24 Agosto 2024
"Segundo alguns israelenses, o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 marcou o início da guerra de Gog e Magog, que, segundo a profecia bíblica, precede a chegada do messias. Entretanto, os cristãos evangélicos americanos e o Hamas também anseiam por uma guerra redentora total", escreve Shlomo Ben-Ami, doutor em História pela Universidade de Oxford, ex-embaixador de Israel na Espanha entre 1987 e 1991 e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros durante o governo trabalhista de Ehud Barak, em artigo publicado por Nueva Sociedad, agosto de 2024.
Ao longo da história, crises e tragédias conduziram inevitavelmente a interpretações apocalípticas que procuram imbuir as catástrofes temporais de um significado divino ou redentor. Podemos ver isto nas doutrinas das principais religiões monoteístas, e mesmo nas ideologias totalitárias modernas, como o comunismo e o nazismo. De uma forma ou de outra, parece que os humanos estão inclinados a acreditar que sem Satanás não há redentor.
Para compreender quão perigosa esta lógica pode ser, basta olharmos para Gaza, onde uma tragédia de proporções bíblicas exacerba as alucinações messiânicas de Israel, do Hamas e dos cristãos evangélicos americanos.
O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e os seus aliados – os fanáticos teofascistas do Partido Religioso Sionista – veem a guerra de Gaza como o prelúdio para o domínio total sobre a Terra bíblica de Israel, um território definido pela religião, que se estende desde o Rio Jordão até o Mediterrâneo. Para figuras de extrema-direita como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir – líderes do sionismo religioso moderno e membros do gabinete de Netanyahu –, os palestinos devem ser completamente erradicados de lá.
A fantasia apocalíptica sionista consiste em três etapas: dominar o território, construir o “Terceiro Templo” em Jerusalém e substituir a democracia pelo Reino da Casa de David – segundo a Bíblia Hebraica, designado por Deus para governar Israel. Permitir o ataque constitucional do governo à democracia e aos direitos humanos em Israel é apenas parte do acordo que fizeram com Netanyahu ao serviço desse sonho.
Mas o regresso do messias exigirá mais do que uma reforma judicial ou mesmo a construção de colonatos. Envolverá “dores de parto messiânicas” – turbulência, sofrimento e dor – e até mesmo uma batalha apocalíptica há muito profetizada: a Guerra de Gog e Magog, na qual uma coligação de inimigos procura erradicar Israel, mas apenas consegue ser o prelúdio da chegada do messias. Segundo alguns fanáticos, o ataque do Hamas em 7 de outubro, que desencadeou a atual guerra em Gaza, marcou o início desse combate.
Estas ideias refletem uma teologia política que foi desenvolvida nos territórios palestinos ocupados em seminários ministrados por rabinos que viam a vitória “milagrosa” de Israel na Guerra dos Seis Dias de 1967 como um “momento messiânico”. Na verdade, os fundadores do sionismo religioso – o rabino Abraham Isaac Kook e seu filho, o rabino Zvi Yehuda Kook – estavam entusiasmados com a ideia de conflito. “Quando há uma grande guerra no mundo”, escreveu o pai, “o poder do messias desperta”, e o filho repetiu: “Toda guerra é uma fase da redenção de Israel”.
Além de acolher a guerra e a destruição de braços abertos, esta ideologia exonera efetivamente o Estado de Israel de violações dos princípios morais universais e, claro, do direito internacional. Em 1980, o rabino Israel Hess, defendendo a erradicação dos palestinos, escreveu um artigo intitulado "Genocídio: um dos mandamentos da Torá", no qual menciona a ordem de Deus ao rei Saul para matar todos os amalequitas. Mais recentemente, Smotrich queixou-se de que “ninguém no mundo permitirá que dois milhões de pessoas morram de fome, mesmo que seja legítimo e moral”. Para estes fanáticos, em vez das normas e valores da humanidade, o que deveria guiar o comportamento israelense é “a palavra de Deus”.
Os judeus messiânicos têm os seus homólogos nos Estados Unidos: os evangélicos americanos também entendem que a guerra de Gaza é um catalisador para o seu plano divino e, longe de temerem o apocalipse, anseiam pela sua chegada com a mesma intensidade que os Kooks. Quando Israel se envolve numa grande guerra, declarou John Hagee, pastor influente, “erguei a cabeça e regozijai-vos”, pois “a vossa redenção está próxima”.
Depois de Israel ter interceptado uma série de mísseis lançados pelo Irã, Hagee declarou: “Profeticamente, estamos à beira da guerra de Gog e Magog que Ezequiel descreveu nos capítulos 38 e 39” (de acordo com a sua versão, é a “segunda” vinda de Jesus Cristo, que ocorrerá depois que os judeus forem praticamente aniquilados, e os cristãos fiéis e convertidos – e não os próprios judeus – herdarão o reino de Deus na Terra). Isto explica por que Hagee e os Cristãos Unidos por Israel (o mesmo grupo que pressionou o ex-presidente americano, Donald Trump, a transferir a embaixada do seu país para Jerusalém) exortaram os legisladores dos EUA a não impedirem a escalada da guerra. Os líderes evangélicos nos Estados Unidos pressionaram os seus aliados do Partido Republicano para aumentarem a ajuda e as armas para Israel.
Se os cristãos evangélicos ecoam a ideologia dos judeus messiânicos, o Hamas reflete-a: a “terra da Palestina”, declara a carta de fundação do Hamas de 1988, é um habiz islâmico (um legado inalienável de acordo com a lei islâmica), “consagrado para as futuras gerações muçulmanas”, que não pode ser “desperdiçado” e que não pode ser “renunciado”. Nos “princípios e políticas” que publicou em 2017, o Hamas reiterou que “rejeita qualquer alternativa à libertação total e completa da Palestina, do rio ao mar”.
Além disso, o Hamas diz: “O dia do julgamento não chegará até que os muçulmanos confrontem os judeus”; quando um judeu se esconde atrás de “pedras e árvores”, continua ele, essas pedras e árvores dirão: “Ó muçulmanos, ó Abdulla, atrás de mim está um judeu, venha e mate-o”. No documento de 2017, o Hamas declara que os “sionistas”, e não os “judeus”, são os seus principais inimigos, mas deixa mais clara como sempre a sua rejeição das “chamadas soluções pacíficas”.
Mas o Hamas não é um grupo jihadista comum. É verdade que o 7 de outubro utilizou o tipo de táticas brutais associadas a grupos terroristas como o Estado Islâmico (ISIS), mas ao contrário desse grupo e da Al Qaeda, o Hamas é um movimento puramente nacionalista, sem objetivos globais. O ISIS chegou a ponto de acusar o Hamas de “desprezo e apostasia” por se concentrar apenas na libertação da Palestina, algo que se afasta da doutrina fundamentalista.
Mas a recente nomeação de Yahya Sinwar, alto funcionário do Hamas em Gaza, como chefe do gabinete político do movimento equivale a um golpe militar levado a cabo pela linha dura contra a ala política do Hamas localizada fora de Gaza. Com Sinwar, o Hamas anseia pela guerra e pela autodestruição, que entende como o único caminho para a redenção. Os fanáticos religiosos israelenses e americanos compartilham esse anseio. A menos que a diplomacia neutralize a ameaça de uma luta apocalíptica pela Terra Santa, o desejo dos fanáticos poderá tornar-se realidade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Gaza e o Apocalipse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU