09 Julho 2024
Em 28 de junho, expirou oficialmente o prazo para que Dom Carlo Maria Viganò se defendesse pessoalmente ou por escrito e, portanto, começou oficialmente o processo extrajudicial contra o ex-núncio apostólico do Vaticano, junto ao Dicastério da Doutrina da Fé. Viganò, como havia informado após receber a intimação, não compareceu e, em vez disso, reagiu publicando seu pesado J'accuse, evocando o conhecido J'accuse le Concile de Dom Marcel Lefebvre, de 1976.
O texto assinado por Viganò o coloca automaticamente fora da Igreja Católica, independentemente da sentença que possa vir da Santa Sé. De fato, o ex-núncio declara: "Não reconheço a autoridade nem do tribunal que pretende me julgar, nem de seu prefeito, nem de quem o nomeou". Especificamente, Viganò escreve:
"Decidi tornar pública esta minha declaração, à qual acrescento uma denúncia de meus acusadores, de seu 'concílio' e de seu 'papa'. Rezo aos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, que consagraram a terra da Alma Urbe com seu próprio sangue, para que intercedam junto ao trono da Majestade divina, para que consigam que a Santa Igreja seja finalmente libertada do cerco que a eclipsa e dos usurpadores que a humilham, fazendo da Domina gentium a serva do plano anticrístico da Nova Ordem Mundial. A minha não é uma defesa pessoal, mas da Santa Igreja de Cristo, na qual fui constituído Bispo e Sucessor dos Apóstolos, com o mandato preciso de cuidar do Depósito da Fé e pregar a Palavra, insistir oportunas importunas, repreender, criticar, exortar com toda paciência e doutrina. Rejeito com veemência a acusação de ter rasgado o manto do Salvador e de ter me eximido da Autoridade suprema do Vigário de Cristo: para me separar da comunhão eclesial com Jorge Mario Bergoglio, eu teria que ter estado primeiro em comunhão com ele, o que não é possível, uma vez que o próprio Bergoglio não pode ser considerado um membro da Igreja, devido às suas múltiplas heresias e à sua manifesta alienação e incompatibilidade com o papel que invalidamente e ilicitamente desempenha."
E afirma que não tem medo do processo que, dadas as premissas, dificilmente o verá sair vencedor:
"Enfrento essa prova com a determinação que vem do fato de saber que não tenho motivo algum para me considerar separado da comunhão com a Santa Igreja e com o Papado que sempre servi com devoção e fidelidade filial."
Como base de sua posição contra Bergoglio e o Concílio, Viganò utiliza a bula Cum ex apostolatus officio, do Papa Paulo IV, que foi pontífice de 1555 a 1559. Segundo Viganò, a bula em questão
"(...) estabelece perpetuamente a nulidade da nomeação ou da eleição de qualquer Prelado — incluindo o Papa — que tenha caído em heresia antes de sua promoção a Cardeal ou elevação a Romano Pontífice. Ela define a promoção ou a elevação como nulla, irrita et inanis, ou seja, nula, inválida e sem nenhum valor (...). Paulo IV acrescenta que todos os atos realizados por essa pessoa devem ser considerados igualmente nulos e que seus súditos, tanto clérigos quanto leigos, estão livres da obediência a ela."
Com base nisso, Viganò, "com serenidade de consciência", considera que "os erros e as heresias" que ele recrimina contra Bergoglio "tornam nula a sua elevação ao trono". Para esclarecer o que está acontecendo no Vaticano, Il Mondo entrevistou o fundador da Comunidade de Bose, o monge cristão e ensaísta italiano Enzo Bianchi.
A entrevista é de Micaela Ferraro, publicada por Il Mondo, 03-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Professor Bianchi, o que está acontecendo no Vaticano e qual é a posição de Dom Carlo Maria Viganò?
Depois de uma vida inteira a serviço da Santa Sé — e devo dizer que Carlo Maria Viganò era conhecido como uma pessoa extremamente capaz, inteligente e diligente, ele era um verdadeiro executor das vontades da Santa Sé — quando, devido aos limites de idade, Viganò teve que deixar o cargo e não recebeu o reconhecimento que talvez esperasse, naquele momento ele começou uma contestação muito forte, a princípio simplesmente contra Bergoglio, depois, passou a uma contestação ao Concílio Vaticano II e às ações dos últimos pontificados e, por fim, parece que ele até mesmo se tenha feito reconsagrar bispo por Williamson (bispo britânico que foi excomungado e depois reintegrado, mas que se tornou tristemente famoso em 2009 por causa do escândalo internacional que provocou quando negou publicamente o Holocausto); ao fazer isso, Viganò certamente se colocou fora da Igreja, porque esse gesto prevê uma excomunhão automática sem a necessidade de a Santa Sé dar a excomunhão propriamente dita.
Viganò se colocou fora da comunhão católica, paira sobre ele um veredicto de censura muito negativo, muito forte, o maior que a Igreja Católica pode dar. Portanto, a situação no momento é a seguinte: a Santa Sé só precisará tomar ciência da sua excomunhão, ainda mais porque ele nem mesmo aceitou se confrontar com a Congregação para a Doutrina da Fé, que o havia chamado para dar explicações sobre a sua contestação e os seus textos. Com toda probabilidade ele sonha ter seguidores e, por isso, instaurou (ao que parece na Itália, perto de Viterbo), em uma casa, uma espécie de centro religioso que deveria ser até mesmo um local de formação de futuros padres; mas tenho a impressão de que, neste momento (que não é mais um tempo de cisma), dificilmente conseguirá ter seguidores.
A carreira de Viganò foi longa e rica: primeiro como observador permanente da Santa Sé no Conselho da Europa, em 1992 ele se tornou arcebispo, depois embaixador do Papa na Nigéria, depois na Secretaria de Estado como delegado para as representações pontifícias. Em 2009, tornou-se secretário-geral do Governatorato e, em 2011, núncio apostólico em Washington. No entanto, já nesse ponto, Viganò começou a mostrar sinais de impaciência: ele havia sido duramente criticado por sua gestão e denúncias de corrupção que havia feito durante seu período no Governatorato e, portanto, via a nomeação para os EUA como uma remoção. Após a renúncia de Bento XVI em 2013, não entrou no Conclave — já estava com 83 anos e acima do limite de idade.
Muitos fazem referência ao que aconteceu com Lefebvre. O senhor acha que os dois casos são semelhantes?
Não, absolutamente. Lefebvre tinha feito uma contestação contra uma nova ritualidade que resultou do Concílio e, efetivamente, uma nova liturgia era algo que poderia ser contradito por muitos católicos apegados à tradição; mas no caso de Viganò há uma contestação, sim, mas não há conteúdos que motivem um cisma e o estabelecimento de uma comunidade paralela.
Apelidado de "o bispo de ferro", Lefebvre lutou contra o Concílio e acusou Paulo VI de ter estabelecido "um novo dogma”, ou seja, "a dignidade da pessoa humana", que perfilava "a primazia do homem sobre Deus" e "o destronamento de Cristo". Após sua excomunhão, Lefebvre fundou a sua fraternidade em Econe, na Suíça. Tudo isso explica como o paralelismo com Viganò não demorou a surgir, mas a própria Fraternidade Sacerdotal de São Pio X – fundada justamente por Lefebvre – tomou distâncias do arcebispo há alguns dias. Qual será, na sua opinião, o futuro de Viganò?
Para além da sentença, ele parece já se ter emotivamente "separado" da Igreja de Bergoglio.
Temo que, para Viganò, o futuro seja de grande solidão. Ele certamente terá alguns dos contestadores do Papa Bergoglio com ele, são poucos, mas existem, e o acompanharão nos últimos anos de sua vida com essa contestação que às vezes será forte e precisa, às vezes será surda e pouco evidente, mas, por mais contínua que seja, não provocará nenhum cisma na minha opinião e nenhuma nova igreja aparecerá como aquela de Lefebvre.
Em sua opinião, haverá consequências para o Papa Francisco?
Acho que não, o Papa é muito tranquilo. Eu o conheço bem e ele não está nem um pouco perturbado pelas contestações que ocorrem contra ele; continuará seu caminho nestes últimos anos de seu pontificado sem se deixar impressionar por uma contestação que, devemos dizer, já começou dessa maneira, dessa forma, por alguns cardeais e alguns bispos em 2017, depois que ele abriu o caminho para a comunhão sob certas condições também para os divorciados.
As vicissitudes da Igreja são sempre percebidas como "distantes" pelas pessoas comuns: você acha que isso é um sintoma de uma distância geral entre um Vaticano "estático" e uma sociedade em evolução?
Sem dúvida, a sociedade está fazendo mudanças com uma velocidade vertiginosa e a Igreja parece incapaz de acompanhá-las, então, sim, nesse aspecto, certamente parece estar ficando para trás. E isso apesar do fato de que o Papa Francisco tenta, de tempos em tempos, dar passos inovadores. Mas a Igreja está, nesse sentido, certamente em uma condição de perda no momento, e não está sendo de modo algum ‘profética’ ao colocar em prática e levar adiante discursos que possam, de alguma forma, abrir para um futuro diferente.
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Rachadura no Vaticano? Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU