12 Mai 2021
"Este conflito recorda-nos que vivemos no meio de uma verdadeira idolatria do mercado e de um mercado religioso. Sabemos que quanto maiores são as angústias humanas, maior a necessidade de agarrar-se a "uma tábua de salvação". O terreno fica propício para a ação inescrupulosa dos mercadores do sagrado. Na religiosidade, seja ela popular ou com fachada de secularismo, a distância não é grande entre o Santo e a imagem do Santo." escreve Gilvander Moreira [1], Frei e padre da Ordem dos carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB, Ocupações Urbanas e Movimentos Populares e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
Atualmente no Brasil, muitos grandes templos estão sendo construídos: várias catedrais da Igreja Católica, imensos templos de igrejas neopentecostais e “templos” do deus capital (shoppings) etc. Para entender bem a dimensão e o significado destes templos faz bem recordarmos o culto à deusa Ártemis, na cidade de Éfeso, na Ásia Menor, na segunda metade do século I da era cristã. É bom considerar que a deusa Ártemis aparecia na sua estátua com a parte superior coberta por numerosos peitos que representavam a fecundidade da deusa. Sobre a cabeça, havia uma meia-lua. A estátua de Ártemis estava no meio do Artemision, imenso templo de 120 metros por 70, rodeado por 128 colunas de 19 metros de altura. O Artemision era o centro fervoroso de toda a região da Ásia Menor. As peregrinações e romarias ao Artemision produziam trabalho e riqueza a uma multidão de artesãos e comerciantes. Algo parecido com os grandes santuários religiosos da atualidade ou com os "santuários" da idolatria do mercado: os Shoppings Centers.
O Templo de Ártemis tinha muitas semelhanças com o Templo de Jerusalém. A cidade de Éfeso era famosa por sua deusa Ártemis, o que representava a base de um nacionalismo religioso local. A idolatria popular estava ligada à economia, ao templo e à cidade. Tudo girava em torno de uma estrutura econômica de produção de artesanato religioso, que proporcionava grande lucro aos seus produtores e comerciantes. Por isso, estes recebem o Evangelho de Jesus Cristo, anunciado pelo apóstolo Paulo, como um perigo mortal para seus lucros, para o templo, para a deusa Ártemis e para a grande cidade de Éfeso.
O projeto de Jesus Cristo consola os injustiçados e incomoda os exploradores, porque tem implicações político-econômico-culturais. As primeiras comunidades cristãs procuravam viver um espírito de partilha, que se concretizava na socialização dos bens econômicos (cf. At 2,44-45; 4,32-37). Como consequência, torna-se cada vez mais claro que os interesses econômicos baseados no lucro e na acumulação de capital são idolatria e se contrapõem ao Evangelho de Jesus de Nazaré (cf. At 8,18-23; 16,16-24; 19,13-19). De fato, em uma sociedade capitalista, máquina de moer vidas, o lucro e a acumulação de capital de uma minoria custam o sangue da maioria das classes trabalhadora e camponesa.
O apóstolo Paulo enfrenta a idolatria da deusa Ártemis. O apóstolo Paulo está desempenhando sua missão e se vê no meio de um tumulto em Éfeso, um episódio das missões paulinas em um contexto diferente, segundo o livro de Atos dos Apóstolos. "Assim, a Palavra do Senhor crescia e se firmava poderosamente" (At 19,20). Com este refrão a justeza da missão evangelizadora de Paulo se confirma. Podemos perguntar por que o evangelista Lucas, autor também de Atos dos Apóstolos, insere o relato da revolta dos ourives entre a decisão de Paulo de partir de Éfeso (At 19,21) – subir a Jerusalém - e a sua partida de fato (At 20,1)? Lucas gosta de intercalar um relato no meio a uma narração diferente [2]. Lucas prefere colocar a revolta dos ourives dentro da subida de Paulo a Jerusalém e não dentro das missões de Paulo, para reforçar a tese, segundo a qual o caminho da legalidade é o mais favorável para a evangelização ir conquistando espaços dentro do monstro que é o império romano.
Segundo o autor de Atos dos Apóstolos, a evangelização de Éfeso termina em At 19,20. Logo, o tumulto ocorrido em Éfeso por causa do ensinamento de Paulo não pertence mais aos relatos missionários de Paulo, mas ao relato da sua “paixão [3]” no caminho para Jerusalém. Em Éfeso acontece um conflito entre a idolatria de um mercado com "capa religiosa" e o evangelho de Jesus Cristo anunciado por Paulo [4]. Por outra perspectiva, podemos dizer que o conflito em Éfeso se dá entre a proposta cristã e o politeísmo tradicional que conserva grande força de atração sobre o povo.
Os últimos acontecimentos em Éfeso: Revolta dos artesãos (At 19,23-40). "Houve um grande tumulto por causa do Caminho [5]" (At 19,23). Provavelmente os primeiros cristãos e cristãs eram encarados como o Grupo do Caminho, porque eram caminheiros/as, missionários/as, que estavam sempre viajando. O tumulto teria ocorrido porque o evangelho anunciado por Paulo provocava queda na venda dos objetos religiosos e colocava em risco a vida da grande cidade, do templo de Ártemis e do mercado em torno do sagrado. Uns tentam criar um tumulto para "linchar" o apóstolo Paulo e seus companheiros. Outros preferem seguir a rota da legalidade, denunciando Paulo diante das instâncias jurídicas da cidade e deixando correr um processo legal.
Solução pela ilegalidade ou pela legalidade e conciliação? Lideranças de Éfeso tentam resolver o problema de dois modos: solução pela via ilegal e solução pela via legal e conciliatória. Pela via ilegal, Demétrio [6], um fabricante de artesanato em ouro e presidente da associação comercial dos artesãos da prata, tenta provocar um tumulto violento, confuso e ilegal, que postula o linchamento de Paulo e seus companheiros. Os adeptos da idolatria do lucro percebem claramente que o evangelho anunciado por Paulo desmascara e desmistifica a áurea religiosa que envolvia o mercado em Éfeso.
Demétrio lidera uma campanha em defesa do mercado religioso que rende dividendos para uma classe à custa do empobrecimento de muitos. Trombeteiam que não somente empregos estão em jogo, mas também o santuário do mercado "com fachada" religiosa. Uma propaganda enganosa e idolátrica se tornava cada vez mais ensurdecedora: "Grande é a deusa Ártemis dos efésios!" (At 19,19.34), bradavam. A repetição desta mentira mil vezes poderia torná-la palatável como verdade. Era como o mito do progresso e do desenvolvimento econômico capitalista, atualmente, considerado inexorável e que não pode ser questionado, segundo os arautos da idolatria do mercado.
Este conflito recorda-nos que vivemos no meio de uma verdadeira idolatria do mercado e de um mercado religioso. Sabemos que quanto maiores são as angústias humanas, maior a necessidade de agarrar-se a "uma tábua de salvação". O terreno fica propício para a ação inescrupulosa dos mercadores do sagrado. Na religiosidade, seja ela popular ou com fachada de secularismo, a distância não é grande entre o Santo e a imagem do Santo. O artesão fabrica somente a imagem, mas sabe que há uma relação estreita entre o Santo e a imagem. A competição religiosa pode rebaixar todas as religiões e igrejas, porque elas se deixam orientar pelos desejos forjados das massas. Desestabiliza algo estabilizado, gera crise e pode ser causa de conflitos sérios.
Pela via da legalidade, um magistrado da cidade, juntamente com os seus asiarcas (deputados do conselho regional da Ásia) propõe um processo legal, com audiências legais diante dos procônsules constituídos (At 19,35-40). Se existem queixas, existem também instâncias judiciárias. Que tudo seja feito dentro da ordem, da legalidade e do respeito às Instituições, dizem. "Além dos tribunais, existem as assembleias gerais do povo que são convocadas periodicamente e nas quais todos os homens adultos podem participar[7]". No final do discurso do magistrado está a advertência de que a assembleia é ilegal, porque não foi convocada por autoridades competentes. Logo, pode suscitar represálias do poder romano. O evangelista Lucas continua usando a estratégia da infiltração diante do poder opressor, não o confronto.
Nos dois modos de resolver o problema, podemos ver a diferença entre massa e povo. A massa é a multidão sem fisionomia; age por emoção e impulsivamente por sugestão. Já o povo é um grupo organizado e consciente que tem um projeto para a sociedade; age de modo consciente e planejado. Por que o autor de Atos dos Apóstolos opta pela via da legalidade? Como pano de fundo das primeiras comunidades cristãs sob influência de Paulo há um contraste: de um lado os empobrecidos, famintos, perseguidos, aflitos (Lc 6,20-23) e de outro, os enriquecidos (Lc 12,16-21) que se banqueteiam sem se preocupar com a miséria (Lc 16,19-31). Para as comunidades lucanas era importante "não dar murro em ponta de faca". Melhor infiltrar-se do que confrontar-se com uma força muitíssimo superior. Lucas é intransigente frente à opressão econômica realizada pelo Império Romano e quanto à exigência ética do cristianismo, mas, para abrir brechas para o projeto de Jesus não se nega ao diálogo cultural e político, a fim de canalizar para o bem a força histórica do mal.
Lucas é duro contra os ricos e a riqueza (Lc 6,24: “Ai de vós, ricos!”), mas denuncia a idolatria do capital de um modo a cativar os ricos para abraçarem a causa de Jesus e dos pobres. Lucas percebe, como Paulo Freire fez em nossos tempos, que a melhor forma de amar os opressores é tirar das mãos deles as armas de opressão. Este pano de fundo ajuda-nos a entender porque o relato lucano opta pela legalidade. Lucas quer mostrar o baixíssimo nível das massas politeístas e caracterizar o culto de Ártemis como pura confusão e idolatria.
Enfim, o apóstolo Paulo não baixou a cabeça para a deusa Ártemis e nem para os grandes templos com seus grandes negócios. E nós?
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A deusa Ártemis e o apóstolo Paulo: e nós? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU