13 Setembro 2018
O arcebispo de Estrasburgo, dom Luc Ravel, publicou na sexta-feira uma longa carta pastoral para reler e enfrentar a crise dos abusos sexuais na Igreja.
A entrevista é de Céline Hoyeau, publicada por La Croix, 10-09-2018. A tradução é de André Langer.
Sua carta intitula-se: “Mieux vaut tard”. Em 2016, você foi interpelado, junto com os bispos da França, pela associação La Parole Libérée. O que aconteceu para que não pegasse na caneta desde então?
Isso foi por uma razão muito simples, e eu falo por mim. Esse tipo de texto só pode sair de um coração sensibilizado, impelido por uma espécie de urgência. No meu posto anterior como bispo, na diocese castrense, eu não estava envolvido, e ainda muito tardiamente, em apenas um caso que foi julgado pelos direitos canônico e civil, sem a possibilidade de se reunir com a vítima. Eu tinha apenas uma visão, ouso dizer, intelectual e teórica das coisas. Mas nos últimos cinco anos, à medida que e graças às 15-20 vítimas que ouvi nos últimos 14 meses na minha diocese, a minha ingenuidade se desfez completamente.
Eu sabia que havia pervertidos na Igreja como em outros lugares, mas compreendi que se trata de uma gangrena que ataca alguns de seus membros e que todo o organismo sua de febre. Eu concordo com aqueles que dizem que minha carta chega muito tarde. Eu o reconheço pelo próprio título. Mas eu não aceito que digamos que seja tarde demais, porque penso que ainda podemos agir.
Você escreve que essa gangrena remonta à Segunda Guerra Mundial. Não é mesmo anterior?
Eu não sei. Por enquanto, temos informações que remontam ao início dos anos 1940, mas isso não significa que não tenha havido casos antes disso. O único caso histórico que encontrei à montante está nos ditos dos padres do deserto, nos séculos IV e V: as condenações nunca são tão fortes como quando se trata de provocar um garotinho em mosteiros. Mas é preciso trabalhar também a questão da área geográfica, porque, no momento, os casos listados dizem respeito apenas ao Ocidente cristão; mas dificilmente acredito que esse tipo de perversão não exista na África e na Ásia. Pelo que ouvi de alguns núncios, as ondas significativas que varreram a Igreja talvez não sejam grande coisa quando comparadas com o tsunami que vai acontecer nos próximos 5 ou 10 anos, quando as capas de chumbo culturais de alguns países forem levantados.
Não deveriam os bispos constituir uma comissão para trabalhar nesta dimensão histórica, como no caso Touvier na França?
Pessoalmente acharia que um trabalho histórico seria extremamente útil para nós, talvez como São João Paulo II procedeu para o caso Galileu, um perdão baseado na história... Seria uma espécie de anamnese para curar uma memória coletiva, por um lado, e por outro, poderia nos ajudar a ver como, em outros séculos, a Igreja reagiu a essa questão dos abusos sexuais por parte dos clérigos.
É ainda mais importante que, a este respeito, um argumento parece-me totalmente inoperante: o de nos compararmos com outras instituições, a educação nacional ou o círculo familiar, onde abusos também são cometidos. O Concílio Vaticano II recordou-nos uma coisa muito claramente, e é simplesmente o Evangelho: a Igreja deve ser profética e curar esta ferida em seu seio, para o mundo.
O Papa apela para uma revolução cultural. Na carta, você fala de terapia coletiva. Além dos códigos de boa conduta, o que deve ser mudado para sair dessa crise? Você não teve a sensação, durante um longo tempo, de que algumas funções administrativas clericais precisariam ser reformadas?
Sim, eu concordo com a carta do Santo Padre. Devemos distinguir os níveis, obviamente: na maioria das vezes, o clericalismo não se expressa nesses excessos, nesses crimes, porém, há a mesma lógica de apropriação de sua paróquia, de seus jovens... O padre está precisamente a serviço da alma, do espírito da pessoa, ele toca o que há de mais íntimo. Portanto, esses crimes não são apenas um abuso de autoridade, mas também abusos espirituais.
Não basta trabalhar em um código de boa conduta. Requer-se um trabalho de conversão coletiva, incluindo o Povo de Deus. Nem todos nós somos culpados. Mas todos nós somos solidários, responsáveis: alguns por culpa ou cumplicidade, outros por solidariedade. E isso não é evidente hoje. Só existe clericalismo porque há pessoas que aceitam isso. As pessoas que cometeram esses atos são muitas vezes pessoas que dominam a arte de manipular as pessoas, e é por isso que muitas vezes têm seus ardorosos seguidores.
O grande trabalho que vamos tentar fazer na diocese de Estrasburgo é sensibilizar todo mundo, sem ser moralista. Minha carta é uma meditação para tocar o coração, ela deve levar a ações concretas. Eu gostaria de fazer refletir os diáconos permanentes com suas esposas, meus sacerdotes, depois meu conselho diocesano, em círculos concêntricos... No longo prazo, penso que seria necessário um ato de arrependimento coletivo que os bispos e as comunidades poderiam expressar.
Alguns leigos não querem ferir a Igreja, e os bispos causar um escândalo. Esta noção de escândalo é errada?
Sim, e seria bom que os teólogos trabalhassem nessa noção, que eu apenas esboço na minha carta. Isso foi explicitado entre os bispos estadunidenses: queríamos evitar manchar a imagem da Igreja, protegendo a Igreja. A Bíblia fala muito de escândalo, é verdade: “ai daquele por quem o escândalo vem”, mas nunca é para proteger a Igreja; é sempre para proteger os pequeninos... Os bispos que querem proteger a imagem da Igreja cometeram um erro teológico magistral.
Não deveríamos também tornar públicas as sentenças canônicas que hoje permanecem em segredo?
No caso das sentenças definitivas, penso que a Igreja terá que avançar na transparência, para que as pessoas condenadas pela justiça da Igreja saibam que sua sentença será tornada pública e que sua publicação sempre poderá ser objetada por um leigo. Porque nós não temos meios de coerção na Igreja e quem se recusa a obedecer a uma decisão canônica, tomada pelo bispo ou pelo papa, é livre como o ar...
Na França, a associação La Parole Libérée repreende os bispos por não fazerem o suficiente. O que você acha dessas interpelações?
A virtude da interpelação é, em primeiro lugar, nos incomodar. Incomodar, porque somos indiferentes e queremos ouvir outra coisa, incomodar porque nos sentimos mais ou menos responsáveis, mas não sabemos como agir... Mas hoje todos os meus colegas estão sensibilizados para esta questão. O fato de minimizar as coisas, de situá-las em um contexto histórico, de considerá-las como anedotas face ao desafio da secularização, todas essas atitudes estão ultrapassadas ou devem ser rapidamente deixadas para trás. Nossas reações, no melhor dos casos, não são culpáveis, mas muito tardias. Não tenho certeza de que todos os meus antecessores, de 10-20 anos atrás, administravam os negócios como se quer hoje.
Não deveriam os bispos prestar contas por sua ação no caso da pedofilia?
Sim, e isso poderia ser feito em outras áreas. O bispo está sozinho, eu mesmo não preciso prestar contas a ninguém. Estamos totalmente sozinhos. Para baixo, estamos tentando prestar contas pelo que fazemos, mas é verdade que temos grandes momentos de solidão. Ninguém vem me supervisionar, o que é deplorável.
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“Calar-se para proteger a Igreja é um erro teológico”. Entrevista com Luc Ravel, arcebispo de Estrasburgo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU