03 Outubro 2023
"Paulo, na metáfora de Augias, é Trotsky. Quando Trotsky é tirado do caminho, morre de morte violenta. Ao contrário de Trotsky, a sua visão prevalece, a sua ideia vence, a sua crença torna-se universal e prova-se duradoura".
O comentário é de Aldo Cazzullo, publicado por Corriere della Sera, 01-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Paulo de Tarso - o homem que deu dignidade cultural ao cristianismo, que reconciliou a pregação de Jesus com o classicismo - está entrando em Atenas, a cidade onde a filosofia e a literatura clássica nasceram. Há tempo Atenas é apenas uma sombra da sua grandeza passada. Certo, Græcia capta ferum victorem cepit, a Grécia conquistada conquistou o rude vencedor, come havia escrito Horácio: o mundo romano hauriu da fonte da sabedoria e da beleza dos Gregos.
No entanto, o antigo "baluarte da Hélade" tornou-se um centro secundário.
Paulo desembarca no Pireu e se encaminha a pé em direção ao centro. Não há ninguém com ele. Escreve Corrado Augias: “Pelo que Paulo sabe, por ouvir dizer, a espiritualidade de Atenas é pouco mais do que a consagração religiosa do patriotismo; não há nada de universal nas divindades daquele povo, nada infinito, apesar de serem divindades nascidas da beleza de uma língua e de uma poderosa civilização". A religião dos Gregos é mito, é literatura, mais que misticismo ou espiritualidade; e aquelas divindades tão semelhantes aos homens, em suas virtudes e ainda mais em seus vícios, são o que há de mais distante que se possa imaginar de um homem inquieto, neurótico, febril e possuído por Deus como Paulo.
No entanto, numa rua de Atenas, Paulo nota um altar com uma inscrição misteriosa: “Ao deus desconhecido”. Tem uma fulguração. E no Areópago, no lugar sagrado onde havia se reunido a assembleia que julgara o matricida Orestes perseguido pelas Erínias, Paulo começa ali mesmo o seu discurso: veio anunciar aquele Deus cuja existência os atenienses intuíram, mas nada sabem.
O artifício retórico é eficaz. Os sábios gregos ouvem atentamente aquele judeu cidadão romano que veio de fora. Mas Paulo logo tenta a sorte. E perde todo o seu crédito com a mesma velocidade com que a havia conquistado. Paulo anuncia Cristo. Fala do filho de Deus que ressuscitou dos mortos. E aqui o auditório começa a rir e vaiar. Alguns estão sinceramente divertidos. Outros estão irritados, acham que é zombaria. Ninguém o leva a sério: ninguém jamais ressuscitou dos mortos. O discurso de Paulo - Paulo, o sábio, Paulo que fala grego e conhece as leis de Roma — em Atenas é um fracasso total. No entanto, ele se mantém firme: sem a ressurreição, não existe cristianismo. Não a simples imortalidade da alma, àquela também haviam chegado os fariseus: a ressurreição da carne.
Devemos partir daqui, para encontrar na nova obra de Corrado Augias (Paolo. L’uomo che inventò il cristianismo, Rai Libri) o percurso que transformou o perseguidor dos cristãos no mais zeloso apóstolo de Jesus, e que fez de uma pequena seita a maior e mais poderosa comunidade religiosa do mundo. Um dos esforços mais titânicos da história da humanidade. No entanto, daquele homem, do “inventor” da nossa religião, como Augias o define, sabemos bem pouco. E não rezamos a ele, não o citamos, não o veneramos. Apenas alguns trechos de cartas, muitas vezes de difícil compreensão, talvez os momentos da missa em que os fiéis estão mais distraídos.
Corrado Augias. Paolo. L’uomo che inventò il cristianismo. Rai Libri (Foto: divulgação)
Augias escreve que “o seu carácter duro e a envergadura de seu pensamento contribuíram significativamente para afastá-lo da piedade popular. Paulo não é um santo que inspira ternura, como Francisco de Assis, por exemplo. Paulo pode inspirar respeito, até mesmo admiração, mas certamente não sentimentos afetuosos. Nietzsche o define como “um homem muito atormentado, digno de comiseração, muito inoportuno e inoportuno consigo mesmo”.
No entanto, devemos tudo a Paulo. Foi ele quem convenceu Simão Pedro – um homem profundamente bom, mas longe de sua altura intelectual – a pregar a palavra de Jesus no mundo. Foi ele quem enfrentou Tiago, “irmão de Jesus”, que queria manter a nova crença dentro de um pequeno grupo: atitude que Augias compara àquela de Stalin, defensor do “socialismo num só país”, contraposta à de Leon Trotsky, convencido de que a revolução deveria ser exportada para todo o mundo. Paulo, na metáfora de Augias, é Trotsky. Quando Trotsky é tirado do caminho, morre de morte violenta. Ao contrário de Trotsky, a sua visão prevalece, a sua ideia vence, a sua crença torna-se universal e prova-se duradoura.
Resta o fato que sabemos pouco sobre Paulo. E então vem em socorro a caneta do autor. Onde faltam informações certeiras, Augias romanceia, interpreta, deduz, conta: a partir do mistério da conversão, a queda na estrada de Damasco, que inspirou em Caravaggio a pintura que aparece na capa do livro. E depois a travessia do deserto, a descoberta do amor físico, o trabalho de fabricante de tendas, as perseguições, as fugas, as provações. E a sombra de Judas, a quem são dedicadas páginas belíssimas: não Judas, o traidor, mas Judas, o amigo tão fiel a ponto de sacrificar seu nome para cumprir as profecias ("Faça logo o que você tem de fazer").
Paulo é um dos melhores livros de Augias, ou melhor, um daqueles livros – como Questa nostra Italia, uma espécie de autobiografia nacional publicada em 2017 pela Einaudi – na qual Augias, que acreditamos conhecer, se revela melhor do que si mesmo. Porque por trás da elegância impecável, do traço elegante, da divulgação gentil, Augias é um homem de grandes paixões, talvez até de tormentos. Conscientes de que “os grandes visionários, os homens dotados de uma força missionária e profética são, como o vidro, muito duros, mas também muito frágeis. Eles sabem que estão rodeados de inimigos, mas prosseguem com a sua ação, atraindo novos seguidores conscientes de que a sua vida está perpetuamente suspensa num abismo."
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São Paulo não seduziu Atenas, mas foi o Trotsky do cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU