04 Junho 2024
A vitalidade do catolicismo francês pode ser vista na forma de enfrentar os abusos.
A reportagem é de Giovanni Maria Vian, publicada por Domani de 02-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O catolicismo francês, embora minoritário e dividido entre progressistas e tradicionalistas, continua a demonstrar uma vitalidade e vivacidade criativas que faltam em outros países de antiga tradição cristã, da Itália à Espanha. O último exemplo é uma matéria de capa de jornal La Croix dedicada ao escândalo dos abusos, aprofundado graças a uma longo conversa entre a atriz Judith Godrèche, vítima que nos últimos anos encontrou a força para denunciá-los, e Jean-Marc Sauvé, ex-vice-presidente do Conselho de Estado.
Sobre os abusos cometidos pelo clero, a reação da Conferência Episcopal Francesa foi exemplar.
Em 2016, os bispos franceses criaram a Ciase, a comissão independente sobre os abusos sexuais na igreja, presidida por Sauvé.
A publicação do seu relatório final causou alvoroço em 2021 pela sugerida estimativa das vítimas de abusos por parte do clero a partir de 1950: um número enorme, 216 mil, tanto que o relatório provocou uma reação negativa de oito intelectuais na França, e na Itália despertou as reservas do presidente da conferência episcopal, cardeal Matteo Zuppi.
No entanto, a Ciase identificou três mil vítimas e ouviu 240 delas, que até então não tinham recebido atenção quando denunciaram, ou protegidas com medidas completamente inadequadas porque os predadores eram transferidos para outros locais. Foi o que aconteceu em Lyon no caso, tristemente famoso, de Bernard Preynat depois reduzido ao estado secular e condenado também pela justiça civil: uma história horrível que causou a demissão do brilhante cardeal Philippe Barbarin e foi levada ao cinema por François Ozon (Grâce à Dieu).
Na conversa no jornal católico francês Sauvé explicou que “onde há estruturas de poder, onde há menores, pessoas vulneráveis, há risco de dominação”.
Godrèche seguiu seu exemplo, abusada quando era uma atriz muito jovem. Em 2017 declarou ter sido agredida por Harvey Weinstein, depois nas primeiras semanas deste ano denunciou por estupro os diretores Benoît Jacquot (com quem foi morar quando tinha quatorze anos) e Jacques Doillon: mas o cinema é intocável – disse – observando não banalmente que há “uma espécie de glorificação do autor”: como “no culto”, e às vezes até com os “desvios de uma seita”.
Diante de uma “figura de autoridade” entramos num microcosmo onde não se sabe mais “o que é o bem e o que é o mal”.
Por isso foi “um caminho que levou trinta anos” – reconheceu a atriz e diretora que se mudou para os Estados Unidos – e recentemente “disseram-me que sou ‘radioativa’”, com a consequência que não chegam mais roteiros. Sofrer abusos “é uma pequena morte”, a tal ponto que “há uma parte de si mesmo que não será mais a mesma de antes”, observou ainda Godrèche.
Sauvé confirma que foi realizada “uma obra de morte”, quando, em vez disso, os padres deveriam ter “conduzido à vida”. Concluído o trabalho da Ciase, eu mesmo - confessou - “continuo fazendo terapia, tão pesado é carregar aquilo com que tive que me deparar”. Mas “é preciso ir ao fundo das trevas, trazer à luz o que aconteceu”: para poder “reconhecer e reparar”.
O problema é que cada instituição “pensa primeiro na sua própria proteção”. Assim, depois da publicação do relatório da comissão – recordou amargamente o seu presidente – “houve uma contestação frontal por parte da Igreja. Uma audiência da Ciase marcada com o Papa foi adiada e nunca remarcada." Mas às duas mil páginas rigorosas do relatório foi contraposta apenas uma dúzia de páginas da contestação de parte dos oito intelectuais franceses.
Por outro lado, a conferência episcopal presidida por Éric de Moulins-Beaufort, arcebispo de Reims admitiu corajosamente as suas responsabilidades e agora duas comissões estão se empenhando para a reparação. Na França, a Igreja Católica é a única instituição que empreendeu esse caminho, quis ressaltar Sauvé. Mas é indispensável estabelecer uma aliança com as vítimas.
Que, em primeiro lugar, devem ser ouvidas. “Vocês me deram o que eu esperava: tempo, atenção, benevolência; não ousei acreditar que fosse possível" disse com simplicidade uma delas ao presidente que perguntava o que poderiam fazer.
Um mês antes da entrevista publicada pelo La Croix, justamente dos abusos havia partido a análise pontual e fortemente crítica de um respeitado historiador jesuíta, Julio Fernández Techera, reitor da Universidade Católica do Uruguai, a respeito do declínio da Companhia de Jesus.
Confirmando que esse escândalo é, mesmo dentro de uma ordem religiosa há séculos na vanguarda, o sintoma gravíssimo de uma situação mais geral de decadência. Revelada externamente pela queda das vocações (com exceção da África) e pelo elevado número de abandonos.
Fernández Techera mencionou em seu texto, precedido de outros dois e intitulado Ad usum nostrorum (ou seja, dirigido aos coirmãos), o hediondo e obscuro caso de Marko Rupnik, o mosaicista acusado de abusos contínuos contra cerca de vinte mulheres, e depois aquele documentado em 2023 por uma investigação do jornal espanhol El País: uma história trágica que durou anos e que envolveu os jesuítas na Bolívia devido a uma série impressionante de abusos, neste caso muitas vezes contra menores. Os dois episódios dizem respeito à ordem religiosa fundada por Santo Inácio de Loyola, mas estão ausentes no último relatório interno sobre a sua condição atual (de status Societatis).
Desafiador e muito difundido, o relatório dos jesuítas ressalta a urgente necessidade de proteger os menores e os vulneráveis, sem, no entanto, fazer a menor menção - afirma o reitor da universidade uruguaia - aos encobrimentos dos abusos e às responsabilidades dos superiores. “A reputação da Companhia de Jesus foi muito atingida nos últimos tempos”: mas no texto “não há uma palavra” sobre como viver e assumir essa situação, resume Fernández Techera.
O que a Conferência dos Bispos de França fez foi precisamente o que o jesuíta reclama faltar na sua ordem. Tanto que foi definido sofrer da “síndrome de Ruben”. Uma imagem, retirada do quinto capítulo do livro bíblico dos Juízes, que o historiador aplica à atitude de quem se compraz em falar, mas não resolve e muito menos age.
A crítica de Fernández Techera dirige-se à própria linguagem agora em voga na sua ordem: define-a com o neologismo “jesuíto”, explicando com ironia que se trata de “uma língua difícil onde as coisas são ditas, mas de uma forma bastante obscura”. Mas acrescenta com mais seriedade que a “tradição intelectual dos jesuítas foi perdida” e que a Companhia de Jesus entrou “num labirinto emocional-espiritual do qual é difícil sair”. Porque – conclui – permanecemos “na crise pós-conciliar e o fracasso das visões secularizantes na pastoral, na catequese e na vida religiosa não nos ensinou nada. Continuamos, como adolescentes, a nos perguntar quem somos."
Segundo o historiador jesuíta, trata-se, em suma, de um sério declínio da sua ordem.
No entanto, o problema é mais geral. O escândalo tem, de fato, proporções mundiais e raízes culturais de longa data, como demonstrou Lucetta Scaraffia no recente Atti impuri (Laterza) e na introdução histórica de Agnus Dei (Solferino, também escrito por Anna Foa e Franca Giansoldati), que é dedicado aos casos italianos recolhidos pela Rete L 'Abuso dirigida por Francesco Zanardi, uma vítima. Mas, ao contrário da Bélgica, Alemanha, França, Suíça, Portugal e Espanha, a Itália continua a ser uma exceção porque não foi iniciada nenhuma investigação confiada a organismos independentes.
A crise revelada pelos abusos e seu encobrimento é “sistêmica”, denunciou em 2021 o cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e Freising, um dos mais importantes expoentes do catolicismo na Alemanha, onde justamente os jesuítas (mas não só) foram duramente marcados pelo escândalo. Por esse motivo o poderoso prelado apresentou a sua renúncia, que o papa a rejeitou. Mas depois, surpreendentemente, Marx não foi reconfirmado no conselho cardinalício que ajuda o pontífice no governo da Igreja.
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A vitalidade do catolicismo francês pode ser vista na forma de enfrentar os abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU