A recente declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé examinada por um olhar feminino eclesial e franco.
Publicamos aqui a análise da associação Donne per la Chiesa, 30-04-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nós, Donne per la Chiesa [Mulheres pela Igreja], diversas e unidas por uma Igreja igualitária, lemos e refletimos pessoalmente e em grupos sobre a declaração Dignitas infinita e desejamos compartilhar o nosso sentir e o nosso pensar. Uma partilha que ocorre depois de um tempo apropriado de meditação, a fim de não re-agir, mas sim de pro-agir, conscientes das visões e dos sonhos que nos alimentam como mulheres católicas.
Acima de tudo, gostaríamos de iluminar um desejo profundo que habita em todas nós, ou seja, o de uma Igreja que saiba gerar palavras e práticas proféticas, lendo o presente a partir do sonho de um futuro que sentimos emergir, dentro e fora de nós. O desejo de uma comunidade eclesial não mais preocupada com doutrinas que se apressam em categorizar as pessoas, mas voltada a uma visão profética que saiba dar alma à vontade de fazer parte dela.
Por isso, parece evidente que não podemos deixar de criticar o método de redação desse documento que é (im)posto como uma doutrina indiscutível para abordar as várias e complicadas situações da vida humana, com uma abordagem do “se deve/não se deve” tão distante da orientação para a misericórdia e do “caminhar com”.
No fundo, sentimos que se desconhece a realidade da Igreja – aquela grande, aquela composta por leigas e leigos, por religiosas e religiosos, e pelo clero – como povo a caminho, no qual as diversas ideias e sensibilidades são reconhecidas no único grande farol-guia que é a mensagem do Evangelho.
Esse documento, portanto, responsabiliza-nos ainda mais, fortalecidas pela nossa dignidade batismal, a sermos aquela Igreja profética que não encontramos dentro de suas páginas.
Entrando apenas um pouco nos detalhes, é necessário dizer que a parte inicial do documento é apreciável, com a premissa do amor indistinto do Pai a com todas as pessoas e a ênfase no fato de que a dignidade deve ser reconhecida em todos os âmbitos. É bom que a Igreja promova a dignidade humana, porque todas e todos sabemos o quanto ela foi e é, em todos os tempos e lugares, obstaculizada, ameaçada, espezinhada (até pela própria Igreja). É igualmente louvável o esforço de utilizar uma terminologia inclusiva ao se referir à “pessoa humana” em vez do “homem”.
No entanto, nota-se, depois, uma mudança de ritmo: despontam categorizações e distinções que se contrapõem ao conceito de dignidade como dimensão universal imprescindível.
Emerge o forte valor atribuído a uma hipotética lei natural desligada da complexidade da pessoa humana, quase como afirmando que a vida é um espaço definido e predeterminado a ser habitado obrigatoriamente tal como ela é, e que a dignidade não é um espaço de liberdade, mas sim de obediência a uma ordem natural herdada, à qual somos exclusivamente chamadas e chamados a dizer sim (nn. 25 e 66).
Mas estamos convencidas de que a pessoa humana é feita de corpo e de sentimentos, de paixão e de razão que formam um todo único. Consideramos que o conceito de dualidade entre corpo físico e alma espiritual não pode mais ser aceitável.
As distinções teóricas que são propostas em algumas passagens nos pareceram muito difíceis, senão impossíveis, de realizar na vida real: por exemplo, no caso da homossexualidade, como distinguimos entre propensão e exigência constitutiva? Quais são os critérios que determinam uma ou a outra?
Parece-nos que a afirmação arbitrária e flagrantemente não verdadeira contida no n. 3 – “Desde o início da sua missão, impelida pelo Evangelho, a Igreja se esforçou para afirmar a liberdade e para promover os direitos de todos os seres humanos” – prejudica muito a credibilidade dos autores.
A Igreja não só às vezes contradisse em fatos essa afirmação ao longo dos séculos, mas, pelo menos no mundo ocidental, custou muito a acompanhar o progresso da sociedade civil em termos de reconhecimento da dignidade e dos direitos das pessoas (sem falar da relação com a criação, considerada a serviço da pessoa humana, e não um todo único com ela).
Constatamos que, sobre os temas que interrogam fortemente o fiel e não só, como a eutanásia, as pessoas LGBT e o aborto, não se faz nenhuma referência às reflexões teológicas que também foram feitas e estão em curso, e não se gasta nenhuma palavra de compreensão, empatia e acolhida.
No breve n. 43, dedicado aos abusos sexuais (não encontramos nenhuma menção aos abusos espirituais), choca-nos a total ausência de palavras de contrição pelo que ocorreu sistematicamente no seio da Igreja e pela conivência com a sociedade patriarcal que perpetrou os abusos durante séculos com seu beneplácito (por exemplo, o dever conjugal).
A condenação sumária da chamada “teoria de gênero” mostra o não conhecimento do tema e parece ser um mero pretexto.
Como mulheres, ficamos, como sempre, chocadas com a condenação das violências contra nós (exclusivamente) como mães e avós silenciosas que levam a vida adiante. Também temos outros papéis na sociedade e, sobretudo, temos dignidade como pessoas humanas, mesmo quando não somos mães.
Por fim, uma reflexão a partir do ponto 11, onde lemos que “ambos (homem e mulher), na mútua relação de igualdade e amor recíproco, cumprem a função de representar Deus no mundo e são chamados a cuidar do mundo e cultivá-lo”. Contudo, embora todos os cristãos possam “encarnar” Cristo, recebendo seu corpo e seu sangue com a eucaristia, e, portanto, possam viver e agir como Cristo, não é permitido às mulheres “representá-lo” como o sacerdote representa Cristo quando age “in persona Christi”.
Se, por um lado, sentimo-nos profundamente decepcionadas e entristecidas pelas argumentações delineadas nesse documento (emitido até pelo Dicastério para a Doutrina da Fé), por outro lado, reconhecemos que a nossa palavra de crítica construtiva pode e deve habitar responsavelmente a Igreja, que sentimos cada vez mais “nossa”, isto é, de todas, de todos, de tod*s!