"Os escândalos que aparecem não devem apenas nos envergonhar, não apenas pedir perdão, mas nos questionar sobre aquele "sistema" que criou e permitiu tais atrocidades na Igreja, a fim de evitar que o horror volte a acontecer", escreve Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, na Itália, em artigo publicado por La Repubblica, 11-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Na sabedoria popular costumamos ouvir: “Quem faz o anjo faz a besta!”. Uma frase um tanto enigmática que quer nos alertar para uma certa ingenuidade, um pretenso angelismo que nos impede de ver a bestialidade em nosso cotidiano. É também por causa desse angelismo dominante que na Igreja não se supunham tão extensas as pragas da pedofilia e dos abusos sexuais hoje confessados também pelos bispos franceses. Assim, desvaneceu a idílica visão da instituição eclesial e esse crime horrível suscitou uma reação de rejeição em relação a figuras e instituições eclesiais que usufruíam de confiança e gratidão.
Na verdade, as fraquezas e os pecados que às vezes são delitos, desde sempre estão presentes na vida cristã e não basta uma batina, um hábito ou uma túnica para estar livres de tentações e recaídas. Mas é preciso reconhecer que faltaram prudência, discernimento, coragem, senso de justiça e que por muito tempo foi minimizado e culpadamente encoberto o que é um crime contra a pessoa. Após a indignação e a condenação, é necessário questionar-se sobre as causas que favoreceram o fenômeno: o ambiente fechado monossexual, a sacralização da figura do padre, o clericalismo, o autoritarismo, a falta de formação para a alteridade, uma devoção muitas vezes obsessiva do falso mito da adolescência e da infância.
Em minha vida acompanhei em uma jornada de conscientização alguns presbíteros que tiveram comportamento pedófilo e escutei as vítimas dos abusos com agrura e dor, chegando a constatar que havia uma patologia presente neles que os levava a devastar a vida dos outros e a sua própria. Reconheci que eram doentes a serem tratados e que na sociedade civil eram culpados e precisavam ser impedidos e reeducados com a pena prevista em lei. Ao mesmo tempo, na igreja essas pessoas deviam ser exoneradas de suas funções, mas nunca abandonadas e consideradas pecadoras sobre as quais sempre invocar a misericórdia.
A expressão "tolerância zero!" na vida eclesial, é evangelicamente insípida e contraditória àquela mensagem de misericórdia que o Papa Francisco repete. No entanto, me entristece que, como hoje na igreja se sofre e se denuncia zelosamente o escândalo da pedofilia, não se sofra da mesma forma pelo escândalo no Canadá: milhares de crianças indígenas arrancadas de suas famílias, maltratadas, levadas à morte e sepultadas em valas comuns por religiosos, freiras, missionários submissos às políticas colonialistas, desprovidos de toda humanidade e esquecidos do Evangelho: nesse comportamento não havia patologia, mas ódio racial, maldade, exercício de opressão.
Os escândalos que aparecem não devem apenas nos envergonhar, não apenas pedir perdão, mas nos questionar sobre aquele "sistema" que criou e permitiu tais atrocidades na Igreja, a fim de evitar que o horror volte a acontecer.
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