24 Março 2021
"Philippe Bordeyne é presbítero especializado em Teologia Moral e participou do Sínodo sobre a Família como perito. Propõe-nos uma reflexão sobre os divorciados vivendo em segundo casamento mostrando/esclarecendo o que mudou com o Papa Francisco especificamente no seu acesso à comunhão eucarística", escreve Eliseu Wisniewski, 15-03-2021.
Destaca inicialmente (p. 9-11), que na compreensão da Igreja romana, a ação sinodal se desenvolve cum Petro et sub Petro, com o bispo de Roma e sob sua autoridade. Assim sendo, a Exortação Apostólica A alegria do Amor (Amoris Laetitia) apoia-se amplamente sobre os documentos produzidos pelas assembleias de 2014 e 2015, mas ela traz um traço muito pessoal do Papa Francisco no conjunto do processo sinodal que ele impulsionou e concebeu de maneira nova (p.18-21)-, levando os comentadores a se interrogarem sobre as inflexões introduzidas por Francisco, não somente com relação às duas assembleias sinodais como também em relação às práticas pastorais em vigor na Igreja Católica trazendo divergências nas opiniões desde aqueles que afirmam que nada mudou até aqueles que proclamam que finalmente o Papa ousou pôr em movimento que estava bloqueado para sempre.
O cerne deste livro é o capítulo oitavo de Amoris Laetitia intitulado: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”. Este capítulo ocupa-se com as situações complexas ligadas ao contexto atual de maior vulnerabilidade familiar. No entanto, Bordeyne salienta que uma leitura apropriada das paginas/números deste capítulo supõe que preliminarmente se preste atenção ao conjunto da exortação Apostólica, esclarecendo a maneira pela qual Francisco conduziu o processo sinodal (p. 11).
Na primeira parte (p. 13-26), o autor faz um percurso em largos passos por Amoris Laetitia. Para Bordeyne importa não reduzir a perspectiva de Francisco ao problema das situações familiares, complexas, algo que falsearia o seu propósito, uma vez que, as famílias não são um problema, antes, são uma oportunidade. É necessário retomar a visão de Francisco sobre o amor humano, pois ela é ilumina a maneira bergogliana de encarar as pessoas divorciadas que vivem novas núpcias na Igreja e na sociedade, buscando fatores que possam encorajar o potencial de amor que as pessoas têm para que elas continuem a se expressar na realidade concreta das suas histórias e de suas disposições.
Uma frase do número 44 da Evangelii Gaudium serve como chave da compreensão da espiritualidade pastoral de Francisco: “um pequeno passo, no meio das grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre o seus dias sem enfrentar sérias dificuldades”. Entretanto, o olhar humano do Papa não se contenta em se maravilhar diante daquilo que uma pessoa é capaz de fazer e se tornar, mesmo quando sua vida tenha conhecido e conheça ainda impasses e fracassos. Trata-se, sobretudo de sua parte, de um olhar de fé que sabe reconhecer na fonte de tais mudanças a ação misteriosa da graça de Deus. O que Francisco mais aprecia é a mudança – impelindo-nos a discernir na fé todas as mudanças que manifestam uma vida que acolhe o poder de renovação contido no amor divino. Assim, no processo sinodal impulsionado, conduzido e respeitado pelo Papa Francisco (p. 18-21), sete palavras-chave marcaram o percurso de Amoris Laetitia. De maneira programática, os parágrafos 36 e 37, desenham o projeto de Amoris Laetitia – , a partir de onde é possível perceber esse movimento por meio de sete palavras que se organizam em três conjuntos de polaridades, que desembocam e um sétimo termo, central em Amoris Laetitia: o discernimento (p. 22-26). A primeira polaridade exprime a tensão entre o ideal e o concreto (p. 22), o segundo polo é aquele que une a graça divina ao crescimento humano (p. 23), o terceiro polo se refere à consciência dos fiéis e ao conhecimento concreto que têm de seus limites (p. 23-24). A sétima palavra e o discernimento: o trabalho interior que Francisco nomeia discernimento resulta da travessia paciente e rigorosa dos três polos precedentes (p. 24-25), favorecendo processos de maturação em todas as famílias (p. 25-26).
Ao longo da segunda parte (p. 27-83), Bordeyne reporta-se à Evangelii Gaudium para aprofundar o sentido das palavras que figuram o título do capítulo 8 de Amoris Laetítia ao apresentar o conteúdo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”. Amoris Laetitia manifesta de maneira concreta várias orientações presentes em Evangelii Gaudium. Assim, a fragilidade abordada no capítulo 8 de Amoris Laetitia, remete à passagem de Evangelii Gaudim 209-216, que se intitula “Cuidar da fragilidade”, ou seja, a partir da fragilidade é necessário prestar atenção nas mudanças do mundo contemporâneo, observando igualmente que Amoris Laetitia realiza a reaproximação entre “acompanhar” e “integrar a fragilidade” respeitando os processos – estes processos convidam a Igreja, portadora do anúncio fundamental da salvação, a assumir a tensão entre a plenitude e o limite (p. 31-35).
Segundo Bordeyne é preciso também observar a novidade da expressão escolhida por Francisco: “discernimento pessoal e pastoral”- a escolha desta qualificação modifica sensivelmente o sentido por sua dimensão pessoal do discernimento. Os fiéis concernidos é que são convidados a operar essas distinções junto com seus pastores, se sua situação mercê passar por um primeiro discernimento, antes mesmo de ser encaminhada para o processo legal do discernimento propriamente dito (p. 35-38), atendo-se, por isso, para alguns critérios de um discernimento prévio (p. 38-40), um discernimento que implique igualmente fiéis e pastores (p. 40-43).
Desta forma a Amoris Letitia completa a Familiares Consortio -, embora os critérios para iniciar um processo de discernimento, enunciados em Amoris Laetitia, digam respeito a categorias mais amplas de fiéis divorciados que vivem em segundo casamento do que as descritas por João Paulo II na Familiares Consortio, constata-se que as perspectivas morais e espirituais não são menos exigentes em Francisco. Os dois papas se apoiam, entretanto, em versões diferentes e complementares da vida moral, como demonstra o modo como cada um examina as necessárias distinções entre os fiéis que vivem em situações complicadas. Francisco tira as consequências do principio de irreversibilidade enunciadas por João Paulo II, ou seja, não basta constatar o caráter irreversível da história humana; ainda é necessário o engajamento para tornar essa história, com o sustento da graça misericordiosa, uma história de crescimento. Sob a luz da misericórdia divina é que se poderá articular o lado pastoral e o lado pessoal, tanto do discernimento quanto de integração. Entretanto, o modo concreto dessa integração depende de cada um, daí a necessidade de um discernimento pessoal e pastoral que permitirá determinar as modalidades (p. 43-47).
Nos ensinamentos de Francisco, se passa das distinções a serem feitas entre as pessoas que vivem um segundo casamento a um discernimento baseado no modo pertinente a sua integração eclesial, levando-se em conta sua situação objetiva e a resposta pessoal que Deus espera delas aqui e agora. No plano sacramental trata-se de um discernimento da consciência conduzido pela graça batismal (p. 48-52), a graça santificante é que habita as pessoas interessadas em assumir um papal ativo no discernimento pessoal e pastoral (p. 51). Faz-se necessário também um discernimento de ordem espiritual. A uma relação pessoal com Deus, a qual se realiza por meio de uma ligação viva com a Igreja e de uma disponibilidade ao Espírito Santo recebido no batismo (p. 52-57). A vida moral é também uma modalidade essencial da integração da Igreja (p. 57-60). Francisco esforça-se para mostrar, de várias maneiras, que as pessoas divorciadas engajadas em uma nova união portam em si inalienável dignidade moral (p. 58). Depois de chamar a atenção para o eixo fundamental da argumentação moral de Francisco, Bordeyne examina passo a passo como se desdobra em Amoris Laetitia: um discernimento sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes (p. 60-63); um discernimento sobre a prática das virtudes (p. 63-66); discernir o bem que hoje é possível realizar (p. 67): o bem que fazemos é resposta ao apelo de Deus (p. 67-69); almejar todo bem possível e somente o bem possível (p. 69-70); experimentar a paz de ter feito o melhor possível (p. 71-72).
Concernente ao modo sacramental de integração eclesial das pessoas divorciadas que vivem em segundo casamento, a palavra do Papa é discreta e circunscrita, mas pelo menos existe. A palavra do Papa é discreta e bem delimitada, mas segura (p. 73-81). Discreta, esta palavra figura explicitamente na nota 336, em que trata da disciplina sacramental, e na nota 351, que evoca a ajuda dos sacramentos ao citar o confessionário e eucaristia. Bem delimitada, a palavra do Papa não considera a ajuda do sacramento do matrimônio, nem mesmo sob a forma penitencial de uma bênção nupcial a título de “economia”, assim como na prática das Igrejas ortodoxas. O autor destaca que mesmo que o Papa Francisco expressou-se claramente, mesmo que tenha feito por meio de notas de rodapé, isso não diminui a autoridade de seu ensinamento, sobretudo porque se trata de notas explicativas que esclarecem e precisam o corpo do texto, e, ademais, seu conteúdo está ligado de modo relevante à argumentação do capítulo (p. 73). A norma geral permanece, mas é preciso discernir o particular (p. 75-77). Trata-se de discernir conjuntamente, na vida das respectivas pessoas, uma fraqueza particular e uma caridade ativa, as quais atestam que a graça misericordiosa de Deus está agindo na vida delas, de modo que o ardente desejo de comungar provém não delas mesmas, mas de Deus, que as faz participantes de sua caridade (p. 78-81). Frente a isso, Bordeyne chama a atenção para as atitudes que envolvem as decisões de foro íntimo (p. 81-83), tendo-se em conta que o discernimento pessoal e pastoral visa permitir, no foro intimo, a realização de etapas espirituais que podem necessitar de tempo. Esse discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto a novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa, sobretudo quando o discernimento leva a aproximar da mesa eucarística, é indispensável recomenda grande discrição, para evitar escândalo ou desmoralização de outros fiéis que lutam para continuar fiéis a Deus nesse domínio (p. 81-83).
Este estudo/reflexão do teólogo francês Philippe Bordeyne escrito com estilo didático, conciso e claro é um excelente instrumento para uma melhor compreensão da Exortação Amoris Laetitia sobre um tema atual, complexo e espinhoso: o tema dos divorciados quem vivem em segundo casamento. Conhecer as mudanças trazidas pelo Papa Francisco é fundamental para responder pastoralmente essa situação -, descartando posturas moralistas e condenatórias tão comuns nestes casos. Desautorizam-se também as posturas idealistas ou legalistas que impeçam de ver a situação real em que se encontram.
Se esquecer do ideal a ser buscado -, a misericórdia e o discernimento são as atitudes primeiras cristãos. Antes da norma, na aplicação e depois da norma: a misericórdia e o discernimento. É por estes caminhos que somos convidados a andar. Sensibilidade com esta realidade que exige discernimento em nome da fé.
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Divorciados vivendo em segundo casamento: o que muda com Papa Francisco. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU