12 Julho 2024
Yehuda Shaul é um ativista israelense. Nasceu em Jerusalém, há 41 anos, frequentou o colégio em um assentamento judeu na Cisjordânia ocupada e, como todos os e as jovens de seu país, prestou serviço militar nas Forças de Defesa de Israel (FDI), entre março de 2001 e março de 2004. Esta experiência mudou a sua vida para sempre e pouco depois, junto com outros 60 colegas, fundou a organização Breaking the Silence, que divulga os depoimentos de soldados para mostrar a realidade da ocupação nos territórios palestinos à sociedade em Israel e em todo o mundo.
A reportagem-entrevista é de Francesca Cicardi, publicada por El Diario, 10-07-2024. A tradução é do Cepat.
“O que fiz e o que vi durante o meu serviço [militar] me trouxe até onde estou agora”, relata ao jornal El Diario, em uma entrevista em Madrid, sendo inevitável falar sobre a atual guerra em Gaza. São mais de nove meses de guerra, com quase 40.000 palestinos mortos na Faixa de Gaza.
“Esta guerra já deveria ter acabado há muito tempo, porque os reféns não vão retornar com uma operação militar. Esta guerra tem de acabar devido à catástrofe humanitária em Gaza e o sofrimento de milhares de palestinos. “Esta guerra tem de acabar em razão da forma como Israel está agindo”, diz convictamente.
Shaul volta no tempo, até aquele fatídico dia de outubro. “Nenhum país pode permitir que aconteça em seu território e a seus cidadãos o que ocorreu no dia 7 de outubro”, quando o Hamas lançou um ataque brutal, de surpresa, ao sul de Israel, matando mais de mil pessoas e sequestrando outras 250.
“Israel tem a obrigação de se defender, mas também tem a obrigação de defender os seus cidadãos conforme o direito internacional e é muito evidente que as ações israelenses em Gaza violam completamente quase todos os princípios do direito internacional”, afirma, partindo da sua experiência como soldado.
Durante o serviço militar, passou mais de um ano em Hebron, uma das cidades da Cisjordânia em que a tensão se mantém muito alta porque existe um assentamento israelense dentro da cidade. O fim do serviço militar, há vinte anos, marcou um ponto de inflexão para Shaul: “Foi um momento terrível. A forma como eu explicava a mim mesmo as coisas que fazíamos durante o serviço [militar] deixou de fazer sentido. Não conseguia mais justificar essas ações”, assim como agora não consegue justificar as ações do Exército a qual serviu em Gaza.
“A forma como lutamos em Gaza não é importante só do ponto de vista moral e legal, mas também em relação ao dia seguinte. Receio que a forma como estamos agindo na guerra em Gaza, com o grande número de vítimas civis e de destruição de infraestruturas e propriedades civis, está lançando as sementes do ódio nas próximas gerações” de Gaza.
Shaul teme que a ofensiva em Gaza alimente o ódio contra Israel na sociedade palestina da Faixa, que Israel “está empurrando para a radicalização” e para grupos ainda mais extremistas do que o Hamas. Por isso, o ativista considera que não faz sentido falar do fim do Hamas – um dos objetivos declarados desta ofensiva que o governo israelense repete como um mantra – porque o que virá depois pode ser pior. Menciona, por exemplo, as 17.000 crianças que perderam os pais, segundo estimativas do UNICEF, e afirma que não vão “amar” Israel quando crescerem.
Shaul está convencido de que cada vez mais há israelenses que pensam como ele e que acreditam que esta guerra precisa acabar. Os protestos também aumentaram nas ruas de Israel, “mas o governo, composto por aqueles que tomam as decisões, não está disposto a rever o caminho que tomou”. Afirma também que, cada vez mais, os cidadãos entendem que, passados nove meses, “a guerra é sobretudo uma guerra política para que [o primeiro-ministro Benjamin] Netanyahu se mantenha no poder”.
Em sua opinião, o Executivo israelense – que classifica como “extremista” – está ganhando tempo para que a coalizão de partidos que governa “não entre em colapso e Netanyahu não seja obrigado a prestar contas pelas suas confusões jurídicas e os seus erros no 7 de outubro”.
O ativista está consciente de que o “trauma” vivido pela sociedade israelense no 7 de outubro está alimentando a irracionalidade da guerra. “Este trauma cria um grande buraco no seu estômago, na sua alma, no seu coração. E há duas maneiras de preencher este buraco: com raiva, fúria e pedido de vingança; ou com humanidade, compaixão e desejo de paz”, explica Shaul. Ele lamenta que a maioria da sociedade israelense tenha preenchido esse buraco com a primeira opção. “O sangue está fervendo há meses, a razão não tem espaço. Por isso, é muito importante que a comunidade internacional intervenha para mitigar esta raiva”, afirma.
Shaul acredita que só a pressão internacional pode fazer com que o governo ultradireitista de Netanyahu coloque fim ao conflito e que a pressão das ruas não será suficiente, mesmo que esteja aumentando a cada semana que passa. “Se a comunidade internacional não intervir seriamente, temo que Netanyahu prossiga por meses”.
O ativista, que sabe de cor os nomes de todas as operações militares israelenses em Gaza, afirma que a brutalidade das Forças de Defesa de Israel aumentou nos últimos 20 anos. “Após o 7 de outubro, as Forças de Defesa de Israel não decidiram reescrever do zero a política de alvos e as regras de combate, pelo contrário, baseiam-se em guerras anteriores. E os limites das guerras anteriores foram ultrapassados até chegar aos que vemos hoje em Gaza”, explica.
E acrescenta que isto também se deve ao sistema interno do Exército: “O uso desproporcional da força, como temos visto após o 7 de outubro, não é só uma resposta a este evento, mas a continuação de uma tendência prolongada: a ausência de prestação de contas durante anos”.
Contudo, não são só as Forças de Defesa de Israel, para a população israelense, os limites também mudaram, segundo Shaul. Na guerra atual, ninguém fica indignado ou surpreso com os “danos colaterais de três dígitos”, ou seja, a morte de “mais de cem inocentes, por cada médio ou alto comando do Hamas”, nos ataques que o Exército descreve em suas comunicações como “precisos”. “A tolerância israelense com os danos colaterais perdeu os limites”, afirma o ativista, referindo-se tanto aos generais que autorizam os ataques como ao público, que nada diz a respeito.
“Como podemos pensar que matar milhares de crianças nos trará mais segurança?”, pergunta Shaul a si mesmo e a seus concidadãos. “Toda pessoa que se preocupa com a vida dos judeus e palestinos precisa entender que o único caminho para avançar é uma iniciativa diplomática que aborde as raízes do problema”, que em sua opinião são mais de 75 anos de deslocamento e 57 anos de ocupação sofridos pelos palestinos, além dos últimos 17 anos de férreo bloqueio a Gaza.
“A sustentabilidade da autodeterminação dos judeus está diretamente relacionada com a conquista da autodeterminação dos palestinos. Espero que as pessoas consigam entender”, conclui.
Shaul vai ainda mais longe e afirma que “a ocupação está destruindo a moralidade do Exército israelense, está destruindo a sociedade israelense e, em última análise, é a maior ameaça ao Estado de Israel”. Explica que esta é a posição que divide com seus colegas da organização Breaking the silence, fundada com outros integrantes de sua mesma unidade, pouco após terminar o serviço militar. Atualmente, reúne mais de 1.400 homens e mulheres e é, “provavelmente, o grupo antiocupação mais ativo em Israel”, afirma Shaul, que já não está mais neste grupo desde 2020.
Não quer que suas palavras sejam mal interpretadas: “Não sou um pacifista, estou disposto a matar e a morrer pelo meu país. No entanto, acredito que não é possível defender moralmente a ocupação permanente da Palestina”, diz com firmeza. E defende a solução de dois Estados, uma fórmula que a comunidade internacional voltou a colocar sobre a mesa como solução para o conflito histórico entre palestinos e israelenses.
“Especialmente após o 7 de outubro, temos de demonstrar aos palestinos comuns que existe um caminho diplomático para a libertação, não só a violência”, diz Shaul, acrescentando que esta é a forma de combater o Hamas. Por isso, o ativista considera importante que a Espanha e outros países tenham reconhecido o Estado palestino neste momento, “para promover a não-violência” e “aumentar a pressão para acabar com esta guerra”.
“O fato de a solução de dois Estados permanecer apenas nos slogans e de Israel não ter prestado contas de suas violações do direito internacional nos levou ao 7 de outubro”, acrescenta. Agora, essas palavras precisam ser concretizadas nos fatos para evitar novas ondas de violência.
“O que o 7 de outubro nos ensina é que se você baseia a sua segurança nacional na força, precisa estar preparado 24 horas por dia, 7 dias por semana”, diz Shaul, que considera que para Israel tal condição não é “sustentável”. “Precisamos da diplomacia”.
Outra conclusão que o ativista tira do ataque do Hamas é que a prioridade do atual governo é “defender os assentamentos da Cisjordânia” e para os ministros mais radicais é “uma oportunidade para promover as políticas mais extremistas”. Menciona o ministro ultranacionalista e colono Bezalel Smotrich (ministro das Finanças) e o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, também ultranacionalista. Segundo o ativista, o seu objetivo é voltar a ocupar Gaza e restabelecer os assentamentos ilegais, que foram desmantelados em 2005, quando Israel se retirou deste enclave.
“Querem o caos, querem o extremismo. Querem tentar destruir o coletivo palestino”, alerta Shaul, e pergunta: “A comunidade internacional vai permitir?” “Precisamos de nossos aliados externos para garantir que esses desdobramentos horríveis não aconteçam”.
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Yehuda Shaul, ex-soldado israelense: “Como podemos pensar que matar milhares de crianças nos trará mais segurança?” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU