10 Setembro 2011
"O Concílio Vaticano II pôs a Igreja no mundo, e não a Igreja como central em si mesma". Por outro lado, na América Latina, "a recepção e a aplicação do Concílio teve sua expressão na teologia da libertação como reflexão teológica". Mas, diante do cenário social e eclesial do continente americano, brota o apelo: "Não podemos continuar involuindo".
Nesse contexto, o Congresso Continental de Teologia, promovido pela Fundação Ameríndia junto com diversas organizações da América Latina e que irá ocorrer na Unisinos em outubro de 2012, não quer propor respostas, mas sim fomentar "novas perguntas para alimentar a esperança para seguir lutando por esse reino de Deus que queremos".
Para conversar a respeito da preparação para o Congresso, a IHU On-Line se reuniu com os representantes da Fundação Ameríndia, que coordena os trabalhos de organização do encontro que pretende reunir 700 teólogos e teólogas de todo o continente americano. María del Socorro Martínez, Pablo Bonavía e Roberto Urbina estiveram no IHU no final do mês de agosto para reuniões de organização e para participar do evento de lançamento do sítio do Congresso.
María del Socorro Martínez é educadora mexicana e religiosa do Sagrado Coração de Jesus. É presidente do Comitê Coordenador da Ameríndia Continental. É também coordenadora da Rede de Educação Popular das Religiosas do Sagrado Coração de Jesus em nível latino-americano e caribenho. É membro das Comunidades Eclesiais de Base, das quais é animadora e articuladora na América Latina. Faz parte do Conselho de Liderança Social Global, em um projeto em favor dos jovens nos Estados Unidos e México.
Pablo Bonavía é sacerdote uruguaio do clero diocesano de Montevidéu. É coordenador do Observatório Eclesial da Ameríndia. É professor de teologia na Faculdade de Teologia Monseñor Mariano Soler. Foi coordenador-geral da Ameríndia Continental até 2008.
Roberto Urbina trabalhou durante 30 anos na Conferência Episcopal do Chile. Nos primeiros 20 anos, foi diretor nacional de comunicação e depois coordenador nacional da Cáritas Chile. É também fundador e diretor da Campanha Quaresma de Fraternidade da Igreja chilena. Foi consultor de empresas em comunicação corporativa e participa em várias organizações sociais chilenas, dentre as quais a Ameríndia, com a qual organizou as Jornadas Teológicas Regionais em julho de 2011 como secretário-executivo. Ele também foi escolhido como secretário-executivo do Congresso.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é necessário resgatar ou tensionar do Concílio Vaticano II nesta segunda década do século XXI, a partir dos 50 anos de sua convocatória?
Pablo Bonavía – Parece-me que há duas intuições básicas do Concílio Vaticano II que continuam sendo necessárias para elaborar uma reflexão teológica que responda aos desafios de hoje, e não aos do tempo do Concílio. E continuam sendo necessárias para um discurso, um discernimento que dê conta do que o Espírito tem dito à Igreja, tanto em nível mundial como na América Latina.
Um primeiro ingrediente é que a teologia não se refere exclusivamente às reflexões para dentro da comunidade eclesial, mas tem a ver com discernir o que Deus e o reino de Deus significam no mundo hoje em dia. A teologia está como que se descentrando de si mesma, não porque renuncia à sua tradição, mas porque a sua tradição está ao serviço do seu discernimento. Então, é importante resgatar essa ideia de que os sinais dos tempos constituem uma categoria central do Concílio, como disse João XXIII, e Paulo VI o repetiu, que não é somente um recordatório protocolar, mas, de fato, é um ingrediente indispensável para uma reflexão teológica pública, metodologicamente rigorosa, mas também atualizada para o que a humanidade e o continente estão vivendo hoje. Essa categoria de sinais dos tempos faz com que a teologia se sinta humildemente ao serviço do que Deus já está oferecendo no interior da vida humana e do cosmos.
A outra categoria que me parece importante é resgatar que o Povo de Deus, como conjunto, é um sujeito que, de alguma maneira, é prioritário com respeito a todas as diferenciações posteriores, por carisma ou por ministério. E, portanto, nesse Povo de Deus, todos e todas somos ativos, além de passivos – ou seja, somos protagonistas, além de receptivos.
Por último, eu diria que o modo como se produziu o Concílio – que não foi inventar tudo do zero, mas sim recolher o que, durante várias décadas, já havia sido a prática das pequenas comunidades, dos movimentos bíblicos, litúrgicos, ecumênicos etc. – veio recolher o melhor que havia sido produzido a partir do espaço cotidiano da vida cristã e das comunidades, a mesma coisa que irá acontecer depois em Medellín, para a América Latina. O que é preciso manter do Concílio, também, é o modo como ele, o Concílio, fez o seu discernimento, que não foi esperar uma revelação do alto sem mediações, mas sim recolher a que antes havia sido a experiência dos cristãos e das comunidades em um nível mais de base.
Roberto Urbina – Na linha do conceito de Povo de Deus no Concílio, eu acredito que há aí um conceito de que existe um sacerdócio comum, que todos os batizados e todos os crentes cristãos temos em comum, e de que os ministérios, então, são o exercício de um serviço, e não o exercício de um poder. Esse conceito também é uma contribuição importante do Concílio, a meu modo de ver, e que foi muito bem acolhido na Igreja da América Latina, em Medellín, em Puebla. Depois, produziu-se uma involução.
E hoje é um momento para recuperá-lo, porque essa recuperação responde a uma demanda, a um desafio e, em alguns casos, a uma exigência dos movimentos sociais, das sociedades de hoje, que interpelam os cristãos neste sentido: no modo pelo qual abusamos às vezes do poder e não o entendemos como serviço, como ministério. Dentro da Igreja, antes de bispos, padres, papa, somos todos cristãos. Como diz a famosa expressão de Santo Agostinho, "para vós sou bispo, convosco sou cristão".
María del Socorro Martínez – O Concílio pôs a Igreja no mundo, e não a Igreja como central em si mesma. A Igreja está a serviço do mundo, se não ela perde a sua razão de ser. Ela é apresentada como sacramento de salvação, mas para esse mundo, e não ela mesma como parâmetro do que deve ser. E essa categoria de Povo de Deus ressoou muito na América Latina – nós a tomamos, a vivemos, especialmente nas comunidades de base. Mas ambas as coisas me parecem estar em involução, e por isso considero muito importante este momento para dizer: "Não podemos continuar involuindo".
Se é necessário usar uma nova categoria, é preciso usá-la. Mas o que vemos é que a Igreja está outra vez centralizada em si mesma e não em função de uma missão salvífica no mundo, e um Povo de Deus que está submetido a uma hierarquia centralizadora. Então, para mim, essas foram contribuições do Vaticano II. Mas onde está hoje o Vaticano II? Por isso, há muito desconcerto.
Pablo Bonavía – As pessoas às vezes se sentem desautorizadas.
María del Socorro Martínez – Exatamente, e pela própria Igreja, que começa a usar outras categorias, definindo o que é o central, uma Igreja para dentro. Há um freio muito forte, uma mudança de linguagem. Então é uma interrogação. João XXIII disse: "Abramos as janelas e as portas da Igreja", mas agora elas voltaram a se fechar. Por isso, hoje, embora o Concílio seja um ponto de referência importante, é preciso vê-lo no momento presente. Há necessidades de novas coisas.
IHU On-Line – A teologia da libertação, e o próprio conceito de libertação, foi pensada em um contexto específico da América Latina. Hoje, vivemos em outro contexto, embora a libertação continue sendo necessária. Qual o significado da "libertação" hoje e como a teologia pode pensar essa categoria no contexto atual do continente americano?
Pablo Bonavía – É uma pergunta profunda. Vou respondê-la, talvez, indiretamente. No Fórum Social Mundial, um dos seus grandes porta-vozes que é Boaventura de Sousa Santos disse que a questão ecológica incidiu de tal maneira no conceito de libertação que, hoje em dia, ninguém pode exigir exclusivamente que algum outro grupo se encarregue dessa questão. Essa questão envolve a todos e a todas nós. Portanto, a questão ecológica está obrigando toda a humanidade a desaprender uma maneira de se relacionar entre si e com a natureza que tem, sobre o domínio sobre a natureza e sobre o outro, sua categoria privilegiada.
Então, o que eu vejo que tem ocorrido nos últimos anos é um aprofundamento do conceito de libertação. Mas a demanda de libertação torna-se, cada vez mais, clara, no sentido de que recém estamos nos dando conta de até que ponto a modernidade – e, dentro da modernidade, o conceito capitalista de desenvolvimento – tem levado a relações de dominação entre grupos sociais, de países entre si e da humanidade sobre a natureza. A libertação tem que incluir todos esses aspectos: e não no sentido de que alguns libertam outros, mas sim que todos nos encarregamos de um processo em que nos libertamos reciprocamente.
María del Socorro Martínez – A partir da figura de Jesus, eu continuo resgatando a opção pelos pobres, mas não só na forma como a entendemos nos anos 1970. Eu continuo acreditando no pobre como sujeito de revelação privilegiada. E acredito que, às vezes, o mundo quer esquecer que existem pobres – é como uma tentação. Sim, todos estamos em uma complexidade. Mesmo na questão ecológica – e isto está comprovado pelas Nações Unidas –, a maior repercussão é nos setores pobres. No entanto, quem mais resgata a natureza são os povos originários. Arriscam a vida para defender as florestas. Em um mundo tão díspar, alguns são muito ricos, e continua havendo uma maioria pobre, dois terços da humanidade.
Quando questionam a teologia da libertação, eu respondo: "No seguimento de Jesus, a libertação implica também em olhar o mundo a partir daí". Como eu me comprometo com esse mundo e como o próprio pobre se compromete com a sua realidade? Eu tenho que olhar para aí, porque, do contrário, me afasto desse seguimento de Jesus, radical. A contribuição da teologia da libertação e da América Latina, em particular, continua sendo muito válida, e para o mundo inteiro. Então, não podemos nos eximir dessa libertação. Nessa tentativa de olhar a partir daí, há uma conversão, que não vem de nenhum outro lado. E qual o nosso papel? É uma pergunta muito profunda. Que libertação? Não é só a material, mas também – a vida digna.
Roberto Urbina – Na América Latina, a recepção e a aplicação do Concílio Vaticano II teve sua expressão na teologia da libertação como reflexão teológica. Essa é uma primeira relação e vinculação que é preciso fazer. E, ao fazer isso, a Igreja na América Latina reconhece esse sacramento de libertação nos pobres. E a partir daí é que nós olhamos a construção do Reino. No entanto, no conceito de libertação, há também uma libertação interior, individual e necessária, que é libertar a mim mesmo – essa é a conversão. E também é dessa libertação que estamos falando. Hoje em dia, esse conceito de "pobre" é muito mais complexo do que há 40 anos. Nessa complexidade, eu vejo alguns outros "rostos" (como diz Puebla e depois Aparecida, novamente): a pobreza digital, todas as pessoas que ficam fora desse mundo das redes sociais por falta de recursos, e não porque não querem.
Mas me chama a atenção a busca no campo da espiritualidade. Eu acho que se abriu, hoje em dia, na sociedade, uma busca de rostos de Deus que não são o único rosto de Deus que tínhamos há 50 anos. Hoje, há muitos rostos de Deus, e as buscas são muito variadas. Então, as perguntas que as pessoas se fazem hoje acerca de Deus e sobre si mesmas são também muito complexas e muito diversas. Aí está se produzindo um elemento que complexifica essa libertação e nos obriga a nos colocar nesse processo de busca. Assim como com o Concílio abriu os ouvidos para escutar o mundo, hoje nós também precisamos abrir os ouvidos e escutar as demandas, as perguntas, os desafios do mundo e olhar com muita atenção para perscrutar esses sinais dos tempos, como dizia o Concílio, e a partir daí construir o reino de Deus.
María del Socorro Martínez – Na teologia da libertação, o primeiro momento é analisar a realidade. A agenda, por assim dizer, tem que ser ditada pela realidade, não por nós. O que está acontecendo no mundo atualmente e como perscrutar esses sinais? Isso é muito difícil, mas continua sendo muito válido. Hoje em dia, as mudanças da Igreja partem da doutrina, do magistério. Isso muda totalmente, porque é a Igreja que tem as respostas antes de ver a realidade. Nesse sentido, a teologia da libertação continua sendo uma diferença muito grande e, para nós, muito necessária e válida.
IHU On-Line – A partir desse contexto, surge o Congresso Continental de Teologia. Como animação aos participantes, qual é o desafio e a proposta do Congresso à teologia e aos teólogos/as nessa data tão significativa? A que ele se propõe? E sobre o que os teólogos/as são convidados/as a refletir nesse tempo de preparação?
Roberto Urbina – Eu acho que a Igreja hoje em dia precisa fazer uma reflexão teológica. Mas eu também acho que grande parte da Igreja da América Latina não vai fazê-la em uma perspectiva do Concílio. Por isso, eu acho que é responsabilidade nossa fomentar, favorecer, empurrar, provocar uma reflexão teológica diante dos rostos sofredores de hoje a partir da perspectiva do Concílio.
María del Socorro Martínez – Muitas pessoas se perguntam a respeito do Congresso: Qual vai ser a novidade? Ou à respeito da teologia da libertação: Qual é o "novo" que ela ofereceu? Ainda queremos receitas, respostas. E o que eu gostaria é que o Congresso abrisse perspectivas, e assim nos tornássemos, cada um e cada uma, responsáveis por esse presente que temos hoje – complexo, difícil, sobre o qual não sabemos todas as respostas. Há muitas mudanças, não podemos ter todas as respostas. Mas é precisamente por isso que eu gostaria de que o Congresso fizesse com que as pessoas saíssem questionadas, com novas perguntas.
Não vamos ter as respostas, mas vamos ter novas perguntas para alimentar a esperança para seguir lutando por esse reino de Deus que queremos. Há uma responsabilidade pessoal e coletiva para construir o reino de Deus. Que saiamos inquietos, militantes. Que o Congresso nos abra perspectivas. Por isso, o primeiro dia do Congresso me parece muito importante – a realidade. De que realidade vamos falar? Assim como o Vaticano II e Medellín abriram caminhos, sem repeti-los, do mesmo modo eu imagino o Congresso: que tenhamos a capacidade de abrir caminhos e de assumir responsabilidades no momento que nos coube viver.
Pablo Bonavía – Na leitura evangélica do domingo passado [21 de agosto], Jesus não aparece tanto como uma pessoa que dá respostas, mas sim como uma pessoa que convida as pessoas a se fazer perguntas e a descobrir, a partir do mais profundo de si mesmas, quais são essas respostas – quando lhes pergunta: "E vocês, quem dizem que eu sou?". E Pedro responde, mas a partir do seu interior mais profundo, porque escutou o Pai que estava lhe sugerindo essa resposta, e lhe diz: "Tu és o Messias, tu és o Filho de Deus".
Eu acredito que tanto a teologia quanto a catequese, incluindo aqui as homilias e o acompanhamento espiritual, deveriam nos ajudar a fazer as perguntas, porque as respostas, tanto no Concílio, quanto em Medellín, não vieram a partir de uma doutrina já elaborada ou a partir de uma pastoral rigorosamente planejada, mas sim de perguntas que ajudaram as pessoas a ir encontrando aquilo que é de Deus na prática cotidiana. Aí eu acredito que há um desafio para esse Congresso, que não quer dizer a última palavra sobre nenhum tema, mas considera, sim, que é obrigação da Igreja discernir quais são as verdadeiras perguntas e quais são os contextos para ir encontrando as respostas.
Nesse sentido, eu continuo pensando que as pequenas comunidades, por exemplo as comunidades eclesiais de base, continuam sendo o espaço onde as pessoas se dão conta de que podem dar o que não tinham – como na multiplicação dos pães. Quando elas se encontram com contextos de discernimento, em que os demais lhes ajudam a ver o que há de Deus neles, começam a viver e a dizer coisas que nem elas sabiam que traziam dentro. E acho que esse é justamente um dos desafios que vem dos mais pobres. O mais pobre dedica todas as suas energias para sobreviver, sobretudo para se defender, e não pode se dedicar a desenvolver o que, a partir de dentro, Deus lhe está dando. Justamente, quando esse pobre encontra espaços onde isso é possível, aí vem uma mudança muito profunda, que o mundo de hoje está exigindo. Porque tanto a exclusão social, quando a depredação ecológica estão obrigando a uma mudança cultural que, por sua vez, está convidando a uma mudança muito profunda de cada um e cada uma.
María del Socorro Martínez – Vivemos muitos anos querendo [o Congresso], mas o contexto não permitia. Eu sinto que agora o contexto está se revelando: a crise dos EUA, onde muitas coisas mudaram, essa mudança de uma grande potência, as manifestações juvenis, que aconteceram também em 1968, em nível mundial, e em 1972, no México, ou a decepção com a Igreja – eu lia, antes de chegar ao Brasil, que é a primeira vez que a porcentagem diminui para menos de 70%, com o crescimento de outras expressões religiosas. Então, há muitos sinais, muitas situações meio inéditas, que vão se conjugando em uma mudança, em que nos perguntamos: O que está acontecendo? Aí é que me parece que Deus está falando.
Pablo Bonavía – De nossa parte, também é preciso fazer um agradecimento muito especial ao Instituto Humanitas Unisinos, no sentido de que todo esse escutar-nos mutuamente, esse comunicar-nos, esse estimular-nos reciprocamente, hoje em dia, requerem também técnicas, espaços disponíveis, know-how. Um mundo que se tecnificou talvez perdeu rumos com relação a que homem e a que sociedade queremos que essa tecnificação esteja a serviço, tanto no mundo das comunicações como em todo o resto. Nesse sentido, fala muito bem do Instituto o fato de nos estarem brindando ferramentas para que esse Congresso, que vai assumir o desafio de poder congregar 700 pessoas, de fato, possa ser realizado de forma eficiente e verdadeira.
(Por Moisés Sbardelotto)
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Congresso Continental de Teologia: novas perguntas para alimentar a esperança. Entrevista especial com María del Socorro Martínez, Pablo Bonavía e Roberto Urbina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU