28 Fevereiro 2024
"Estrabão dizia que ninguém na cidade 'deveria levar a guerra a sério'. No entanto, ao longo da sua história, Jerusalém sempre esteve no centro de conflitos. Assírios, egípcios, romanos, cruzados, otomanos: até o seu doloroso presente".
O artigo é de Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, em artigo publicado por Domani, 25-02-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o geógrafo Estrabão, falecido na época do imperador Tibério, em Jerusalém “ninguém deveria levar a guerra a sério" porque, apesar da abundância de água na cidade, o território onde se encontra – o das montanhas da Judeia – é estéril, árido e pedregoso. Mas em vez disso, há mais de uma dúzia de séculos, haviam se seguido conflitos frequentes na região, disputa contínua entre Assíria e Egito. E muitas outras guerras se multiplicaram desde a época romana àquela contemporânea, até aquela desencadeado em 7 de outubro pelo massacre de judeus longamente planejado pelo Hamas.
Há cerca de vinte anos, o arqueólogo Eric Cline listou e relatou 118 conflitos importante, desde a antiga Canaã – esse era o nome do país – até a segunda intifada que explodiu em 2000 (Gerusalemme assediata, Bollati Boringhieri).
Estrabão estava errado, portanto, ou talvez a sua observação fosse um desejo no contexto de dominação que Roma impunha à região há décadas. Em 63 antes da era cristã, Pompeu havia de fato, extinguido a última independência judaica, aproveitando-se de uma guerra civil, e havia sido constituída a província romana de Síria Palestina.
Na raiz dos conflitos por uma terra que, de forma polêmica, mas simplista, foi definida demasiado santa – com referência aos conflitos entre os três principais monoteísmos (Judaísmo, Cristianismo, Islã) – no entanto, existem tanto a história como o mito.
Assim como nas histórias da Bíblia hebraica os acontecimentos históricos e sua mitificação estão inextricavelmente entrelaçados. Num conjunto de textos que ao longo dos séculos alimentaram um imaginário poderoso, religioso, mas também político, explicado de forma fascinante no livro intitulado Esodo (Adelphi) do egiptólogo Jan Assmann, falecido em Constança na última segunda-feira.
Por quase um século, biblistas e arqueólogos têm discutido como teria acontecido historicamente o assentamento na terra prometida por Deus ao patriarca Abraão. Se foi realmente a conquista narrada pelos textos bíblicos como uma epopeia – com as sangrentas campanhas militares sob a liderança de Josué, o líder que sucedeu a Moisés, que por sua vez libertou Israel da escravidão do Egito – ou uma lenta penetração.
Já a figura de Davi tem traços bem mais definidos, cujas histórias são contadas em um belo livro de Ugo Volli: jovem herói e rei, místico e poeta, homem poderoso e pecador. Até se chegou a definir esse personagem tão famoso como “um fantasma mitológico, um salvador e até um serial killer”, com traços retirados de “uma magnífica biografia bíblica”, resume Cline.
No caso de Davi, porém, a arqueologia parece realmente provar que a Bíblia está certa: em 1993 e em 1994, foram encontrados fragmentos de uma inscrição em paleo-hebraico, talvez de 841 antes da era cristã, que mencionam a “casa de Davi”. Segundo o arqueólogo estadunidense – mesmo que a opinião dos seus outros colegas permaneça mais matizada – é “uma prova importante, de fonte não bíblica", da "linhagem real" que começou com o soberano que é o símbolo por excelência do povo judeu.
De fato, justamente o Rei David conquista Jerusalém, nome que já aparece em textos egípcios. E na “cidade de Davi” – a capital onde o soberano coloca a “arca da aliança” com Deus – seu filho Salomão, que o sucedeu entre 970 e 930, mandou construir o grande santuário. Mas depois de alguns anos, a monarquia unitária dividiu-se em dois reinos: Israel ao norte e Judá ao sul, espremidos entre Assírios e Egípcios, mas não raramente em contraposição entre si.
Os cerca de quatro séculos do "primeiro templo" foram assim marcados por repetidos ataques externos, mas também por conflitos internos, até que em 597 os babilônios de Nabucodonosor sitiaram e conquistaram Jerusalém. Outro cerco terrível – com duração de dezoito meses e confirmado por escavações arqueológicas – terminou com a destruição do templo de Salomão e a deportação para a Babilônia dos líderes hebraicos: segundo a tradição, era o 9 de Av (16 de agosto) do ano 586, data divisora de águas na história judaica.
Começou então o exílio, que terminou em 539 graças à vitória de Ciro, rei dos medos e dos persas. Os exilados puderam regressar à sua pátria e os dois séculos da era persa foram relativamente tranquilos, foram fundamentais para a configuração do Judaísmo e, mais tarde, do Cristianismo primitivo. O “segundo templo” foi construído e – com base em tradições e textos anteriores – se instalou e tomou forma grande parte da literatura bíblica hebraica, que releu toda a história anterior.
Até que Alexandre entrou em cena e substituiu a dominação persa: “A terra silenciou diante dele; tornando-se altivo, seu coração se encheu de soberba" lemos no início do primeiro livro dos Macabeus, que dessa forma introduz a divisão do império e a morte em 323 do jovem soberano.
Um ponto de virada decisivo na história cultural, a era helenística também marcou – com resistência à dominação pagã com massacres e revoltas, mas também com guerras civis – a última tentativa judaica de independência política, que se afirmou primeiro com a epopeia dos Macabeus (167-142) e depois com o reino dos Asmoneus.
Até Pompeu chegar a Jerusalém em 63, ousando penetrar o lugar mais inviolável do templo, embora não o saqueando como os invasores anteriores, e a região foi subjugada por Roma.
A hostilidade para com o governo romano também foi irredutível, resultando na guerra judaica que explodiu no ano 66 da era cristã e foi narrada pelo judeu romanizado Flávio Josefo. Em 70, após três meses de cerco, Jerusalém foi conquistada e, mais uma vez no dia 9 de Av, o templo – que Herodes, o Grande havia restaurado e onde Jesus havia pregado – foi incendiado e destruído pelas legiões de Tito.
Após a segunda guerra judaica, que durou entre 132 e 135, Adriano ordenou também apagar o nome de Jerusalém e na romana Aelia Capitolina os judeus foram proibidos de entrar.
Com a viagem de Melitão, bispo de Sardes, em busca dos lugares das Escrituras hebraicas, iniciou-se já por volta de 170 a história da "terra santa" cristã. Mas só com a época de Constantino – depois da perseguição sistemática de Diocleciano que fez muitos mártires na Palestina – a linhagem pró-cristã do imperador devolveu o antigo nome a Jerusalém. Simultânea foi a imponente política de construção sagrada, desenvolvida em vários locais da região na era bizantina.
O domínio de Constantinopla durou cerca de três séculos: em 614 a cidade foi sitiada e conquistada pelos Persas, que incendiaram a igreja constantiniana do Santo Sepulcro. Muitas dezenas de milhares foram os mortos, com “igrejas santas incineradas pelo fogo ou demolidas, altares majestosos destruídos, cruzes sagradas pisoteadas", descreveu com horror o monge Antíoco.
Soldados judeus participaram da conquista e, depois de quase cinco séculos, os judeus puderam finalmente voltar para a cidade. Porém, apenas por três anos, porque já em 617 foram expulsos pelos persas que formaram uma aliança com os restantes habitantes cristãos.
Outros reveses se sucederam: em 629 a reação bizantina permitiu ao imperador Heráclio recuperar a cidade dos persas, mas já em 638 Jerusalém se rendeu aos árabes. Para a cidade santa – que foi transformada no terceiro lugar sagrado do Islã, depois de Meca e Medina – foi o início de uma dominação muçulmana muito longa. Caracterizada entre 1095 e 1291 pelas Cruzadas, mas sobretudo pelas guerras civis, essa história foi, contudo, marcada por uma relação persistente com o Ocidente – que para a Idade Média é reconstruída por Antonio Musarra (Fra Cielo e Terra, Carocci) – e durou quase treze séculos.
Até 11 de dezembro de 1917, quando, tendo derrotado os otomanos e os alemães, Jerusalém foi ocupada pelas tropas britânicas do General Allenby que, tendo entrado na cidade a pé, declarou que as cruzadas haviam terminado.
Poucos anos mais tarde, tendo como pano de fundo o movimento sionista e depois o Holocausto, na Palestina sob o mandato britânico, um crescendo de violência cada vez mais generalizada levou – mais de vinte séculos após o fim do reino Asmoneu, à última forma de uma independência judaica – ao nascimento em 1948 do estado de Israel.
Com uma sucessão de guerras quase ininterruptas que estão gravadas na memória confusa e nos noticiários de hoje. E como Allenby, israelenses e árabes reiteradamente, com maior ou menor justificação, recorrem a imagens míticas da história para reler um presente também condicionado por potências externas à região. Justamente como no passado.
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Do Império Romano a 7 de outubro, Jerusalém é a cidade disputada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU