é minúsculo em comparação. Mas pense deste ponto de vista: se você é um candidato à presidência dos Estados Unidos e quer dinheiro dos lobbies de armas, você não pode se reunir abertamente com eles e dizer: “não se preocupe, apoiarei a guerra, apoiarei os conflitos para que possa fazer bons negócios”. Em vez disso, você se reúne com o AIPAC e lhe diz: “estamos com Israel”. O lobby das armas entende que é assim que vão conseguir o dinheiro. É assim que funciona. Israel tem que usar este FME, que não é uma ajuda, é um determinado tipo de subsídio, para comprar produtos de uma lista de empresas dos Estados Unidos.
São clientes cativos.
Sempre que Israel tenta mudar esta situação para apoiar a sua própria economia de alguma forma, por exemplo, desenvolvendo uma arma que possa competir em preço com uma dessas empresas estadunidenses, mísseis antitanques, aviões, fracassa. Aconteceu quando tentaram criar seu próprio caça que estivesse em condições de igualdade de competição com o F-16. Os Estados Unidos disseram: Ok, está bem, mas vamos tirar-lhes do FME a quantia de dinheiro que podem obter com essas armas que estão tentando desenvolver. Então você tem que gastá-lo no F-16 ou não conseguirá nada. E desta forma Israel foi pressionado a interromper o projeto. Então, veja bem, não é Israel que controla os Estados Unidos. E é também por isso que penso que se os Estados Unidos decidirem que é muito caro, muito perigoso, muito doloroso, irão se retirar.
A Espanha continuou a vender armas a Israel. Qual você acha que seria a consequência para um país europeu que decidisse boicotar unilateralmente Israel?
Não se trata de um boicote. Quando falamos de armas ou de respeito ao embargo de armas, não é que você tenha que tomar uma decisão. Não cometa o erro de dizer que se trata de tomar uma decisão. Pense em como isso funciona. No caso da Espanha, foram quase um milhão de euros em munição. É a mesma munição que é usada contra os civis em Gaza, Israel precisa dela porque está matando pessoas em Gaza, e lhe foram entregues em novembro, quando já matava milhares de pessoas, muitas delas crianças.
Então, pense em como funciona do ponto de vista logístico: você tem uma fábrica que produz essas munições. Você tem um depósito, você tem pessoas que trabalham na fábrica e pessoas que trabalham no depósito, elas têm que ser transportadas de trem ou de caminhão da fábrica para o depósito, do depósito para o porto. Os trabalhadores portuários precisam carregá-las em um navio. A tripulação do navio precisa fazer o transporte. Todas estas pessoas são obrigadas a não cooperar, a não ser cúmplices do genocídio.
Portanto, qualquer um deles tem a obrigação legal de dizer: “Não participo disto”, “Não vou permitir a transferência de armas para um país que comete genocídio”. E se alguém dissesse: “Mas esse é o seu trabalho”. A resposta é: “Não, sinto muito, não quero ir para a cadeia”. Você não pode forçar alguém a fazer algo ilegal. E a questão agora, especialmente com o precedente que temos da Holanda, é que não se trata apenas do governo da Holanda não estar autorizado a entregar as suas armas, mas também tem a obrigação de fazer a devida diligência para terceiros no âmbito da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio.
O que isso significa?
Se for um navio que transporta armas da Alemanha passando pelo mar da Holanda a caminho de Israel, eles têm a obrigação de detê-lo e revistá-lo; e se encontrarem armas, de deter o navio, mas também de abrir uma ação judicial contra a empresa alemã e o governo alemão que permitiu o contrabando de armas para um país que comete genocídio. E no porto de Cádiz, no porto de Valência, há navios internacionais que vão para Israel, e se os trabalhadores portuários tiverem a menor suspeita de que estão carregando armas nesses navios, têm que detê-los. Não é uma decisão.
É uma responsabilidade política. Por que isto não é assumido pelos governos europeus?
Posso entender por que eles não querem dizer a verdade.
Por quê?
Porque correm um risco legal pessoal. Podem ir para a cadeia. Você sabe, ainda hoje, 20 anos depois, há pessoas que estão na prisão por terem contribuído para o genocídio de Serra Leoa nos anos 90. Porque é um crime muito grave apoiar e enviar armas a alguém que comete genocídio. Não é nenhuma brincadeira.
Uma possibilidade é que Israel estenda o conflito ao Líbano. Em que cenário isso nos colocaria?
Israel está operando neste momento numa situação de distanciamento da realidade e de tomada de decisão irracional. Alguns dias depois do 7 de outubro, o ministro da Defesa Yoav Galant, o mesmo que disse que os palestinos são animais humanos e não deveriam receber alimentos ou medicamentos, disse: vamos atacar também o Líbano, vamos destruir o Líbano agora. E isto não é apenas uma indicação do seu pensamento imperialista ou de sua sede de sangue. É também uma indicação de seu distanciamento da realidade. Biden disse a Netanyahu: “controle os seus”. Porque se Israel iniciar uma guerra com o Líbano, não vencerá.
Estou muito preocupado porque o Hezbollah tem muito poder. Eles têm muitas armas e podem decidir começar. Não precisa ser Israel quem começa. Enquanto tivermos uma boa razão para acreditar que haverá um cessar-fogo e que a decisão do Tribunal Internacional de Justiça será respeitada, acredito que o Hezbollah continuará determinado a não sabotar esse esforço. Eles não querem que as pessoas digam que destruíram a oportunidade de deter a chacina e que é culpa deles que todos estejam ignorando o Tribunal. Mas se Israel não respeitar a decisão e continuar a matar, então o Hezbollah dirá: está bem, nós também o faremos, para proteger os palestinos.
O que aconteceria neste caso?
Se isso acontecer, não só Israel será destruído, mas também será destruída uma solução democrática. Esta é a razão pela qual eu apoio o BDS, porque penso que temos de trabalhar com a pressão política e a pressão legal para alcançar uma sociedade justa e igualitária, e não lutar com armas.
Existe alguma possibilidade de a sociedade civil pressionar pelo fim do conflito?
Como um Estado de apartheid, Israel tinha uma situação em que os judeus tinham mais liberdade de expressão. Eu cresci em Israel sentindo que poderia ser muito crítico em relação ao governo e dizer o que quisesse como parte da sociedade civil. Os palestinos, não. Os palestinos vão para a prisão. Mas agora essa não é mais a situação. Agora os judeus também são atacados, ameaçados de prisão, acusados de crimes, apenas por criticarem o governo.
Há muitas pessoas em Israel que apoiam o BDS, que apoiam os direitos palestinos e que querem acabar com o sistema de apartheid, mas têm medo de falar abertamente. É muito perigoso e estou muito preocupado com os meus amigos, que ficam com medo de falar desta situação de tanta violência e tantas armas. A extrema-direita tem a sua própria milícia e fornece armas aos seus seguidores.
O que podem fazer esses israelenses que se opõem à campanha de Netanyahu?
As pessoas mais críticas juntam-se ao movimento das famílias dos reféns e dizem: “libertemos os reféns”. Porque sabem que é lógico que para libertar os reféns tem que haver um acordo e para isso haverá um cessar-fogo. Querem um cessar-fogo, então essa é a maneira de fazer isso e não serem atacados. É a única maneira. Mas numa situação como esta, não, não se pode esperar que a sociedade civil mude alguma coisa.
A sociedade civil está exercendo uma pressão constante sobre o governo israelense e tem um papel importante a desempenhar a partir de dentro, mas só a pressão externa poderá mudar alguma coisa. E é por isso que precisamos do Tribunal Internacional de Justiça e precisamos que as pessoas respeitem a decisão do Tribunal. Precisamos que os países parem de enviar armas e respeitem o embargo militar. Isto fará a diferença, não a sociedade israelense.
Quais foram as consequências econômicas e sociais da formação de Israel em torno do poder das Forças Armadas (FDI)?
Isto é algo que diferentes países enfrentam a partir de diferentes posições: até que ponto os militares estão autorizados a participar da sociedade, da economia e do governo, e até que ponto estão autorizados a se tornarem organizações independentes e privadas. Podemos analisar os diferentes casos. Em lugares como a Alemanha, o governo controla de perto a segurança e os militares, e ninguém está autorizado a ter o seu próprio exército ou milícia. Em outros países, como os Estados Unidos, o oposto é verdadeiro. Tudo é privado. Tudo é baseado em dinheiro. Até as guerras são travadas com mercenários.
Israel começou de uma forma ainda mais extrema que a Alemanha. O exército estava por toda parte. O exército controlava as escolas. O exército era a indústria, construía estradas... Isso não é algo que um exército costuma fazer. Mas isto fez parte da política de [David] Ben Gurion desde o início da fundação do Estado. E, por isso, Israel se tornou o país mais militarista do mundo, de acordo com o Centro de Estudos de Conflitos de Bonn.
No entanto, o militarismo está diminuindo. E o Israel de 1948 ou dos anos 50 ou 60 não é o mesmo de hoje. E vemos cada vez menos militarismo na sociedade porque poucas pessoas vão para o exército. Eu não fui para o exército. Agora, apenas 48% dos israelenses vão, e a maioria não vai. Há menos orçamento para o exército. Há menos prestígio social e status para os generais. Portanto, este é um processo de desmilitarização. Mas isso acarreta menos violência? Não. A violência está aumentando.
Que tipo de violência?
É a violência colonial que vem das organizações de milícias. É o resultado de um processo de privatização da segurança e do exército. E não ajuda a criar uma sociedade mais pacífica. Não tem porque criar uma sociedade mais segura. Isso cria uma sociedade muito violenta. Mas a sua pergunta inicial foi sobre a economia.
Sim.
A economia foi transformada. A ideia inicial do neoliberalismo era dizer: não seremos mais uma sociedade militarista, privatizaremos o exército para criar um espaço para as empresas privadas. Mas isso fracassou. Porque as empresas privadas, as empresas de armas, tornaram-se tão poderosas que precisam testar as suas armas e testá-las nos palestinos. Assim, acrescentam continuamente combustível à violência colonial contra os palestinos.
As pessoas habituaram-se a utilizar esse tipo de tecnologia – mas não para guerras reais, porque Israel não luta contra um exército real há 50 anos –, mas contra civis. Contra pessoas indefesas, é tecnologia para a opressão. E assim, a economia de Israel tornou-se este tipo de economia de opressão. E agora o mundo inteiro diz: isto não funciona, porque Israel não está seguro, porque os palestinos não estão sob controle, porque o mundo vê todos os crimes cometidos por Israel. Então eles param de comprar essa tecnologia.
E é isso que está acontecendo agora com a economia israelense. A Moody's baixou a classificação de crédito. Há quase um milhão de desempregados e o orçamento está fora de controle, razão pela qual a moeda perdeu completamente o seu valor. A única razão pela qual o shekel se mantém estável é porque o Banco Central está vendendo todas as reservas em dólares para proteger o shekel. Quando as reservas em dólares se esgotarem, não haverá mais shekel. Assim, as pessoas entenderão que a economia entrou em colapso, que não haverá investimento estrangeiro nem exportações.
Uma das questões das quais se fala é o interesse nas reservas de gás natural ao largo de Gaza. É um fator importante na guerra ou é um McGuffin, um pretexto?
Israel já causou muitos danos ao impedir que os palestinos possuíssem o seu próprio gás natural. Como ambientalista, diria que é melhor manter o gás no subterrâneo, mas os palestinos têm o direito soberano de decidir o que fazer com ele. Israel explorou os campos de gás no seu território, mas também desviou um pouco em direção a Gaza e fez todos os contratos. Assim, depois de terem assinado os contratos com a Jordânia, o Egito, Chipre e a Grécia, Israel não permitirá que os palestinos utilizem o seu próprio gás. O que farão com ele?
Correto. Já se foi. Então, qual é o propósito de atacar Gaza em busca de gás? Não tem nenhum propósito. Não existem recursos naturais. O recurso natural que Gaza representa para Israel é o laboratório para testar as suas armas. Isso e entrar numa guerra que sabem que vão perder e que não têm nenhuma possibilidade de vencer. Não é um bom investimento. Então, se você quiser chamá-lo de McGuffin, vamos chamá-lo de McGuffin.
A Alemanha é o país chave dentro da União Europeia. Esta semana vimos os seus líderes defenderem abertamente a militarização. Deveríamos nos preocupar com isso?
Minha pesquisa se concentra principalmente em Israel, mas moro na Alemanha. A Alemanha atravessa uma crise muito profunda. A crise deve-se ao fato de o governo operar com uma política muito cínica e pragmática, motivada pela ganância e pelo desejo de poder, mas na qual fala a linguagem da moralidade. Dizem que defendem a diplomacia e o poder brando, que não querem depender das armas.
Os Estados Unidos não escondem isso, dizem abertamente que seguem os seus próprios interesses sem prestar atenção nos seres humanos. E isto causa um problema na Alemanha porque não têm coragem de desafiar os Estados Unidos. Nesta situação, quando a Alemanha tenta dizer “por causa do Holocausto, a Alemanha é uma voz a favor da moralidade, porque a Alemanha se lembra do Holocausto e tenta evitar que aconteça novamente”, envia uma mensagem completamente errada. Abusou-se desta mensagem na Alemanha, onde não se aprendeu a principal lição do Holocausto.
Qual é?
A responsabilidade da Alemanha tem a ver com os seus próprios crimes contra a humanidade. Mas, em vez disso, a memória do Holocausto tornou-se uma razão para ser solidária com o Estado de Israel e para apoiar o Estado de Israel, não importa o que faça. Agora a Alemanha enfrenta um Estado de Israel que comete genocídio. Você pode imaginar o que isso causa à política alemã? Eles estão perdidos. Neste momento, o governo começa a fazer declarações muito, muito perigosas. Se o Chanceler Scholz diz que se alguém negar que – pelo fato de que os “nossos” avós mataram os judeus – temos de apoiar Israel, essa pessoa não é um verdadeiro cidadão da Alemanha, está afirmando que todos os migrantes, os muçulmanos, todos os judeus na Alemanha, são não cidadãos. É perigoso.
E esta é uma declaração de alguém que diz: “construiremos um muro contra a Rússia, construiremos um exército forte”. É claro que isto assusta muita gente porque usa uma linguagem de direita, promove o militarismo, gasta muito dinheiro em armas, na formação do exército e reprime a liberdade de expressão na Alemanha. A Alemanha tem liberdade de expressão como país democrático, mas na questão da Palestina há um problema. Proibiram as pessoas de dizer: “Do rio ao mar, a Palestina será livre”. Está proibido nas manifestações. É claro que esta não é uma decisão democrática, e penso que se não se pode confiar num governo para tomar decisões democráticas, não se pode confiar nele para ter armas.
Você disse em outra entrevista que o Ocidente está perdendo a influência devido ao seu apoio irracional a Israel. Pode explicar por quê?
É algo muito complexo. Penso que o momento de mudança mais importante que vimos foi quando a Arábia Saudita e o Irã assinaram o acordo de paz entre si em maio do ano passado, mediado pela China. E o Mossad israelense e a CIA estadunidense não faziam a menor ideia. Era público e não tinham conhecimento prévio e não podiam impedir. Isso já mostrava que a situação estava mudando. A estratégia regional de Israel através dos Acordos de Abraão era construir uma grande aliança contra o Irã. E para isso tratava-se de estabelecer amizade com a Arábia Saudita. Os Estados Unidos estavam realmente interessados em normalizar a relação entre Israel e a Arábia Saudita para os seus próprios interesses imperiais e energéticos.
Tudo isso fracassou, certo? Porque se o Irã e a Arábia Saudita não forem inimigos, toda a estratégia perde o sentido. Penso que ficou claro nessa altura que Israel já não está cumprindo o seu papel de projetar a força imperialista ocidental no Oriente Médio de maneira efetiva. E nesse ponto, acho que já sabíamos que uma crise iria acontecer. Admito que não vi isso na época. Eu não previ o que iria acontecer e muito poucas pessoas o perceberam.
Que consequências econômicas isto poderá ter?
Um exemplo de como isto está funcionando é o caso dos huthis que interceptaram navios no Mar Vermelho. Uma das maiores companhias marítimas do mundo e a maior companhia marítima europeia, a Maersk, disse: “vamos contornar toda a África porque é muito perigoso atravessar o Mar Vermelho”. Mas há duas grandes companhias marítimas chinesas que continuam a atravessar o Mar Vermelho simplesmente porque seus navios não atracam em Israel, vendem diretamente à Europa, razão pela qual os huthis deixam-nos em paz.
Por que a Maersk toma esta decisão? Há um incentivo econômico para não fazê-lo, mas eles não podem, porque então as pessoas diriam: “A Dinamarca está boicotando Israel”. Portanto, a Maersk está de mãos atadas e não pode tomar a decisão econômica que lhe convém. Deste modo, o governo dinamarquês tem um problema: eles querem apoiar a sua empresa, de modo que estão enviando navios de guerra para o Mar Vermelho para combater os huthis, e com isso estão iniciando outra guerra.
Acho que isso realmente mostra como o apoio fanático a Israel está fazendo com que o Ocidente tome decisões irracionais e estúpidas que lhe custam muita influência.
Na Palestina, a solução dos dois Estados parece ser retórica. Algo que se diz quando não se tem nada com que contribuir em termos de direitos humanos. Ao mesmo tempo, uma solução baseada num Estado único onde vivem as vítimas e os algozes parece inviável. Qual você acha que é um horizonte possível para resolver o problema?
Em primeiro lugar, concordo com o que disse sobre a solução dos dois Estados ser uma espécie de motto que se diz da boca para fora para evitar uma verdadeira discussão sobre os seres humanos e os seus direitos. Mas acho que isso tem sido assim nos últimos 30 anos. Pouco mais de 30 anos. No entanto, agora vemos algo novo, porque como judeu posso dizer-lhe que a ideia de que o genocídio pode ser resolvido através da criação de um Estado é uma ideia terrível. Os judeus continuam a sofrer com esta ideia.
Vemos como a criação de um Estado é proposta como se só isso resolvesse o impacto de um genocídio: “Os palestinos estão sofrendo um genocídio, vamos dar-lhes um Estado”. Não, em primeiro lugar, vamos acabar com o genocídio, dar às pessoas os seus direitos, e depois, vamos falar sobre que tipo de Estado formar. Mas também quero responder à pergunta: que tipo de futuro. Penso que a solução de dois Estados não é muito provável, mas se as pessoas a quiserem, é possível. Não está fora das possibilidades que se podem imaginar. Não sou uma das pessoas que apoia essa ideia, mas acho que as pessoas deveriam tomar suas próprias decisões.
O que você considera mais viável?
Vejo dois cenários possíveis. Um cenário é semelhante ao da Argélia. Uma rebelião, uma resistência, que não é democrática, um processo de descolonização muito doloroso, em que os colonos partiram em grande número (acredito que muitos judeus abandonariam a Palestina) e um Estado que seria governado pelo Hamas. Não acho que seja um bom cenário, mas creio que é realista. Penso que o Hamas sabe que é realista e sabe que se o fizer, se assumir o controle do Estado, como fez a Frente de Libertação Nacional na Argélia, então a União Europeia irá até eles e dirá: “Queremos ter relações diplomáticas com vocês: vamos excluí-los da lista de organizações terroristas”.
O segundo cenário.
É aquele que mencionei antes, onde a sociedade israelense é tão fraca e está tão dividida que há cada vez mais grupos que dizem: “Precisamos ter alguma base liberal, e a única forma de ter uma base para a sociedade, algum tipo de conversa conjunta para resolver os problemas a nível político e não com armas é se abandonarmos o sionismo, se renunciarmos ao apartheid e todos tiverem voz e voto”.
Claro, isso não significa que será um paraíso de concórdia entre si. Não, haverá muitos conflitos, mas será um conflito político. E isto é similar à situação na África do Sul. A África do Sul não é um paraíso. Não é uma utopia, mas é melhor do que era sob o apartheid. E mesmo na África do Sul, acreditava-se que essas pessoas nunca conseguiriam viver juntas como iguais, mas com o tempo estabeleceram um processo e conseguiram fazê-lo. E penso que isso é possível e não perco a esperança. Se eu não tivesse esperança, não trabalharia para o BDS.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“É um crime grave apoiar e enviar armas a um país que comete genocídio". Entrevista com Shir Hever - Instituto Humanitas Unisinos - IHU