O relatório Sauvé, que na França relata os abusos na Igreja Católica cometidos por padres, religiosos e leigos empenhados em serviços eclesiais, é chocante sob muitos pontos de vista. É bom e correto que se fale muito e longamente sobre este horrível evento. É encorajador que mais uma vez o Papa Francisco tenha feito isso, com palavras duras e claras, com grande proximidade com as vítimas. Mas o Relatório francês, como outras investigações semelhantes em outros países - na verdade não muitos - destaca algo terrivelmente inacreditável: como é possível que por tantas décadas em tantos lugares do mundo nenhum membro relevante e de autoridade da hierarquia católica tenha se apercebido disso, ou melhor, nenhum bispo ou responsável de seminário, nenhuma autoridade diocesana ou paroquial tenha sentido o dever moral e religioso de abrir a boca e desencadear um movimento e uma denúncia clamorosa no cerne da Igreja Católica?
A reportagem é publicada por Il Sismografo, 06-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por que se ficou em silêncio por tantas décadas e talvez mais?
É verdade que a Igreja, os últimos papas, também denunciaram a prática do encobrimento dos padres pedófilos, muitos dos quais abusaram de meninas e meninos durante décadas. Milhares de denúncias em diferentes países do mundo contam que se tratava de fatos amplamente conhecidos nos respectivos ambientes ou lugares. Dava-se, assim, a impressão de que, para proteger a imagem da Igreja, convinha aplicar a regra resumida na frase: “quem cala consente”. [1]
A esmagadora maioria dos que sabiam calou-se e depois passou a fazer parte dos mecanismos de ocultação, muitas vezes organizados de forma a não deixar vazar nada que pudesse causar danos à Igreja.
O Relatório Sauvé mostra que não basta punir os pedófilos e nem mesmo punir quem os ocultou. É preciso também punir aqueles que aplicaram, e ainda o fazem, a política do silêncio que precede a ocultação (Luis Badilla).
Nota:
[1] Conta-se que seria uma variante de uma frase latina: Qui tacet, consentire videtur (Quem cala parece consentir). A frase seria tirada de um decreto de Bonifácio VIII.
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