14 Agosto 2024
O diálogo é possível não suspendendo a própria identidade (seja ela cristã, muçulmana, judaica, panenteísta, budista...), mas tornando-a explícita e fazendo dela um ponto de força e de partida, para que se possa realmente conhecer o outro por quem ele ou ela é e, assim, poder encontrar um terreno comum para o debate.
O comentário é de Stefano Fenaroli, teólogo leigo italiano e redator na Editora Queriniana. O artigo foi publicado em Vino Nuovo, 12-08-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Do “só Jesus salva” do bispo Repole ao “menos cristianismo, mais espiritualidade” do pensador Mancuso: foi assim que o clima teológico italiano também esquentou...
Premissa: Vito Mancuso é um pensador respeitado, mas não é teólogo (muito menos cristão), mas se orgulha desse título, porque assim lhe é mais fácil ser uma “voz fora do coro”, pois, se ele se definisse como filósofo, seria muito mais difícil para ele chamar a atenção, e ele precisaria dar mais densidade às suas argumentações para poder participar do debate com os outros filósofos.
Dito isso, como muitas vezes acontece, toda provocação (mesmo a mais estéril) pode ser uma oportunidade para iniciar um debate sobre um tema de destaque. Neste caso, referindo-me à querela que apareceu nas páginas do jornal La Stampa a partir do trecho de um artigo de Roberto Repole (publicado na revista Vita e Pensiero), ao qual o próprio Vito Mancuso respondeu e que foi seguido por uma intervenção de Maurizio Gronchi, o assunto de destaque que parece emergir é a efetiva possibilidade de proteger a pretensão da fé cristã de encontrar a salvação unicamente em Jesus Cristo diante do plural e amplo panorama religioso-espiritual contemporâneo.
Em síntese, é realmente possível afirmar que o cristianismo, com sua própria fé unívoca em Jesus Cristo, mina na raiz a possibilidade de um efetivo diálogo com as outras religiões? Em suma, como diz o título do artigo de Mancuso, é realmente necessário “menos cristianismo e mais espiritualidade”?
O objeto do debate certamente não é uma novidade e, na atual sociedade pluralista, seguramente assume um destaque de primeiro plano. Os termos em jogo, no entanto, não são tão simples, e a discussão requer diversas especificações.
Por exemplo, o que efetivamente indica essa salvação que só poderia ser obtida em Jesus Cristo? E o que significa distinguir entre a atual necessidade de “espiritualidade” e a pretensão de fé do “cristianismo”?
Segundo Mancuso, a atual crise do cristianismo (bem delineada pelo próprio Repole) indica que a fé cristã “não sabe mais interceptar o motivo principal que leva desde sempre os seres humanos a crerem em Deus e a terem uma religião”. Qual seria esse motivo? “Cultivar na própria existência a dimensão espiritual.”
A perspectiva de Mancuso distingue claramente entre “vida” e “vida espiritual”, e, nesse horizonte, a atitude religiosa “correta” deveria compreender o divino, o espiritual como uma realidade amorfa, indistinta, que tudo inclui, tudo acolhe, mas não se deixa “personificar”.
Hegel falaria de “uma noite em que todas as vacas são pretas”. Essa forma de pensar certamente está muito em voga. Basta pensar, por exemplo, no trabalho teológico de Paolo Gamberini, não por acaso um ferrenho defensor do pensamento de Mancuso.
Perguntamo-nos, porém, com efeito, para que serve uma “espiritualidade”? O que significa cultivar uma vida espiritual? É algo que deveria nos separar deste mundo, desta realidade, buscando o próprio sentido, a própria felicidade em um “céu” espiritual, onde não existem mais diferenças, e todos podem se reconhecer como pertencentes à única divindade?
E como essa divindade deveria ser determinada, devendo ser uma espécie de “panaceia” das fés? Na realidade, a questão é precisamente essa. Essa divindade não deveria ser determinada, deve permanecer “sem rosto”, indistinta, “escura”, como a noite de Hegel.
É evidente que a perspectiva cristã está muito distante dessa perspectiva. Mas será que isso realmente significa ser intransigente e causar “divisões, perseguições e, não raramente, violência e guerras religiosas”? Para responder, embora isso exigiria uma ampla articulação, considero que se deva partir de dois pontos fundamentais.
1. A salvação, que segundo o cristianismo só se encontra no homem Jesus, é uma salvação encarnada. Trata-se de uma espiritualidade que não pede para “se libertar” deste mundo, para “se perder” em uma divindade indistinta em que cada singularidade, cada liberdade, cada história se perde e se dispersa em um único “amor” divino. O homem Jesus é o coração da salvação cristã, porque só assim podemos preservar o fato de que a salvação como Deus a quer é algo que diz respeito a todos e a cada um, e não é uma noite onde tudo é indistinto.
A ressurreição de Jesus, fundamento da fé cristã, afirma que cada ser humano é querido, esperado e amado por Deus em si mesmo e por si mesmo, e já tem em Deus seu próprio lugar, e só se aconteceu de uma vez por todas a um homem verdadeiro (Jesus) pode ser verdadeiro para cada ser humano.
A fé cristã é a única (embora muitas vezes se esqueça disto) que salvaguarda e protege esse enraizamento na carne, na história, e só pode fazer isso porque em seu coração está o Deus-homem-Jesus, não um espírito, não um amor desencarnado, não um sentimento ou um estilo de vida, mas um ser humano concreto, que, em sua vida verdadeira e concreta, revelou o próprio ser de Deus como Pai, Filho e Espírito.
2. O diálogo com outras religiões fica então irremediavelmente comprometido? Alguns (como Mancuso) pensariam que sim. O problema, na realidade, é que, mesmo neste caso, o diálogo só parece possível quando os parceiros renunciam ao próprio ponto de vista, à própria identidade, ao próprio ser. Mas não é precisamente a verdade, a consciência de quem se é, que torna possível o diálogo e o encontro com o outro?
A convicção ingênua é de que somente entre pessoas “sem rosto”, somente na “noite escura” hegeliana, onde uma pessoa não se distingue da outra, é possível um reconhecimento mútuo, porque, onde não se tem características próprias, é possível encontrar um ponto de contato comum, uma zona cinzenta onde, na realidade, ninguém tem um lugar próprio.
Na realidade, toda religião (se for verdadeira e autêntica) acredita conservar uma verdade pela qual se pode até chegar a oferecer a própria vida, como testemunhas autênticas (mártires, justamente). Não é possível, portanto, pedir que toda religião se reduza aos termos mínimos, em uma “noite em que todas as vacas são pretas”, de modo que não haja mais diferenças.
O diálogo é possível não suspendendo a própria identidade (seja ela cristã, muçulmana, judaica, panenteísta, budista...), mas tornando-a explícita e fazendo dela um ponto de força e de partida, para que se possa realmente conhecer o outro por quem ele ou ela é e, assim, poder encontrar um terreno comum para o debate.
Uma espiritualidade amorfa, sem personalidade, na qual qualquer um poderia (em teoria) ficar à vontade porque a singularidade de ninguém é conservada para sempre, não é de forma alguma digna de nenhuma busca humana de sentido, não está à altura de ninguém que realmente pense que o sentido da própria existência é irredutível ao simples fato de existir nesta terra, nesta história, e, mesmo assim, está convencido (como o cristianismo) de que justamente esta vida é o ponto de partida irrenunciável para medir a realização que cada religião pode oferecer, cada uma a seu modo.
Esses dois pontos, do meu ponto de vista, são imprescindíveis e devem ser seriamente recuperados para compreender o valor do religioso e do espiritual, não apenas cristão, mas como tal, contra toda redução “espiritualista” (não espiritual!) da fé, contra toda escapatória desta história, deste mundo, desta carne que, segundo o cristianismo, Deus mesmo não se recusou a assumir e que, por isso, é digna de obter a eternidade, de existir para sempre, até mesmo de revelar em si mesma, precisamente por ser finita, a grandeza e a beleza divinas pelas quais sempre foi chamada e desejada.
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É possível uma salvação “sem rosto”? Em diálogo com Roberto Repole e Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU