02 Julho 2019
Como o papa Francisco está iniciando processo de Reforma da Igreja que será difícil de desfazer.
A reportagem é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 29-06-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Como muitos cardeais ajudam o papa Francisco a reformar a Cúria Romana? E por quantos anos tem feitos
Muitos católicos – ao menos aqueles que esperam que o papa consiga descentralizar o poder eclesial para fora do Vaticano – têm se frustrado por depois de 6 anos ainda não terem respostas definitivas a essas questões.
Depois dos cinco encontros anuais, o Conselho de Cardeais (um corpo inicial feito por oito membros ou C8, rapidamente se expandiu para C9 e mais recentemente recaiu para C6) não deram ao papa um rascunho final da nova constituição apostólica para reformar os escritórios centrais das Igrejas.
Mas eles estão chegando perto.
De volta a abril, dois membros do conselho fizeram uma grande pincelada com a revelação de componentes chaves do documento rascunhado, confirmando seu título provisório – Praedicate Evangelium (Pregando o Evangelho).
Os cardeais Oscar Rodriguez Maradiaga, de Honduras, e Oswald Gracias da Índia, previram que a edição final dos textos deveria ser apresentada pelo papa Francisco, no dia 29 de junho.
Eles disseram que fase final de consulta – com bispos das conferências nacionais, ordens religiosas e professores selecionados das universidades pontifícias – estava se concluindo. Mas poucas semanas depois o bispo-secretário do C6 jogou água fria na projeção dos dois cardeais.
Dom Marcello Semeraro, secretário do Conselho de Cardeais, falou a um jornal espanhol católico que o rascunho final será apresentado para aprovação papal “neste ano, mas não em 29 de junho”.
O bispo Semararo falou com repórteres credenciados pelo Vaticano na semana passada e atualizou o cronograma.
Neste ponto, ele disse, parece que a versão final - com a inclusão de sugestões das conferências episcopais - provavelmente será concluída para a próxima reunião do C6, que acontecerá de 17 a 19 de setembro. Mas observadores atentos acreditam que até isso parece um pouco otimista demais. Pense mais como uma data em 2020.
Foi um processo longo e prolongado. Mas há uma lógica e sabedoria no ritmo lento que o papa Francisco escolheu para essa grande mudança e reforma de uma cúria que ainda guarda vestígios do final do século XVI.
Não é como se nada tivesse sido feito e todos estejam sentados em alfinetes e agulhas imaginando como será a aparência da Cúria Romana depois que Francisco terminar sua reforma.
De fato, partes substanciais da reforma já foram implementadas. O papa de 82 anos tem executado, um passo a passo, nesse longo período. Ele escolheu este método com cuidado e intencionalidade, cujo efeito deve suavizar o golpe, que certamente virá, com alguns toques finais ainda desconhecidos.
Tenha em mente que Francisco é um papa "de fora", o primeiro desde São Pio X (1904-1914) que nunca estudou ou trabalhou em Roma. E, embora tenha decidido consultar em toda a parte sobre a melhor forma de reformar a cúria, ele - e somente ele - tomará a decisão final sobre todos os aspectos dessa reforma.
Qualquer um que tenha prestado muita atenção pode ver que empreendeu uma desconstrução sistemática da longa função da Cúria Romana como a burocracia central (isto é, centralizadora) da Igreja universal, que tem tradicionalmente agido como a camada de fato do governo entre o papado e o Igrejas locais.
O que o papa Francisco tem feito ao longo desses quase seis anos é colocar em movimento os processos (e algumas legislações) com o objetivo de dar mais autoridade aos bispos locais e às conferências episcopais nacionais (e regionais).
Francisco está obviamente convencido de que mudanças, e muitas delas, precisam ser feitas nas estruturas da Igreja, nos métodos de fazer as coisas e em seu ethos geral (mentalidade). Mas ele sabe que essas mudanças não podem ser introduzidas de uma só vez. Alguns deles não se materializarão nos próximos anos.
Um princípio, em particular, parece estar sustentando o projeto de reforma — "o tempo é maior que o espaço".
"Este princípio nos permite trabalhar devagar, mas sem ser obcecado com resultados imediatos. Ajuda-nos pacientemente a suportar situações difíceis e adversas, ou mudanças inevitáveis em nossos planos. Ele nos convida a aceitar a tensão entre plenitude e limitação, e dar prioridade ao tempo ", escreve o papa em Evangelii Gaudium.
Essa exortação apostólica, que Francisco publicou em 2013 poucos meses após sua eleição como bispo de Roma, é o manifesto governante deste pontificado e a visão do papa jesuíta para uma Igreja reformada.
"Dar prioridade ao tempo significa estar preocupado em iniciar processos ao invés de ocupar espaços", ele escreve. "O tempo governa os espaços, ilumina-os e torna-os elos numa corrente em constante expansão, sem possibilidade de retorno" (cf. EG, 222-225).
Em outras palavras, Francisco quer garantir que quaisquer reformas que ele e os bispos tentem implementar - incluindo a reforma da Cúria Romana - sejam duradouras e não sejam facilmente revertidas.
O projeto de reforma da Cúria teve origem nas discussões que os cardeais da Igreja realizaram nos dias anteriores ao conclave de 2013 que elegeu Jorge Mario Bergoglio, de Buenos Aires, como bispo de Roma.
Os cardeais queriam que o próximo papa livrasse o Vaticano da corrupção, do clientelismo e da ineficiência institucional. Mas poucos poderiam imaginar que o papa Francisco iria iniciar uma reforma que se estenderia bem além da cúria ou dos limites do pequeno Estado da Cidade do Vaticano.
Em vez disso, Francisco usou o pretexto da Reforma da Cúria para pôr em marcha uma reforma profunda e radical mesmo do papado e de toda a Igreja global. Ele o fez reativando a visão do Concílio Vaticano II (1962-65) e sua intenção ainda não concretizada de trazer a Igreja para o mundo moderno.
"A cristandade não existe mais", disse o bispo Semeraro na coletiva de imprensa de 27 de junho.
Ele ressaltou que as origens da Cúria Romana datam do final do século XVI e do Papa Sisto V. “Foi uma era em que a lei da Igreja era a lei do Estado, e a lei do Estado era a lei da Igreja ".
Semeraro notou o óbvio - esse mundo já passou há muito tempo. Mas o que não é tão óbvio para muitos, ou pelo menos parece, é que ainda há muitos homens em luvas ou com escritórios no Vaticano que continuam a fingir que isso ainda acontece!
Essas pessoas estão tentando reviver a cristandade, que é um sistema cultural-ideológico de crença no qual o querigma (a essência da fé cristã) está intrinsecamente ligado ao pensamento filosófico grego e dado forma pelo antigo regime europeu.
A Igreja Católica é o último pilar deste ethos e sistema cultural em colapso. O Papa Francisco sabe disso muito bem e é por isso que ele está determinado a separar a Cúria Romana, o papado e a Igreja global deste modelo eurocêntrico antigo e anacrônico.
E é também por isso que ele tem tantos inimigos.
O bispo Semeraro observou que nesta era da pós-cristandade "já não basta se preocupar com a doutrina". O foco principal, ele disse, deve ser o "anúncio do Evangelho... que deve, antes de tudo, gerar alegria". Mas isso exigirá uma radical releitura de como realizar o mandato missionário.
O Papa Francisco sabe que isso exige que a Igreja (em todas as suas formas, expressões e várias manifestações), de uma vez por todas, deixe para trás qualquer ideia de reviver a cristandade. Isso requer que nos afastemos da nossa teologia e eclesiologia eurocêntrica, procurando novas maneiras de proclamar o Evangelho em novos meios e culturas.
A tão esperada reforma da Cúria Romana é parte essencial dos processos que Francisco iniciou para realizar essa transformação radical.
E assim não é de admirar que os católicos que estão tentando reviver uma visão antiquada da Igreja e sua relação com a sociedade, e seus aliados políticos conservadores, vejam este Papa como uma ameaça e um perigo.
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Reformando a Igreja sem possibilidade de retorno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU