12 Junho 2024
"Cinquenta anos ou mais de leituras feministas da Bíblia demonstraram amplamente essas incrustações patriarcais. As comunidades de fé evangélica não conservadoras reconhecem isso. Mas grande parte delas também sustentam que entre as páginas do Livro, nas palavras, na fé e nos testemunhos, primeiro entre todos Jesus de Nazaré, também estão presentes os anticorpos ao poder patriarcal que o habita", escreve Anna Maffei, pastora da Igreja Batista de Milão. Anna foi a primeira presidente mulher (2004-2010) da União Cristã Evangélica Batista da Itália (UCEBI), em artigo publicado por Adista, 08-06-2024. Tradução de Luisa Rabolini.
Aconteceu há muitos anos com uma jovem colega minha. Alguém tocou a campainha do apartamento adjacente ao local de culto. Era uma pessoa pedindo ajuda financeira. A pastora se pôs imediatamente à escuta do homem que, durante a conversa, sem saber como se dirigir à sua interlocutora, perguntou-lhe: “Posso lhe chamar de padre?”
Acumulei muitas anedotas como essa no meu longo ministério pastoral. Este ano completei 41 anos de pastorado.
Eu tinha levado meu filho para ser vacinado. A moça responsável pelo preenchimento do formulário da criança me perguntou qual era minha profissão. Eu respondi: “Eu sou uma pastora”. Ela me olhou interrogativamente e depois replicou candidamente: "Posso escrever dona de casa?"
Por outro lado, enquanto escrevo no computador, o Word marca como erro em vermelho tanto a palavra “pastora” como “pastorado”! Mas aqui é fácil remediar, basta adicionar ambas ao vocabulário.
Menos fácil é mudar os hábitos e as preguiças culturais e também tentar compreender as decisões, mesmo aquelas linguísticas de muitos dos nossos concidadãos e concidadãs, em primeiro lugar aquela que nos governa, que optou por patriarcalizar o papel institucional que assumiu, escolhendo para si mesma – mulher – o titilo de “o” presidente!
Cenas como aquelas relatadas acima, ou decisões questionáveis como a da presidente Meloni, indicam que vivemos num país que não só é profundamente patriarcal, mas em grande parte ainda identifica a Igreja Católica com “a Igreja”, ignorando o pluralismo interno ao cristianismo. Acrescente-se a isso a desconfiança preconcebida em relação às confissões religiosas não cristãs, particularmente o Islã, como demonstra o caso da inspeção do Departamento Escolar Regional Lombardo na escola IqbalMasih de Pioltello, imputada de ter fechado a escola no último dia de Ramadã.
No caso das igrejas protestantes essa ignorância generalizada é certamente “nossa culpa”, pois somos minorias pequenas e sociologicamente insignificantes. Mas não é só isso. Ignorar ou ser incomodados com o fato de que algo está mudando no panorama religioso do nosso país também é expressão de um achatamento cultural que não considera útil e de interesse comum olhar para o que acontece um pouco mais além do quintal de casa ou mesmo no nosso próprio quintal e diante dos nossos olhos.
E o que acontece nas minorias – antigamente se dizia confissões religiosas acatólicas – e em especial naquelas que se referem à reforma protestante em suas variantes, no que diz respeito à questão do patriarcalismo?
O protestantismo é plural nesse tema. É assim em nível internacional e também na Itália. Se vai desde as realidades eclesiais mais abertas e dialogantes até aquelas teologicamente conservadoras ou mesmo muito conservadoras. As razões para esse amplo espectro de posições são muitas e também têm a ver, mas não só, com a história das várias e muitas missões especialmente estadunidenses que deram o imprinting às igrejas por elas fundadas na Europa. As comunidades conservadoras se atêm a uma leitura literal da Bíblia que, como sabemos, é em grande parte um documento histórico enraizado em sociedades patriarcais. Elas assumem a posição subordinada da mulher ao homem como “quista por Deus” e não se desviam muito.
Cinquenta anos ou mais de leituras feministas da Bíblia demonstraram amplamente essas incrustações patriarcais. As comunidades de fé evangélica não conservadoras reconhecem isso. Mas grande parte delas também sustentam que entre as páginas do Livro, nas palavras, na fé e nos testemunhos, primeiro entre todos Jesus de Nazaré, também estão presentes os anticorpos ao poder patriarcal que o habita.
Buscar, encontrar e acolher a boa nova de que é possível superar o patriarcalismo na Bíblia sem renunciar a ela como documento fundador da fé cristã, é um desfecho possível, mas não óbvio. Da mesma forma que não são óbvias as consequências que essas “outras” leituras podem comportar. Trilhar esse caminho requer honestidade, ousadia e uma profunda fé na força renovadora do Espírito Santo que realmente sopra onde quer, embaralhando as cartas. Depende de nós compreender a direção e ser dócil à sua orientação.
Pertenço àquela parte do protestantismo que escolheu não fechar os olhos ao patriarcado presente na Bíblia e nos seus intérpretes, como na doutrina e nas escolhas ministeriais das Igrejas durante grande parte da sua história. Juntamente com as teólogas pioneiras e aquela parte das Igrejas evangélicas que aceitaram o seu desafio, eu também desde os anos da minha formação teológica me coloquei a caminho, empenhando-me o melhor que pude para a superação de uma leitura masculinista e sexista das Escrituras. Esse caminho ainda está em andamento e estou convencida de que nada deve ser dado como garantido de uma vez por todas.
Dada a vastidão do tema, limitar-me-ei a expor e comentar muito brevemente três teses.
Tese 1: Uma leitura crítica da Bíblia que parte da vida, da mensagem, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo como fundamento da fé cristã pode libertar-nos do patriarcalismo ainda vigente nas igrejas cristãs.
Se a cultura patriarcal significa a centralidade do homem nas histórias bíblicas, na legislação mosaica como nas relações familiares e sociais, centralidade que estabelece hierarquias de poder nas quais a mulher está sempre submetida ao homem, devemos reconhecer que tal cultura patriarcal é amplamente dominante na Bíblia.
A questão é se essa cultura é afirmada em toda parte nas Escrituras ou, pelo contrário, é em vez disso, contestada e relativizada. Posso apenas mencionar algumas poucas, mas significativas, metáforas do amor misericordioso de Deus como amor de mãe, ou recordar o fato de que o Espírito, em hebraico RUAH, justamente como a Sabedoria de Deus são em hebraico femininas no nome e nas suas personificações literárias. Limito-me a destacar apenas duas pistas: (1) o não patriarcal relacionar-se de Jesus de Nazaré com as mulheres; (2) o protagonismo feminino nas primeiras comunidades cristãs e as relativas emergentes problemáticas que isso comportava.
(1) Há unanimidade entre os exegetas de que Jesus tivesse discípulas em seu seguimento, mulheres que, contra todo costume, escolheram segui-lo em seu ministério itinerante e ouviram o seu ensinamento, as mesmas que não o abandonaram depois da sua prisão e foram, portanto, depositárias das histórias relativas à crucificação de Jesus, do seu sepultamento e da descoberta do túmulo vazio na manhã de Páscoa. As tradições antigas, além disso, reservam a uma ou mais discípulas a primeira aparição de Jesus ressuscitado e às mesmas o primeiro mandato para levar aos outros discípulos o anúncio da sua ressurreição.
Essa realidade histórica, juntamente com o primado recordado por Jesus da comunidade de fé sobre a família de sangue, coloca radicalmente em questão a ideia hierárquica tradicional. A mesma coisa acontecia em relação à sua forma de viver a messianidade (como modelo de realeza) que se expressava não como amor pelo poder, mas como poder do amor que se coloca ao serviço: “Sou entre vós como aquele que serve” (Lc 22,27).
A sua descida até à morte na cruz apresenta uma hierarquia invertida, na qual o Filho é expressão da identificação do próprio Deus com a humanidade dos sem poder. E a sua ressurreição, a sua redenção.
(2) Essa primazia do horizontal da comunidade sobre a vertical das subidas ao poder caracterizou a formação não hierárquica das primeiras comunidades cristãs e a plena participação das mulheres ao movimento, que nas primeiras décadas foi chamado de “novo caminho”, como missionárias, apóstolas, pregadoras, profetisas plenamente incluídas no culto cristão e na vida das Igrejas.
O que aconteceu naquelas primeiras décadas representou o fermento para um movimento que cresceu muito precisamente pela presença reconhecida de mulheres e dos/das escravos/as.
Depois, à medida que as comunidades se estabilizavam e se institucionalizavam, a igualdade inicial começou a desaparecer a ponto de quase cessar. Essa tendência já é muito visível na maioria dos textos mais tardios do Novo Testamento.
Portanto, o caminho para a despatriarcalização das comunidades cristãs parte do dado histórico da plena participação das mulheres tanto no discipulado de Jesus como no cristianismo primitivo, mas toma forma na releitura da teologia da cruz que subverte toda visão hierárquica da sociedade, que afirma a relevância das bem-aventuranças do Sermão da Montanha e a inversão pela qual os últimos são os primeiros aos olhos de Deus, as oprimidas não são mais amaldiçoadas pela opressão sofrida mas abençoadas por Deus e por Ele elevadas
Imagem: Praising © Mary Southard www.ministryofthearts.org/ Used with permission | Arte: IHU
Tese 2: Uma visão comunitária e não hierárquico-sacramental da fé cristã tem consequências na vida e nos ministérios das Igrejas.
Quando se reflete e se redescobre o caráter revolucionário da mensagem, das escolhas e da cruz da Cristo, confirmadas por Deus por meio da sua ressurreição, as Igrejas deveriam agir em conformidade atuando uma nova Reforma radical em sentido não patriarcal e não violenta.
(1) A horizontalidade como princípio escolhido por Deus tem como primeira consequência a transferência dos lugares de tomada de decisão das Igrejas dos topos de hierarquias teologicamente esvaziadas de sentido, às assembleias dos e das crentes. É aí que, invocando o Espírito em oração, se procura, juntos, a mente de Cristo (1Cor 2,16), se escolhem os próprios pastores, se toma ciência da própria atuação, mesmo no campo financeiro.
(2) Se Cristo escolheu o serviço em vez do poder, o reconhecimento dos ministérios realizado pelas comunidades que invocam a Ruah, ou seja, o Espírito, não deveria ter qualquer preclusão de gênero e de outro tipo. O patriarcalismo nas Igrejas, onde assumido como dogma, ainda reserva atualmente aos homens os ministérios ordenados e o poder de decisão. Em vez disso, é a vocação que o Espírito sussurra aos corações, que a Igreja reconhece e à qual os indivíduos decidem aderir, o princípio da distribuição de vários e diversos ministérios dentro e fora das Igrejas. Por demasiado tempo as mulheres foram deixadas de fora, assim como os homossexuais e os homens casados.
(3) A superação da cultura patriarcal e hierárquica deveria transformar aos poucos as Igrejas, ainda muitas vezes autorreferenciais, em contextos autenticamente ecumênicos que privilegiem a escuta, o diálogo e discussão fraterna e amigável, renunciando a todo dogmatismo. A discussão crítica também com o exterior é essencial, especialmente no que diz respeito a questões éticas emergentes.
(4) Um real seguimento e imitação de Cristo significa hoje, na era ameaçada pelas guerras globais infinitamente destrutivas, um apelo das Igrejas a assumir a não-violência como método de luta pela justiça e pelos direitos, pela transformação dos conflitos e pela construção de sociedades autenticamente solidárias. A não violência também significa abraçar uma ética do limite em relação à exploração dos recursos naturais e uma prática de respeito por todas as criaturas, pela sua vida e pela preservação das diferentes espécies.
Tese 3: Ser Igrejas da Palavra implica uma transformação da nossa linguagem no sentido da sua plena inclusividade.
Tudo passa pela linguagem, o ódio como o amor, a fé como o cinismo, a esperança como a depressão. De fato, o apóstolo Paulo diz que “a fé vem por ouvir a mensagem, e a mensagem é ouvida mediante a palavra de Cristo” (Rm 10,17). Negligenciar a linguagem, banalizá-la, usá-la como uma arma para diminuir, ofender, ferir o outro ou a outra é renunciar à capacidade criativa da linguagem e transformá-la em uma invectiva.
A cultura patriarcal foi, e ainda é, uma palavra imposta de cima, uma palavra de poder, uma palavra de posse e, portanto, palavra violenta.
Deus criou o universo com sua Palavra de acordo com o primeiro relato da Criação.
A palavra de Deus conduziu uma horda de escravos à liberdade.
O Ressuscitado confiou a continuação da sua obra no mundo à palavra dos e das testemunhas. Foi aquela palavra que, como uma semente generosamente doada à terra, criou o vasto movimento de fé que transformou o mundo para sempre.
A Reforma do século XVI foi possível graças à difusão da palavra escrita, da Bíblia traduzida na língua do povo, mas também à impressão e difusão das ideias, das esperanças e das visões de um futuro diferente.
Às vezes, como na poesia, a linguagem assume um caráter criativo, outras vezes esse caráter desaparece miseravelmente.
Hoje a linguagem corre na web, às vezes anonimamente, e sorrateiramente ofende a ponto até de matar.
Como drones lançados de lugares escondidos que causam massacres a milhares de quilômetros de distância.
Devemos assumir a responsabilidade pelas nossas palavras. Elas serão reconhecidos como palavras de autoridade se corresponderem aos nossos pensamentos e ações. Elas serão conversa fiada se usadas para confundir.
Hoje, a libertação do peso opressivo do patriarcado passa também pela restauração à palavra da sua humanidade e dignidade.
A linguagem que inclui, por exemplo, o feminino e o torna “visível” é uma reforma importante.
Quem é nomeado existe, quem não é lembrado morre. A masculinização de papéis e tarefas é uma falha na resposta a esse chamado de verdade. É um curvar-se aos poderes de sempre, mesmo que por puro acaso se seja mulheres poderosas!
Dizer “os homens” é falar de outros, eu não estou incluída. Mas eu também vou ser incluída se falar, mesmo que for mais difícil: “os homens e as mulheres”, “as pastoras e os pastores” começando “pelas meninas e pelos meninos”.
A linguagem é o espelho daquilo que somos. Como diz o livro dos Provérbios (cap. 15), que noutros aspectos é muito patriarcal: “A resposta branda desvia o furor (…). O homem se alegra em responder bem, e quão boa é a palavra dita a seu tempo!”. A doçura, a alegria e uma palavra boa no momento certo! Uma lição e um programa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Posso lhe chamar de "padre"? Preconceitos patriarcais. Artigo de Anna Maffei - Instituto Humanitas Unisinos - IHU