22 Dezembro 2023
"Os clássicos, incapazes de imaginar o futuro, tinham ancorado as suas utopias no notum do passado e ao próprio mito da idade de ouro (Saturnia tellus). Disso, a concepção cíclica do mundo e da história com o eterno retorno dos tempos: um motivo altamente produtivo de Hesíodo (séculos VIII-VII a.C.) até Vico. Uma idealização do passado a que correspondia à absolutização do presente, como nos ensinam Sêneca com o protinus vive, 'viva imediatamente', e Horácio com o carpe diem, 'aproveite o momento fugaz'", escreve Ivano Dionigi, reitor emérito da Universidade de Bolonha, e Gianfranco Ravasi, cardeal italiano e ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 26-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
(Re)Ler a história. As culturas clássicas e bíblicas se encontram no Festival do Clássico. Os dois protagonistas explicam antecipadamente a base da discussão “O que Jerusalém e Atenas têm em comum?”. Uma antiga questão aquela sobre a relação entre cultura bíblica e cultura clássica que já havia dividido os próprios Padres da Igreja. Para o intransigente Tertuliano (séculos II-III), que também foi responsável pela definição da mulher como “porta do diabo” (ianua diaboli), nada podem partilhar Atenas e Jerusalém, a filosofia da Platão e a igreja, os hereges e os cristãos. De opinião oposta era Basílio de Cesareia (século IV), que em seu Discurso aos jovens, exortava os netos a considerarem os clássicos mestres não apenas de intelecto, mas também de vida. Agostinho (A doutrina cristã 2, 60 ss.) adotará outro ponto de vista, recorrendo ao tema do roubo dos despojos dos egípcios: como os judeus, fugindo do Egito, não apenas escaparam da idolatria, mas levaram consigo joias, vasos de ouro e prata e roupas fazendo melhor uso deles, da mesma forma os cristãos, mesmo detestando os conteúdos (res) de cultura pagã, podem herdar suas palavras (verba) para melhor uso (ad usum meliorem). A divergência das interpretações não surpreende se pensarmos que a cultura do Livro é a bíblica, a cultura dos livros é aquela clássica: usando as palavras de Flávio Josefo (século I), a primeira baseada no acordo (symphonía), a segunda no "desacordo" (diaphonía).
Aquela pergunta retorna aos nossos dias na consciência de que aqueles dois mundos – na verdade mais no sentido das suas vistosas diferenças - não só marcaram todas as linguagens da Europa, mas ainda podem nos fornecer uma gramática para decifrar os novos questionamentos filosóficos, religiosos e antropológicos.
Os clássicos, incapazes de imaginar o futuro, tinham ancorado as suas utopias no notum do passado e ao próprio mito da idade de ouro (Saturnia tellus). Disso, a concepção cíclica do mundo e da história com o eterno retorno dos tempos: um motivo altamente produtivo de Hesíodo (séculos VIII-VII a.C.) até Vico. Uma idealização do passado a que correspondia à absolutização do presente, como nos ensinam Sêneca com o protinus vive, “viva imediatamente”, e Horácio com o carpe diem, “aproveite o momento fugaz”. Nessa perspectiva, onde tudo retorna na forma completa do círculo, não há espaço para o novum e para a esperança, até mesmo definida como uma "paixão" falaciosa (fallax) e monstruosa (dira), um feitiço (dulce malum) e um sacrilégio (nefas). As únicas esperanças conhecidas pelos tempos clássicos são aquelas “cegas” que o Prometeu de Ésquilo incutiu em nós iludindo-nos de sermos imortais.
No lado oposto, está a concepção bíblica da história, direcional e progressiva, presa no advento de Cristo, que divide o tempo em um antes e um depois, e como morreu apenas uma vez, como nos recorda a Carta aos Hebreus, não pode haver nenhum eterno retorno, mas sim a renovação contínua da história na perspectiva escatológica. Disso, a novidade da esperança que, fundamento da salvação para os crentes (Romanos 8, 24), será valor adotado e adaptado das ideologias futuras, como o Iluminismo e o marxismo. Devemos encontrar uma divergência semelhante no discurso teológico. Ao Deus criador e antiidólatra do Gênesis, pessoal e salvador do Novo Testamento, que não só procura o homem, mas se faz até mesmo homem, responde a religião clássica das estátuas e do templo, modulada em mítica (fabulosa), cósmica (naturalis) e política (civilis). O pagão Sêneca parece infringir esse paradigma onde afirma: “Deus está ao teu lado, está contigo, está em ti” (Carta 41, 1).
Então, Sêneca cristão? A ser incluído no catálogo dos Santos, como queria São Jerônimo? A ser reabilitado e creditar também o seu epistolário com São Paulo, flagrantemente falso? Para aqueles que querem arrolar Sêneca entre os cristãos, é preciso dizer que aquele de Sêneca - como aquele pagão lembrado por Paulo no Areópago (Atos dos Apóstolos 17, 23) – é um “Deus desconhecido”; é um deus que o sapiens, completamente desconhecedor da noção da graça como donum Dei, pretende até mesmo desafiar com a sua voluntas numa espécie de assalto ao céu; ele é um Deus poderoso e impassível (impatens), bem distante do Deus patiens da Cruz.
Na dimensão do divino, entre Jerusalém e Atenas há toda a distância entre a revelação e a religião. Tão inegáveis quanto surpreendentes, no entanto, as consonâncias éticas estóicas e especificamente de Sêneca não desprovidas de ênfases evangélicas e também místicas, como quando lemos na Carta 95: “Nosso dever é estender a mão ao náufrago, mostrar o caminho a quem o perdeu, repartir o pão com quem tem fome [...]. Somos os membros de um grande corpo e a natureza nos gerou parentes e sociáveis, vinculados por obrigações recíprocas”.
Também é diferente a concepção do “outro”. Inclusiva é Roma que torna cidadãos (cives) os próprios inimigos (hostes), que adota o conhecimento e as artes dos vencidos, que reconhece um Panteão miscigenado. E enquanto em Roma você se torna cidadão, na Grécia você nasce cidadão: portanto, os não-helenos são considerados bárbaros e escravos, segundo o próprio Aristóteles (Política 1, 1, 5). O Cristianismo trará justiça a todos esses julgamentos e preconceitos, anunciando uma nova lei, o nomos do amor, para a qual “não há judeu, nem grego, nem escravo nem livre, homem nem mulher” (Gálatas 3, 28).
É verdade que, em última análise, havia uma concepção diferente do próximo. Ao homem bíblico, criado à imagem e semelhança de Deus e destinado a compartilhar a trajetória da história da salvação numa perspectiva primeiro de queda e depois de ressurreição, contrapõe-se o homem clássico, sozinho, sem um Deus a quem blasfemar ou rezar, irremediavelmente marcado pelo limite (finis): o mal e a morte, duas questões últimas que o sapiens só poderá remover, apelando ao princípio “irresponsável” de que tudo é secundum naturam. De fato, o homem clássico não tinha, como o homem bíblico, a tarefa - para nós dramaticamente atual e urgente – de "cultivar e proteger" a natureza, mas ele próprio, marginal e parte anônima do universo, era uma tarefa da natureza.
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Jerusalém e Atenas, eternos retornos. Artigo de Ivano Dionigi e Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU