19 Outubro 2021
O arcebispo de Estrasburgo, Luc Ravel descobriu, ao chegar à sua diocese em 2017, numerosos casos de violência sexual. Procurou sensibilizar as suas equipes para a prevenção da violência sexual contra menores, através de uma cartilha chamada “Mieux vaut tard”, que traz o nome da carta pastoral que escreveu para demonstrar o seu compromisso como bispo.
A entrevista é de Pierre Jova, publicada por La Vie, 14-10-2021. A tradução é de André Langer.
Como o senhor acolheu a publicação do relatório da Ciase (Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja)?
A partir do dia 4 de outubro de 2021, o anúncio do relatório desencadeou uma onda de testemunhos na diocese: cerca de dez pessoas, relatando novos casos, não é trivial. Vou ter tempo para conhecê-los. Durante toda a semana tive longos momentos de partilha com meus vigários gerais e episcopais e vários padres da diocese.
Todos compartilham o sentimento de mudança, cujo efeito é mundial. Os próprios números falam por si. O termo “sistêmico”, que apareceu no relatório, nos deixou pasmos: por ser sistêmico, mudanças muito profundas terão que ser introduzidas na Igreja. Como me disse um dos vigários, esta é a hora da vergonha. Os padres devem ser humildes e discretos.
Neste vasto escândalo, ainda é possível, por parte dos bispos, ter uma palavra que seja ouvida, para os cristãos, mas também para o resto da sociedade?
Sim! Acho até que é necessário que tenhamos uma palavra, entre outras palavras. Não podemos mais dizer que a nossa palavra é a mais importante, que se sobressai sobre as outras. Agora, que palavra precisamos ter? Estamos em um momento “quente”, agora é a hora de expressar nosso espanto e nossa vergonha, e de receber as vítimas e ouvi-las. Para não ditar soluções imediatas. Sinto-me, neste momento, dedicado às vítimas. Muito tem sido feito na diocese para lutar contra os abusos, pensei que estava na metade do caminho...
Na verdade, estamos apenas no início, e muitas dioceses ainda nem iniciaram este caminho. Então chegará o momento de responder à pergunta: para onde vamos caminhar? O próximo encontro da Conferência Episcopal Francesa em Lourdes, em novembro, será uma oportunidade para refletir sobre isso, na colegialidade. Nós batemos no muro! Assim como Éric de Moulins-Beaufort, temo que melhorias saudáveis em nosso sistema não sejam suficientes...
Todos os seus irmãos bispos compartilham esta determinação de efetuar mudanças profundas na Igreja?
Durante a última plenária em Lourdes, em março de 2021, ainda havia divergências de pontos de vista. Os bispos com apenas alguns casos relatados entendem estes fatos de forma diferente do que aqueles com dezenas, como eu. No entanto, o mal não se detém na fronteira de suas dioceses... Isso sugere pensar que a palavra ainda não é totalmente livre entre eles. Desejo boa sorte aos bispos em questão!
Que reformas o senhor gostaria de ver surgir?
Para começar, que examinemos as 45 recomendações do relatório da Ciase e nos perguntemos. Qual é a responsabilidade da diocese, da França, de Roma? Por exemplo, o futuro órgão nacional de indenização de vítimas requer minha participação. Mas não sou eu quem vai mudar o direito canônico, mesmo que eu seja favorável a mudanças, e não apenas do Livro VI, que prevê as penas e as sanções canônicas.
Os católicos não deveriam começar a mudar a maneira como olham para os padres?
Certamente! Um certo olhar mal ajustado sobre eles induziu uma espécie de inclinação, uma certeza de que estavam acima de qualquer suspeita. Porém, temos tudo em nossa teologia do sacerdócio, com a herança dos Padres da Igreja, para responder a essas posturas clericais admitidas, inclusive admiradas entre os leigos. É Santo Agostinho quem recorda esta distinção: “Para vós sou bispo, convosco sou batizado”. O sacramento da ordem não apagou o do batismo! O padre é, portanto, um irmão entre seus irmãos e irmãs. Mas a maneira como nos comportamos apaga esse aspecto da fraternidade cristã. Todas as comunidades onde o fundador se fazia chamar de “pai” conheceram abusos. Os leigos veem os padres como irmãos e amigos? Jogamos futebol ou cartas com eles? Está claro que é todo o povo de Deus que deve mudar.
Alguns leigos expressaram nas redes sociais seu desejo de reformas, especialmente com o slogan # AlsoMyChurch. Qual é a sua reação?
Os leigos não têm apenas o direito de falar, são a Igreja! Sua fé deve se manifestar a partir do seu batismo. Em toda a Alsácia, muitos leigos, e especialmente as vítimas, estão prontos para nos ajudar. Com efeito, este trabalho não deve mais ser realizado apenas pelo bispo, junto com um pequeno grupo de especialistas. Só vai produzir textos que ninguém vai ler...
Na história da Igreja, os tempos de crise muitas vezes proporcionaram avivamentos espirituais. O senhor tem essa esperança?
Acredito muito nisso, embora não saiba como isso irá acontecer. Não conheço nenhum avivamento na Igreja Católica que não tenha passado pela pobreza e pelas provações. Mas a Reforma Protestante também nos mostrou que pode levar a divisões muito dolorosas, na forma de Igrejas constituídas ou não. Além disso, explico nossa dificuldade atual em evangelizar em parte por causa desses crimes e seu acobertamento. Eles são um freio desconhecido e invisível na propagação do Reino de Deus. É por isso que vivemos um tempo decisivo. Estamos numa encruzilhada. O que está em jogo é ver se respondemos “sim”, ou “sim, mas”... É um kairós. E os kairós do Espírito Santo, nós não escolhemos.
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“O termo ‘sistêmico’, que aparece no relatório da Ciase, nos deixou pasmos”. Entrevista com Luc Ravel, arcebispo francês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU