10 Mai 2024
Em Fitópolis. A cidade viva, o especialista em neurobiologia vegetal repensa o passado, o presente e o futuro dos centros urbanos através de uma premissa clara: devemos conceber as cidades como organismos vivos se não quisermos que entrem em colapso.
A reportagem é de Queralt Castillo Cerezuela, publicada por La Marea/Climática, 08-05-2024. A tradução é do Cepat.
Stefano Mancuso (Itália, 1965) escreve que: “De espécie capaz de viver em qualquer lugar, transformamo-nos, em poucas gerações, em seres especializados na vida de cidade. Uma revolução apenas comparável à transição de caçadores-coletores para agricultores que ocorreu há doze mil anos”. Em seu último livro, Fitópolis. La ciudad viva (Galaxia Gutenberg, 2024), o especialista em neurobiologia vegetal faz um traçado pela arquitetura e o urbanismo que prevalece nas cidades de todo o mundo. Desde Francesco di Giorgi Martini e seu Tratado de arquitetura civil e militar (1486), Leonardo e seu Homem Vitruviano (1492), passando por Darwin e A origem das espécies (1859) ou as teorias de Lynn Margulis sobre a simbiose e a interdependência das mesmas ou de Piotr Alekséievich Kropotkin, Mancuso criou um friso sobre a evolução da concepção de cidade ao longo da história.
O fato de não sermos capazes de apreciar as inúmeras possibilidades de organização que outras formas de vida não humanas nos oferecem limita-nos profundamente. “De cegueira em cegueira, eliminamos tanta vida do nosso horizonte intelectual que no final ficamos sozinhos”, escreve o pesquisador. Acreditamos que estamos em vantagem, que “as rédeas do destino estão nas nossas mãos”, mas não é verdade. Para demonstrar isso, Mancuso remonta à segunda metade do século XIX e apoia-se na figura de Patrick Geddes, um dos primeiros botânicos a teorizar sobre as cidades e o seu planeamento.
Geddes é considerado um dos fundadores do urbanismo e no seu livro Cidades em evolução (1915) apontou uma das ideias que Mancuso recupera em Fitópolis: “(...) a cidade deve ser concebida não como um conjunto de estruturas inorgânicas montadas pelo homem, mas como um organismo cujo desenvolvimento é determinado pelo ambiente em que vive e que, por sua vez, exerce influência sobre o ambiente”. Resumindo: a cidade deve ser considerada um ser vivo que passa pelas mesmas etapas: nascimento, desenvolvimento e morte; e é habitado por organismos (nós) que devem colaborar entre si. Embora esta ideia pareça muito interessante – ainda mais agora no contexto indiscutível da emergência climática em que nos encontramos – e lógica, a verdade é que nunca se concretizou.
Mancuso vai inclusive mais longe: as cidades não apenas estão sujeitas a uma evolução semelhante à dos seres vivos, “(...) mas elas próprias contribuem em grande medida para a evolução das espécies que as habitam. O ambiente urbano é tão peculiar, e em muitos aspectos, extremo, que a pressão seletiva que exerce sobre os seres vivos é capaz de produzir mudanças significativas na estrutura e no comportamento das plantas, animais e microrganismos a uma velocidade que até agora não se acreditava ser possível”.
Um exemplo: os mosquitos que vivem dentro dos túneis do metrô de Londres sofreram um desvio genético em relação àqueles que vivem na superfície. E mais: na década de 1990, a geneticista Katharine Byrne descobriu que existiam até variações genéticas em mosquitos que viviam em diferentes estações de metrô. Diante desta descoberta, Mancuso pergunta: “Os mosquitos do metrô de Londres são geneticamente diferentes dos mosquitos da superfície ou estão apenas acostumados a viver no subsolo?”.
Este é apenas um exemplo, mas a verdade é que há anos que se vem demonstrando que nas cidades, as barreiras arquitetônicas, as estradas ou os canais induziram variações genéticas em diferentes espécies. Há espécies que mudaram tanto que até deixaram de ser sexualmente compatíveis com a espécie da qual evoluíram. “As espécies animais que compartilham conosco o espaço urbano estão modificando de alguma forma o seu comportamento”. Você sabia que a grande maioria dos pássaros urbanos, para se fazerem ouvir, tiveram que aumentar o volume de seus cantos? Ou que devido à iluminação modificaram o seu ritmo circadiano? Ou que tiveram que antecipar a época de nidificação devido ao aumento das temperaturas?
As plantas também não estão imunes aos efeitos que as cidades produzem nelas: nos últimos anos tem-se observado como a vegetação que povoa as nossas cidades mudou os seus mecanismos de ação ou as suas estratégias defensivas com o objetivo de se adaptar ao ecossistema do cimento. Agora, o que acontece com os organismos que não conseguem se adaptar a essas mudanças? O neurobiólogo não tem a resposta, uma vez que “a natureza procede por tentativa e erro, selecionando a cada momento o que é mais adequado em relação às mudanças do ambiente e descartando todo o resto”.
Portanto, não se pode concluir com certeza quais são e serão os efeitos da urbanização na evolução das espécies. O que se pode garantir, porém, é que os ambientes urbanos são especialmente hostis aos seres vivos. “A influência das cidades é muito mais profunda e penetrante, porque age diretamente no conjunto de relações que unem as espécies de um ecossistema”, afirma Mancuso.
Durante séculos, os humanos consideraram ou acreditaram que não têm nada a ver com a natureza, que estavam acima dela, que não estavam sujeitos às suas leis. No entanto, não é bem assim. Algo que o neurobiólogo italiano consegue ao longo do livro é colocar-nos diante de um espelho que nos oferece uma realidade que não gostamos: “O ser humano é parte integrante dos processos naturais e a evolução agirá sobre nós com a mesma força que sobre qualquer outra espécie viva. Não apenas estamos sujeitos às leis da evolução, mas, à luz dos efeitos que o ambiente urbano tem sobre a nossa espécie, estamos clara e evidentemente sujeitos a ela. Mais do que qualquer outro ser vivo, os seres humanos estão sujeitos a inúmeras pressões seletivas associadas à urbanização, que altera a mortalidade, a demografia, a transmissão de doenças, a poluição do ar, da água e do solo, a higiene, a alimentação, as relações sociais, a nossa microbiota e dezenas de outros fatores”.
Embora hoje cerca de 55% da população humana viva em cidades, durante a maior parte da história não era assim. “Antes de 1600, estima-se que a percentagem da população mundial que vivia em ambientes urbanos era inferior a 5%. Em 1800, esta percentagem era de 7%, e em 1900 aumentou para 16% (…) Trata-se de uma revolução repentina motivada pelo enorme número de vantagens que viver na cidade acarreta, mas cujas consequências para a nossa espécie ainda são nada claros”.
Aqui Mancuso levanta mais uma vez uma questão sem resposta, mas se olharmos para o passado recente – março de 2020 – podemos imaginar o que poderá acontecer nas cidades num futuro não muito distante: o elevado número de contatos que ocorrem nas urbes torna-as extremamente vulneráveis a epidemias: “nas cidades, as doenças infecciosas encontram condições ideais para proliferar”. E mais: o ambiente urbano é um dos mais mortíferos que existem. Segundo a The Lancet, nove milhões de mortes prematuras ocorrem todos os anos devido à poluição. A poluição do ar e da água ou a exposição a pesticidas, amianto, mercúrio ou cromo matam-nos; e isso é uma certeza comprovada. Então, o que estamos fazendo?
Vivemos em cidades que são metabolicamente ineficientes em todos os níveis. Além da proliferação infindável de resíduos de difícil eliminação, escreve Mancuso: “Não há espaço no planeta para produzir os recursos que seriam necessários para alimentar uma área urbana maior. Para que as cidades continuem a expandir o seu tamanho e, sobretudo, a sua população, são necessárias enormes quantidades de materiais e energia que devem ser extraídos de algum lugar e transportados até o seu destino. Isto implica uma política predatória em relação aos recursos limitados do planeta”. Porque, mesmo que neguemos diante do espelho, “nossa vida urbana está diretamente relacionada com o que acontece no resto do mundo”.
No ritmo em que as mudanças climáticas avançam, parece evidente que o planeta não será capaz de continuar a sustentar os ritmos atuais da nossa civilização e, embora a inovação tenha sido capaz, por enquanto, de impedir o colapso, também é limitada. Para isso, Mancuso assegura que a inovação tecnológica deve ser acompanhada de uma inovação social que permita minimizar o consumo e imaginar novas formas de governança global. Este dever é quase um imperativo, uma vez que os núcleos urbanos são e serão os primeiros a sofrer, e de forma mais dura, os efeitos das mudanças climáticas. Um exemplo: a onda de calor que ocorreu na Europa no verão de 2022 ceifou 61.672 vidas.
E outro fato: “Em 2050, as cidades terão em média o clima que têm hoje as cidades situadas cerca de mil quilômetros mais ao sul. As condições climáticas de Roma em 2050 serão semelhantes às da atual Esmirna; Londres terá o clima que Barcelona tem hoje; Paris, a de Istambul; e o de Madri será semelhante ao de Marrakesh. Um avanço: as iniciativas cosméticas que estão sendo aplicadas em todas estas cidades de nada servirão se não forem acompanhadas de uma verdadeira mudança social e de percepção do fenômeno climático, tanto por parte dos cidadãos como por parte de quem está no poder.
A esta altura do livro, Mancuso escreve sobre a migração, a impossibilidade de conter este processo, a necessidade de abrir fronteiras e abraçar uma realidade que já está aí: os deslocamentos climáticos. “O que acontecerá quando milhares de milhões de pessoas se deslocarem para sobreviver?”, pergunta o cientista, sem esquecer a questão demográfica: “a população do planeta continuará a crescer até atingir mais ou menos dez bilhões de habitantes em 2060, mas o maior aumento acontecerá nas regiões tropicais, precisamente onde o aquecimento global levará as populações a se deslocarem para o norte”. Mais uma vez, perguntas sem resposta sobre as quais deveríamos começar a refletir.
O livro termina tentando oferecer luz a tantas sombras. Mancuso convida-nos a refletir sobre a relação que temos com a natureza, sobre a possibilidade de transformar as nossas cidades áridas em verdadeiros viveiros de vida verde e apela à promoção da alfabetização científica, fundamental para pressionar quem toma as decisões.
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Stefano Mancuso: “Nossa vida urbana está diretamente relacionada com o que acontece no resto do mundo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU