Dois Estados. E Jerusalém? Artigo de Anselmo Borges

Jerusalém (Foto: beatriz ostos charro | Unsplash)

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30 Mai 2024

"O conflito do Oriente Médio é sobretudo político. Mas não haverá paz enquanto os membros das três religiões monoteístas, que se reclamam de Abraão, se não tornarem ativos, impedindo o fanatismo religioso", escreve Anselmo Borges, padre e professor de filosofia, em artigo publicado por Raiz e Utopia, 28-05-2024.

Eis o artigo.

Segundo as Nações Unidas neste ano de 2024 há — imagine-se! — 64 conflitos armados no mundo. É o horror pura e simplesmente.

A opinião pública estará sobretudo voltada para os conflitos na Ucrânia e em Gaza. Deixo aí, com repetições, uma breve reflexão concentrada no confronto entre palestinos e judeus, pois está a ser objeto da atenção pública, também por causa das intervenções recentes do Papa Francisco em Verona e do bispo José Ornelas em Fátima. Sem esquecer, evidentemente, que o ataque terrorista do Hamas no passado dia 7 de Outubro é pura e simplesmente inqualificável. Não há realmente palavras para aquele horror monstruoso.

No passado dia 13 de Maio, no final da Missa que encerrou a peregrinação internacional, o bispo José Ornelas pediu “paz para a Ucrânia, naquela cruel guerra que já dura há tanto tempo. Paz para a Terra de Jesus, a Palestina, onde mais de 35 mil pessoas já perderam a vida e a maioria, escândalo dos escândalos, são crianças”; e disse também: “o pior de tudo, o que não se pode permitir, é proibir que chegue a ajuda alimentar necessária para mais de um milhão de pessoas que estão a morrer de fome. Daqui, da Cova da Iria, apelo, apelamos para a paz. É inconcebível para um coração humano que isto esteja a acontecer no mundo.”

No passado dia 18, em Verona, Francisco participou num acontecimento verdadeiramente profético, a anunciar que é possível o milagre da paz. Subiram ao palco e disseram: “Papa Francisco, sou Maoz Inon, sou de Israel e os meus pais foram assassinados no dia 7 de Outubro pelo Hamas; Papa Francisco, chamo-me Aziz Sarah, sou palestino e o meu irmão foi morto pelo exército israelense. Somos empresários e acreditamos que a paz é a coisa maior que podemos conseguir”, e apelaram à paz. As dezenas de milhares de pessoas que enchiam o anfiteatro romano de Verona ficaram suspensas num suspiro emocionado, a ansiar pela paz. A multidão aplaudiu de pé. O Papa agradeceu: “Tiveram a coragem de se abraçar, um testemunho não só de paz mas também de um projeto de futuro.” Abraçaram-se os três, no meio de aplausos e de lágrimas dos presentes.

Francisco tem sido incansável no apelo à paz, nomeadamente na Palestina, com a posição que sempre tem mantido, aliás na linha da diplomacia tradicional do Vaticano quanto aos dois Estados e ao estatuto especial de Jerusalém, cidade santa para judeus, cristão e muçulmanos.

Neste espírito, relembro, por exemplo, uma Carta de Francisco ao Grande Imã de Al-Azhar, no Egito, Amehd el-Tayeb: “A Santa Sé não deixará de recordar com urgência a necessidade de que se reate o diálogo entre israelenses e palestinos em ordem a uma solução negociada, encaminhada para a coexistência pacífica de dois Estados dentro das fronteiras entre eles acordadas e reconhecidas internacionalmente, no pleno respeito pela natureza peculiar de Jerusalém, cujo significado está para lá de qualquer consideração sobre questões territoriais. Só um estatuto especial, também garantido internacionalmente, poderá preservar a sua identidade, a vocação única de lugar de paz a que apelam os Lugares Santos e o seu valor universal, permitindo um futuro de reconciliação e esperança para toda a região. Esta é a única aspiração de quem se professa autenticamente crente e não se cansa de implorar com a oração um futuro de fraternidade para todos.”

A quem se admire com este pedido de um “estatuto especial garantido internacionalmente” para Jerusalém, em ordem a preservar a paz, aconselho que relembre o acordo das Nações Unidas sobre esta temática, e a quem quiser aprofundar a questão, a leitura de duas obras monumentais do teólogo Hans Küng: O Judaísmo, O Islão.

Como é sabido e repito, em 29 de Novembro de 1947, por maioria sólida e com o beneplácito dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, as Nações Unidas aprovaram a divisão da Palestina em dois Estados: um Estado árabe e um Estado judaico, com fronteiras claras, a união econômica entre os dois e a internacionalização de Jerusalém sob administração das Nações Unidas. Note-se que, apesar de a população árabe ser quase o dobro, os judeus, que então possuíam 10% do território, ficariam com 55% da Palestina.

O mundo árabe rejeitou a divisão e são conhecidas as guerras sucessivamente travadas. Mas, à distância, mesmo admitindo a injustiça da partilha e as suas consequências — é preciso pensar na fuga e na expulsão dos palestinos —, considera-se que a recusa árabe foi “um erro fatal” (Hans Küng). Aliás, isso é reconhecido hoje também pelos palestinos, pois acabaram por perder a criação de um Estado próprio soberano pelo qual lutam.

Como se tornou claro, a guerra não gera a paz, que só pode chegar mediante o diálogo, a diplomacia, cedências mútuas, com dois pressupostos fundamentais: o reconhecimento pelos Estados árabes e pelos palestinos do Estado de Israel e o reconhecimento por parte de Israel de um Estado palestino viável, independente, soberano. E Jerusalém?

Como já aqui escrevi, na continuação de Küng, o conflito do Oriente Médio é sobretudo político. Mas não haverá paz enquanto os membros das três religiões monoteístas, que se reclamam de Abraão, se não tornarem ativos, impedindo o fanatismo religioso. Com base nos seus livros sagrados — Bíblia hebraica, Novo Testamento, Alcorão —, judeus, cristãos e muçulmanos devem reconhecer-se mutuamente e lutar pela paz. Esta é a mensagem de Roma para Jerusalém.

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