Existe algo como uma disposição global? Ao que tudo indica, sim. Não consigo lembrar alguma época em que tantos países de todas as partes do mundo foram envolvidos em algum tipo de protesto de rua ou revolta popular. 2011 está se transformando no ano da indignação global.
A reportagem é de
Gideon Rachman, publicada pelo
Financial Times e reproduzida pelo jornal
Valor, 30-08-2011.
A primavera árabe, no começo do ano, deu o tom - derrubando os regimes da
Tunísia e do
Egito, seguida da queda de
Muamar Gadafi na Líbia e da insurreição na
Síria.
Mas formas mais brandas de revolta popular estão irrompendo através do planeta. A Europa experimentou distúrbios políticos em
Atenas, protestos passivos em
Madri e saques em
Londres. Na
Índia, milhares de manifestantes se mobilizaram em todo o país para apoiar
Anna Hazare, um ativista social que entrou em greve de fome e está apavorando o governo com a exigência de medidas anticorrupção. A
China vem registrando demonstrações públicas e protestos on-line desencadeados por um acidente em uma fábrica e outro com um trem-bala. No
Chile, os últimos dois meses foram de passeatas enormes promovidas por estudantes e sindicatos trabalhistas, que exigem maiores gastos sociais. Em
Israel, as principais avenidas de Tel Aviv têm sido ocupadas por pessoas comuns que protestam contra o custo de vida.
É claro que também há grandes diferenças entre os distúrbios que estão ocorrendo ao redor do mundo. Por que exaltar as ações de um jovem encapuçado britânico apedrejando as vitrines de uma loja de departamentos, comparando-o com um líbio que arrisca sua vida pela liberdade? A ligação entre uma dona de casa chinesa que protesta contra uma fábrica de produtos químicos em
Dalian e um assalariado israelense que exige moradia a preços que possa pagar também pode parecer tênue.
A conclusão diante de eventos tão distintos tem que ser cautelosa. Mas há traços comuns. Muitas das revoltas de 2011 contrapõem uma elite internacionalmente conectada a cidadãos comuns que se sentem excluídos dos benefícios do crescimento econômico, e que estão furiosos com a corrupção.
O ódio à riqueza e a corrupção da elite governante alimentaram as revoltas na
Tunísia e no
Egito. Alegações de corrupção e delitos cometidos pelo governo estão no centro dos protestos populares na
Índia e na
China. A raiva com a falta de oportunidades para os jovens e a corrosão dos padrões de vida da classe média são os temas comuns em
Israel,
Espanha,
Grécia e
Chile.
Muitos dos países atingidos pelos distúrbios aceitaram explicitamente o aumento da desigualdade como o preço a ser pago pelo crescimento econômico acelerado. Na China,
Deng Xiaoping preparou o caminho para que o Partido Comunista abraçasse o capitalismo décadas atrás, quando anunciou: "Enriquecer é glorioso".
No Reino Unido,
Peter Mandelson, arquiteto do New Labour de
Tony Blair, pronunciou-se "intensamente à vontade com as pessoas ficando obscenamente ricas". O
Chile foi o pioneiro das reformas de livre-mercado na América Latina. Na
Índia, um boom econômico vem levando à construção de mansões bilionários ao lado de favelas abjetas.
Mesmo assim, muitos desses países também possuem tradições políticas fortemente igualitárias vivas na memória popular.
Hazare vem conscientemente imitando os métodos e linguagem de
Mahatma Gandhi. Muitos dos manifestantes em
Israel condenam as políticas de livre-mercado do governo de
Binyamin Netanyahu e mencionam com nostalgia as tradições socialistas do movimento kibutz. Os "indignados" de
Madri,
Atenas e
Paris exigem apoio a um "modelo social europeu", que prometa ensino e cuidados com a saúde gratuitos e renda decente para todos.
É tentador ver esses distúrbios ligados por uma globalização que estimulou a renda dos ricos, ao mesmo tempo em que criou um mercado de trabalho que pressiona os salários dos menos capacitados, ao menos no Ocidente. A globalização também fomentou as redes de comunicação que permitem que ideias e imagens da revolta corram o mundo. Entretanto, a criação de uma disposição global é uma coisa misteriosa.
Em 1968, antes que a palavra "globalização" ou a internet fossem inventadas, houve rebeliões de estudantes em várias partes do mundo. O ano de 1989 viu não só a queda do
Muro de Berlim, como também os protestos na
Praça da Paz Celestial na China. Talvez 2011 venha se colocar ao lado de 1968 e 1989 como um ano de revolta global.
E mesmo assim há uma impressionante exceção - os
Estados Unidos exibem muitos dos fatores que colocaram as pessoas nas ruas em outros países: aumento da desigualdade, uma ameaça ao padrão de vida da classe média, raiva contra a elite política e empresarial. Mesmo assim, até agora toda essa ira - seja à esquerda ou à direita, no
Tea Party - tem sido expressa na imprensa ou nas urnas, mas não com desordem nas ruas.
Alguns afirmam que os americanos comuns estão sofrendo de uma forma de falsa consciência em que a raiva com os problemas econômicos é mal direcionada para uma raiva envolvendo armas ou religião. Mas isso também é ser muito condescendente. A cultura política americana sempre foi mais individualista e menos igualitária que a de outras nações. E, embora haja grandes recompensas para os bem-sucedidos nos Estados Unidos, existe uma crença de que os malfeitores serão punidos. Alguns podem retroceder ao espetáculo de executivos sendo forçados a enfrentar o público algemados, ou presidentes sendo "impichados" por seus pecados sexuais. Mas isso envia a mensagem de que ninguém está acima da lei e que a corrução não será tolerada.
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2011 é o ano da indignação global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU