19 Abril 2023
"Em tempos de guerra, como na Primeira Guerra Mundial, voltam os sonhos de um concílio de paz pan-cristão", escreve Andrea Riccardi, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Corriere della Sera, 16-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Hoje as Igrejas Ortodoxas celebram a Páscoa. Os cristãos ucranianos e russos sempre viveram essa festa com um entusiasmo particular, desconhecido no Ocidente. A liturgia envolve o povo. Na noite de Páscoa, as muitas velas dos fiéis iluminam a igreja, demonstrando a derrota do "noite", o mundo escuro da existência e da história. Os ucranianos e os russos, no rito comum aos ortodoxos, depositam nela uma grande paixão religiosa. Os fiéis, em procissão, dão a volta da igreja e repetem: “Khristo svoskrés!” (Cristo ressuscitou). E se responde: “Voistinu voskrés!” (realmente ressuscitou!). "Cristo ressuscitou!" é continuamente repetido, mesmo fora da igreja no Tempo de Páscoa. A Páscoa fala de ressurreição e paz.
Esse clima se manifestava mesmo nos anos sombrios da perseguição soviética nas poucas igrejas que ficaram abertas. A liturgia mostrava uma "beleza” desconhecida ao cinzento mundo soviético. A Igreja Ortodoxa, naqueles anos, pagou um preço muito alto: um milhão de mortos, dos quais 200 bispos, assassinados por serem cristãos. Mas a ortodoxia estava enraizada no povo, apesar da violência e da campanha ateísta, tanto que Stálin, agredido pelos nazistas em 1941, sentiu necessidade do apoio da Igreja, devolvendo-lhe um novo (reduzido) espaço na sociedade.
Com o fim da URSS, a Igreja tornou-se livre e tem uma posição preeminente na Rússia. Muitas igrejas foram construídas e muitas devolvidas. Quando em 2009 Kirill se tornou patriarca de Moscou e de todas as Rússias, fez um discurso na imponente Catedral do Cristo Salvador (reconstruída em 2000 depois que Stalin a derrubou em 1931). Ele disse que sobre ele, como patriarca, caia a responsabilidade de manter unidos os povos ortodoxos da ex-URSS. Putin, então primeiro-ministro, estava lá e ouviu ao lado do presidente bielorrusso Lukashenka e do presidente russo Medvedev. Hoje, apesar do espírito do povo na Páscoa ser o mesmo, a ortodoxia está dilacerada, incapaz de uma voz própria diante da guerra, exceto o apoio de Kirill à ação e à atitude patriótica das várias Igrejas ucranianas.
Em 2018, as Igrejas ucranianas que não se reconheceram no patriarcado de Moscou se uniram, recebendo um tomos do patriarca ecumênico Bartolomeu decretando a autocefalia da Igreja da Ucrânia. Kirill denunciou o fato como um abuso de poder e rompeu com Bartolomeu. O mundo Ortodoxo internacional está dividido entre os que reconhecem a Igreja Ucraniana autocéfala e os que são contra Bartolomeu. O processo de coesão interortodoxa, no qual o patriarcado ecumênico tanto trabalhou no século XX, está parcialmente comprometido. Na noite de Páscoa em Moscou não se mencionou na oração o nome de Bartolomeu. A ortodoxia parece despedaçada.
A divisão mais grave está na Ucrânia. A invasão russa e a posição do patriarcado moscovita, que se colocou em apoio ao Estado, colocaram em sérias dificuldades para a Igreja ucraniana ligada tradicionalmente em Moscou. Esta, embora autônoma desde 1990, é acusada de estar ao serviço de Moscou. Seu líder, o Metropolita Onufrij, no início da invasão, pediu a Putin que “parasse imediatamente a guerra fratricida”. Esta Igreja condenou a guerra e a política de Patriarcado russo, afirmando sua independência. Desde o início da guerra cerca de 250 paróquias das 8.500 passaram para a Igreja autocéfala. Mas a Igreja Ucraniana (anteriormente russa) continua sendo a maior comunidade cristã do país. Embora dilacerada por divisões e frequentemente atacada na mídia e nas redes sociais.
Um projeto de lei do governo, que será discutido no Parlamento, proíbe toda atividade religiosa a organizações com a sede principal em um país inimigo. Algumas antigas igrejas russas, como a catedral de Lviv, foram ocupados à força e depois, com o voto das pessoas reunidas na igreja, anexadas à Igreja autocéfala. O governo tirou o milenar mosteiro das grutas de Kiev da Igreja Ucrânia (ex-russa), mas os monges resistem. O papa pediu publicamente para evitar um ato de força. Cabe se perguntar que interesse o governo tem em aumentar a divisão religiosa em um País que já está sofrendo tanto com a invasão.
Nesta Páscoa de sangue pela guerra e pelas atrocidades, porém, a ortodoxia se revela mais uma vez uma Igreja do povo, capaz de comunicar algo profundo e vital às pessoas na liturgia e na fé. Muitos dos fiéis prestam pouca atenção às várias hierarquias em conflito. No entanto, as instituições ortodoxas estão dramaticamente abaladas pelos nacionalismos. Todas as Igrejas estão mais sozinhas e isoladas. Enquanto isso as relações pan-ortodoxas e o ecumenismo estão em grave crise. As Igrejas correm o risco de ficarem reféns da nação. Nenhuma consegue se libertar sozinha e deve se conformar. As outras Igrejas também estão abaladas, perplexas e eventualmente assumem posições específicas. Em tempos de guerra, como na Primeira Guerra Mundial, voltam os sonhos de um concílio de paz pan-cristão.
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As Igrejas Ortodoxas no caos: Páscoa de sangue e divisões. Artigo de Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU