10 Mai 2024
"A catástrofe vivida pelos judeus na Europa durante o Holocausto, no século XX se tornou também uma catástrofe para os palestinos. O Holocausto é uma mancha histórica indelével na história da humanidade. Mas o Holocausto e a Nakba, palavra usada para descrever a destruição da sociedade palestina em 1948, estão inegavelmente ligados entre si na história", escreve David Neuhaus, jesuíta israelense e professor de Sagrada Escritura, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 07-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há alguns anos, ministrei um curso sobre o conflito israelense-palestino numa universidade católica estadunidense. Durante uma conversa informal com alguns colegas expressei a minha forte desaprovação das escolhas políticas do governo israelense, a minha firme oposição às estratégias do exército israelense e a minha forte crítica à ideologia do sionismo político. Num momento de impasse da conversa, um ilustre professor de literatura inglesa virou-se para mim e com uma voz preocupada comentou: “É realmente terrível o que os judeus estão fazendo!” Fiquei surpreso visto que não tinha usado a palavra “judeus” em nenhum dos meus comentários sobre a liderança civil e militar israelense e sobre a ideologia política sionista. Mas o que me deixou sem palavras foi o que aconteceu em seguida. Gentilmente, o professor acrescentou: “Mas o que realmente me irrita são as mentiras que os judeus espalham sobre os alemães... uma das nações mais civilizadas que já habitou o planeta." Minha crítica à liderança israelense e à ideologia sionista havia encorajado aquele distinto acadêmico a me contar suas teorias de negação do Holocausto e de conspiração judaica. Infelizmente, hoje o antissemitismo continua a ser uma realidade. De fato, ainda hoje existem judeus que, pelo fato de serem judeus, devem enfrentar ofensas contra a sua identidade, discriminação, injustiça e até violência. Não há como negar. E, na sequência da desastrosa guerra que continua em Gaza entre israelenses e palestinos, o antissemitismo parece ter atingido novos patamares.
No entanto, o crescimento do antissemitismo também está ligado às políticas de um governo israelense de direita que pretende falar por todos os judeus, e que, aparentemente em seu nome, trava uma guerra impiedosa contra os palestinos. Cabe de imediato afirmar, em alto e bom som, que a justa luta para pôr fim à guerra em Gaza, bem como à ocupação e à discriminação em Israel/Palestina, não é por definição antissemita. Nem deveria haver um conflito entre a luta pela libertação do povo palestino e aquela para erradicar o antissemitismo, onde quer que apareça.
De fato, a luta contra o antissemitismo e aquela pela liberdade e a igualdade, os direitos e a dignidade dos palestinos deveriam ser vistas como parte de uma única luta por um mundo livre de injustiça, racismo e violência de todo tipo.
O antijudaísmo foi transmitido durante séculos no discurso cristão tradicional amplamente difundido.
Os judeus eram referidos como aqueles que mataram Deus quando crucificaram Jesus, e como cegos porque continuavam a negar que Ele era o Filho de Deus e o Salvador da humanidade.
Demasiadas vezes, ao longo dos séculos, os judeus foram discriminados e marginalizados, vitimados e perseguidos, assassinados e expulsos por causa de um ensinamento de desprezo que promovia a hostilidade contra os judeus e o judaísmo. Os judeus que tentavam escapar do antijudaísmo no mundo cristão naturalmente podiam aceitar “a verdade” e, tornando-se cristãos, eram na maior parte assimilados na comunidade cristã, embora depois da Inquisição no final do século XV nem mesmo isso fosse garantido.
O antijudaísmo transformou-se em antissemitismo no alvorecer da modernidade e adquiriu novo ímpeto na segunda metade do século XIX. Exclusão, discriminação, surtos de violência e por fim um genocídio organizado com precisão contra os judeus em diferentes partes da Europa e também em outros lugares, não se baseavam mais em tropos lógicos, mas sim numa retórica etnocêntrica secular que apontava os judeus como eternos outsiders, essencialmente subversivos, incapazes e não dispostos a se integrar e sinistramente hostis. Do fato de ser etnicamente, geneticamente e biologicamente judeus, a conversão não oferecia nenhuma saída. A partir do final do século XIX e durante a primeira metade do século XX, milhões de judeus foram assassinados e outros milhões foram desenraizados, enquanto o antissemitismo se concretizava em políticas estatais, brutalidade burocratizada e num genocídio meticulosamente planejado. Os impulsos patológicos do nacionalismo etnocêntrico e do populismo racista acabaram catastroficamente com muitas das variegadas culturas judaicas que por mais de dois milênios haviam enriquecido o continente europeu.
Os judeus que ao longo dos séculos haviam ficados ligados às suas várias pátrias europeias, esperando na plena integração como cidadãos iguais nos passos da emancipação civil anunciada pela Revolução Francesa de 1789, viram-se muitas vezes obrigados a escolher entre morte e exílio.
O ápice foi alcançado durante a Segunda Guerra Mundial, quando milhões de judeus foram assassinados pelos nazistas e pelos seus colaboradores na Europa, comunidades inteiras foram exterminadas e o centro do mundo judaico remanescente foi transferido para a Palestina, os Estados Unidos e em outras partes do Novo Mundo.
Uma das ideologias que emergiram na Europa perto do final do século XIX, no contexto desses sofrimentos, é o sionismo. Propunha uma solução para a chamada “questão judaica”. Procurando as suas raízes na tradição judaica, especialmente na Bíblia, formulou um nacionalismo à imagem e semelhança dos nacionalismos europeus que estavam se desenvolviam naquele período. Alegava que os judeus eram uma nação como qualquer outra nação moderna, cuja pátria era a Palestina. A ideia era criar um “estado judaico” ali, e em 1896 o fundador do sionismo político, o judeu austro-húngaro Theodor Herzl publicou um manifesto que tinha justamente aquele título, O Estado judaico. Um ano mais tarde, convocou o primeiro congresso sionista em Basileia, na Suíça.
A migração moderna para a Palestina começou após os pogroms antissemitas no Império Russo no início da década de 1880. A partir do século XX, alguns migrantes judeus na Palestina começaram a fazer reivindicações cada vez mais exclusivas sobre a Palestina. Muitos tentaram substituir os árabes palestinos, em vez de se integrarem na sociedade de língua predominantemente árabe do país, composta por uma maioria de muçulmanos, além de judeus, cristãos e outros. O córrego, que depois tornou-se um rio e finalmente migração em massa dos judeus para a Palestina em decorrência das políticas genocidas dos nazistas, foi ajudado e encorajado por alguns europeus que simpatizavam com os judeus no seu sofrimento. Muitos apoiadores cristãos também eram inspirados pela leitura fundamentalista dos textos bíblicos e pela não consideração pelas populações indígenas.
Enquanto os judeus praticantes sempre conservaram uma memória e um vínculo espiritual com a terra de Israel, o sionismo político tentou surfar a onda do colonialismo europeu. Isso provou ser particularmente eficaz quando os britânicos conquistaram a Palestina em 1917, depois de ter prometido aos judeus um "lar nacional", como escrito na Declaração de Balfour, elaborada poucas semanas antes da Palestina ser arrancada dos turcos. De 1917 a 1948, sob o Mandato Britânico da Palestina, os sionistas trabalharam incansavelmente não só para chegar para uma crescente presença judaica, mas também para estabelecer os símbolos de instituições estatais sob a cobertura do governo britânico. A população judaica aumentou rapidamente de apenas 10 por cento em 1917 para mais de 30 por cento em 1947, quando, após o Holocausto, as Nações Unidas decidiram dividir a Palestina em um estado judaico e um estado árabe. Embora os judeus ainda fossem uma minoria no país, a divisão deu-lhes 56 por cento das terras, enquanto 44 por cento foi para os árabes, que rejeitaram a decisão de dividir a sua pátria.
Em decorrência da guerra de 1948, após a criação do Estado de Israel e o subsequente nascimento da realidade dos refugiados palestinos, a Israel foi reconhecida a soberania sobre 78 por cento do território da Palestina mandatária. Os restantes 22 por cento do território foram incorporados pela Jordânia (Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental) e pelo Egito (Faixa de Gaza). Esses territórios foram ocupados militarmente por Israel após a guerra de 1967. Hoje em Israel existem sete milhões de judeus israelenses e dois milhões de árabes palestinos com cidadania israelense.
Nos Territórios Palestinos, que desde 1994 são administrados em parte pela chamada Autoridade Palestina, há cinco milhões de árabes palestinos. Pouco mais de dois milhões deles (pelo 70 por cento de refugiados) vivem na Faixa de Gaza, da qual Israel se retirou unilateralmente em 2005. Nos territórios que hoje constituem Israel/Palestina existem sete milhões de judeus e sete milhões de palestinos.
A catástrofe vivida pelos judeus na Europa durante o Holocausto, no século XX se tornou também uma catástrofe para os palestinos. O Holocausto é uma mancha histórica indelével na história da humanidade. Mas o Holocausto e a Nakba, palavra usada para descrever a destruição da sociedade palestina em 1948, estão inegavelmente ligados entre si na história. Da mesma forma que o Holocausto é decisivo para a identidade da maioria dos judeus, a Nakba está gravada na memória palestina, é a lembrança de como foram desenraizados e expulsos da sua pátria, de como muitas das suas cidades e aldeias foram canceladas e uma grande parte da população tornou-se refugiada em 1948. A Nakba continua ser uma realidade para os palestinos nos campos de refugiados de Gaza, Cisjordânia, Jordânia, Líbano e Síria, bem como para aqueles que permaneceram nas suas casas, mas vivem sob ocupação militar (nos Territórios Palestinos) e numa discriminação sistêmica como cidadãos de segunda classe (em Israel).
Muitos argumentam que o Holocausto não pode ser comparado a nenhuma outra tragédia humana, e aqui nenhuma comparação é pretendida. No entanto, foram os horríveis acontecimentos do Holocausto que convenceram muitos que os judeus precisavam de uma terra e de um estado próprios. Planejando a realização de tais objetivos, a Nakba foi iniciada na Palestina. Tinha que ser obrigatoriamente assim? O debate acadêmico especulativo que tenta dar uma resposta a essa questão, no entanto, não muda a realidade causada por aqueles eventos, ou seja, a criação de um estado definido judaico e o consequente confinamento dos palestinos às margens da história.
Os sionistas judeus e cristãos que promoveram a migração dos judeus para a Palestina e cultivaram as aspirações judaicas agiram de acordo com suas crenças no contexto da empreitada colonialista europeia, ou seja, a criação de impérios na Ásia e na África. Lord Shaftesbury, um político britânico do século XIX, definiu a agenda para a Palestina como “uma terra sem povo para um povo sem terra”.
Nobremente perturbado pelo sofrimento dos judeus na Europa Oriental, foi extraordinariamente indiferente ao destino das pessoas que viviam na Palestina, ou seja, um povo indígena num território que em breve seria colonizado, apenas mais um povo não europeu a ser ignorado como se não existisse. Lord Arthur Balfour compartilhava as suas simpatias pelo sofrimento dos judeus e o desinteresse pelo povo palestino, e a declaração de 1917 que leva seu nome mudou o curso da história na Palestina. Enquanto a vitória dos Aliados e a destruição do governo nazista puseram fim ao Holocausto, a Nakba ainda não terminou e a vida dos palestinos continua à sua sombra: exílio, ocupação e discriminação.
Infelizmente, o antissemitismo também encontrou abrigo no mundo palestino, árabe e, mais geralmente, muçulmano. Os conflitos do profeta Maomé com as tribos judaicas no século VII estão registrados em textos corânicos que nas últimas décadas foram brandidos no conflito no coração do Oriente Médio. Os tropos antissemitas europeus foram fundidos com esses versículos arrancados do contexto e aplicados aos judeus, onde quer que estejam, em nome da guerra contra Israel e o sionismo. O extremismo sionista radical antiárabe e o antissemitismo árabe extremista promovem um discurso estereotipado que não conhece compromisso, não conhece diálogo e só leva a mais violência, destruição e morte.
Enquanto a luta constante contra o antissemitismo é uma parte necessária da luta mais ampla contra toda forma de racismo e xenofobia, alguns desenvolveram definições do antissemitismo que deslegitimam a luta pela justiça e pela paz na Palestina. Foi feito um uso político cínico do antissemitismo para silenciar os palestinos e os seus defensores, acusando quem é crítico da ideologia sionista e da liderança israelense de ser partidário do antissemitismo.
Nesse contexto, é interessante lembrar que a única voz no gabinete britânico de 1917 que se opôs à Declaração de Balfour foi a do secretário britânico judeu para a Índia, Lord Edwin Montagu. Uma das razões pelas quais ele se opôs foi considerar que a proposta de que os judeus migrassem para uma "pátria" distante teria agradado aos antissemitas, que assim teriam conseguido livrar-se de seus vizinhos judeus. Hoje, essa conjunção de antissemitismo e sionismo é evidente quando os partidos populistas de extrema direita, cuja retórica é xenófoba e racista e muitas vezes cheira a antissemitismo, como a Frente Nacional na França ou partidos semelhantes na Áustria, Bélgica e outros lugares, oferecem um forte apoio ao Estado de Israel, apoio cultivado por políticos israelenses extremistas. As suas simpatias “sionistas” se entrelaçam com o seu racismo para com árabes e muçulmanos. Até mesmo alguns sionistas cristãos evangélicos, especialmente nos Estados Unidos, tecem um discurso, supostamente fundado na Bíblia, que é tradicionalmente antijudaico, antimuçulmano e antiárabe, mas solidamente pró-israelense e em apoio à guerra contra os palestinos.
Inútil dizer que há certamente aqueles que, ao mesmo tempo que defendem os direitos palestinos, poderiam estar inclinados ao discurso e à ação antissemitas. Criticar a ideologia sionista, as políticas e as práticas do estado de Israel, os seus órgãos militares ou estatais e agir contra eles, no entanto, não é sem si antissemitismo. Uma linha tênue, mas clara deve ser traçada aqui para evitar que as legítimas críticas se tornem uma diatribe racista. Várias definições recentes procuram fazê-lo com maior ou menor sutileza. Mas, em última análise, só será possível fazê-lo de forma coerente e com integridade moral quando a luta contra toda forma de racismo, injustiça e violação dos direitos humanos incluirá a consciência tanto dos traços perniciosos do antissemitismo persistente quanto da miríade de formas de sentimento antipalestino e antiárabe, de islamofobia e de brutal dissimulação da ocupação e da discriminação em Israel/Palestina hoje. Afinal, aqueles que lutam contra o antissemitismo, aqueles que defendem os direitos palestinos e aqueles que promovem a visão de uma sociedade em Israel/Palestina baseada na justiça, paz, liberdade e igualdade deveriam ser aliados na construção de um mundo melhor e não inimigos uns dos outros.
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Antissemitismo e Palestina. Artigo de David Neuhaus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU