18 Março 2023
Em que consiste, em última análise, a autoridade a ser salvaguardada na Igreja? Em dar voz ao Evangelho. E isso não pode ser feito à distância e levantando muros. Um “princípio monárquico” na Igreja merece uma reavaliação radical.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em Como Se Non, 17-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em uma entrevista inspirada [disponível em francês aqui], o arcebispo de Argel, Jean-Paul Vesco, ofereceu uma inteligente leitura do papado de Francisco, que agora chegou a seu aniversário decenal.
Já no título, ele identifica de imediato o centro de sua atenção: “François remet la sacralité de la fonction à sa juste place”. Uma realocação da “sacralidade da função” aparece a seus olhos como o coração dessa década.
É preciso lembrar que Vesco não é apenas arcebispo de Argel, mas também um padre dominicano e ex-advogado civil do Fórum de Paris. Essas três características o tornam particularmente perspicaz e sensível na leitura do pontificado de Francisco.
Tentemos acompanhar melhor o raciocínio oferecido por Vesco ao longo da entrevista, oferecendo um pequeno resumo comentado.
a) A primeira característica do papado de Francisco é uma mudança na relação entre Igreja e mundo. Isso passa por uma série de pequenos gestos simbólicos que pontuaram seu pontificado desde o início, mas por meio dos quais ele revoluciona os códigos monárquicos com os quais a autoridade papal e episcopal foi interpretada ao longo da história. Conservar o anel e a cruz de arcebispo de Buenos Aires, não ocupar os apartamentos do Palácio Apostólico, carregar ele mesmo sua maleta ao embarcar no avião, telefonar pessoalmente a seus interlocutores, deslocar-se em carros populares... são todos símbolos de outro modo de pensar a autoridade eclesial em relação ao mundo. Trata-se de uma tendência que havia começado com João XXIII e que agora encontra uma aceleração em termos de “fraternidade”, palavra-chave do pontificado.
b) Essa distância mais curta entre Igreja e mundo implica também uma mudança de linguagem. São exemplares, desse ponto de vista, as entrevistas no avião, nas quais a palavra solta, direta, pronunciada até mesmo com cansaço ou com hesitação, sem as restrições da oficialidade, muitas vezes cria um constrangimento ligado às expectativas de uma expressão mais fria e menos humana.
c) Sobre esse ponto, levantam-se os protestos de quem imputa essa tendência a uma “dessacralização” da função e do ministério papal. Segundo Vesco, porém, isso é “recolocar em seu devido lugar a sacralidade da função”. Em que consiste, em última análise, a autoridade a ser salvaguardada? Em dar voz ao Evangelho. E isso não pode ser feito à distância e levantando muros. “Ao dessacralizar o que foi sacralizado demais em nível humano na função do papa, Francisco reforça sua própria autoridade”.
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d) Um “princípio monárquico” na Igreja merece uma reavaliação radical. “A Igreja Católica baseou seu modelo de organização no de uma monarquia absoluta de direito divino. Assim como na investidura de um rei, o bispo, detentor dos três poderes executivo, legislativo e judiciário, recebe no momento da ordenação um anel, uma mitra como coroa, uma cruz como cetro, uma cátedra como trono, um brasão e um título. Tudo isso é claramente justificado por um senso espiritual que sublima esses gestos e lhes dá consistência, mas é preciso termos consciência de seu substrato humano inspirado no modelo político monárquico. Não se trata de contestar o que é constitutivo do corpo institucional da nossa Igreja, mas convém ter consciência disso, mantê-lo no seu devido lugar, evitando sacralizá-lo excessivamente. Também é útil trabalhar para equilibrar os poderes, como as monarquias modernas sabem fazer.”
e) Esse tema do exercício monárquico do poder, na forma histórica de um poder absoluto, está intimamente ligado ao tema dos abusos, que são, na sua raiz, “abusos de poder”. Para combater os abusos, é preciso superar figuras, representações e formas de poder sem limites e sem controle.
f) Um paradoxo parece surgir em Francisco: a superação do poder monárquico se mostra, não raramente, em atos de assunção clara e decisiva da autoridade papal. Muitas vezes, são cartas “motu proprio” dadas, que abrem novas fases de debate curial e eclesial. Diríamos que, para superar a autoridade absoluta, usa-se a autoridade absoluta. Aqui talvez seja preciso especificar que Jorge Mario Bergoglio é um religioso, é um jesuíta, acostumado com uma gestão da autoridade muito decidida. E que, para pôr em movimento processos de mudança, é preciso um investimento de força e de decisão que pode chocar e também ferir. A questão da “oração por si mesmo”, que o Papa Francisco repete continuamente, está também e talvez sobretudo ligada a esse esforço.
g) O desígnio de “reforma da Igreja” a partir de dentro assume em Francisco a forma de uma recolocação da pessoa no centro da Igreja. Isso não implica uma contestação da doutrina, mas sim uma profunda reavaliação da doutrina. “Ele recolocou a pessoa no centro do magistério, e isso modifica sua perspectiva e introduz uma relação mais complexa com a verdade. Ao escolher deliberadamente ir para o mundo e, portanto, também para as periferias, creio que Francisco contribuiu verdadeiramente para recolocar o Evangelho no coração da Igreja e a Igreja no coração do mundo.”
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Francisco e o princípio monárquico: Padre Vesco e a questão da autoridade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU