11 Junho 2024
O artigo é de Anselmo Borges, padre e professor de filosofia, publicado por Religión Digital, 11-06-2024.
Numa entrevista recente com Norah O'Donnel, o Papa Francisco alertou contra os perigos do dogmatismo: "Um conservador é alguém que se apega a algo e não quer olhar além disso. É uma atitude suicida, porque uma coisa é levar em conta a tradição, considerar as situações do passado, e outra fechar-se numa caixa dogmática".
Francisco tem razão e, neste contexto, volto à celebração da Eucaristia, que é essencial na Igreja. Jesus, prestes a ser condenado à morte, ofereceu uma refeição, a Última Ceia. Nela, dando graças, abençoando o pão e o vinho, que significam a doação da sua pessoa por amor a todos, disse: “Fazei isto em memória de mim”.
Os primeiros cristãos reuniram-se e, recordando (palavra bonita: passando novamente pelo coração), o que Jesus fez foi celebrar um ágape, a “partição do pão”, uma refeição festiva e fraterna, aberta a um novo futuro de vida. E aconteceu o que talvez tenha sido a maior revolução do mundo antigo: se algum senhor se convertesse à fé cristã, agora sentava-se à mesma mesa com os seus escravos, em irmandade.
Foi mais tarde, também porque os cristãos foram acusados de serem ateus por não oferecerem sacrifícios à divindade, quando a Missa perdeu o seu caráter de banquete festivo e fraterno e passou a ser concebida como um sacrifício. Houve uma imolação e – li num livro de teologia – uma “mactatio mystica Christi” (morte mística de Cristo), e debateu-se se era real, moral ou sacramental. Mas esta transformação deu origem a mal-entendidos flagrantes.
Sim, Jesus foi vítima, mas vítima de um assassinato político-religioso, não de um deus sádico. Ele não fugiu, não se encolheu, aceitou a morte e a morte de cruz, entregou-se para dar testemunho da verdade e do amor. Não como uma vítima expiatória de sacrifício, para implorar a misericórdia de Deus e apaziguar a sua ira, como infelizmente isso foi ensinado no catecismo. Um conceito de adoração sacrificial contradiz a revelação essencial de Jesus: Deus é bom, pai/mãe, Abba, amor incondicional. Ele não quer sacrifícios, mas justiça e amor.
Com este conceito sacrificial, embora nem Jesus nem os apóstolos tenham ordenado sacerdotes e o Novo Testamento evite a palavra hiereus, apareceu o sacerdote que oferece o sacrifício. Com a celebração diária da missa como sacrifício, impôs-se a obrigação do celibato, porque o sacerdote é separado, à parte, e não pode tocar na impura profanidade do corpo da mulher.
Precisamente por esta razão, as mulheres são excluídas da ordenação: são impuras por natureza. Isto é em parte a raiz da misoginia da Igreja, com traços até ridículos – disse um bispo: como poderia uma mulher, feita para ser mãe, “sacrificar o Filho de Deus” – e incompreensível. O Papa Francisco, na mesma entrevista citada no início apenas descartou a ordenação de mulheres ao diaconato: “Se se fala em diáconas recebendo ordens sagradas, não”, foi direto.
Os sacerdotes acabam adquirindo um poder sagrado e divino: o de “trazer Cristo à terra” realizando o milagre da transubstanciação do pão e do vinho. Se casam, ficam “reduzidos” ao estado laico, como se ser clérigo fosse um estado mais nobre dentro da Igreja. Nesta declaração do Cardeal Robert Sarah, na homilia da celebração jubilar da sua ordenação sacerdotal, ficam claros todos os perigos da ordenação sagrada: "Um sacerdote é um homem que ocupa o lugar de Deus, um homem que está revestido de todos os poderes de Deus. Veja o poder do sacerdote! A língua do sacerdote transforma um pedaço de pão num Deus"
Esta é a raiz do clericalismo e, contra a vontade de Jesus que disse: “sois todos irmãos”, a Igreja com duas classes: o clero e os leigos.
E a Eucaristia deixou de ser uma celebração festiva em que todos concelebravam, para se tornar um sacrifício objetivo autônomo, que o sacerdote podia mesmo celebrar sozinho e oferecer pelas almas do purgatório e outras intenções. Você poderia ir à Missa e não comungar, porque estava lá, mas de fora, esquecendo que celebrar a memória de Jesus deve implicar uma verdadeira conversão ao seu projeto.
Sim, nós, católicos, acreditamos que na Eucaristia, na celebração como tal da sua memória, vida, morte, ressurreição..., Jesus está verdadeiramente presente. Mas observem que na Ceia, “Este é o meu Corpo”, “Este é o cálice do meu Sangue”, o “é” tem um significado funcional: isto representa a minha vida doada por amor a todos.
“Tomar e comer, tomar e beber”: este comer e beber não é um ato biológico-gastronômico, mas sim acolher a pessoa de Jesus como amigo determinante na vida e na morte. Para evitar até mesmo a acusação de teofagia, devemos distinguir entre presença física e presença espiritual-pessoal: pode-se estar fisicamente presente e verdadeiramente ausente. Hegel viu o perigo da objetificação na Eucaristia quando escreveu que, segundo a representação católica, “a hóstia é, através da consagração, Deus presente – Deus como coisa”.
Com esta interpretação reificadora da presença de Cristo, muitas pessoas, ao irem à missa e não comungarem, libertam-se da urgência de se converterem ao plano de Jesus. É nesta não conversão que São Paulo vê que na refeição comemorativa “comemos o pão e bebemos o cálice do Senhor indignamente”, tornando-nos “acusados do corpo e do sangue do Senhor”, isto é, culpados da sua morte. Na verdade, ele vê divisões na comunidade coríntia e que, enquanto alguns comem muito e ficam bêbados, outros passam fome.
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Anselmo Borges: “A missa como sacrifício impôs o celibato obrigatório e a exclusão das mulheres do sacerdócio” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU