07 Março 2024
O cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique e Freising, presidente do júri que concedeu o Prêmio Centesimus Annus 2024, elogia o trabalho da professora Carolina Montero Orphanopoulos, destacando seu foco na vulnerabilidade em meio à crise dos abusos no Chile e a pandemia global.
A premiada teóloga compartilha com El Debate a sua perspectiva acerca da vulnerabilidade como antídoto à mentalidade clerical e aos abusos, e aborda o papel crucial da mulher na Igreja. “Após a crise dos abusos, a Igreja está em uma encruzilhada: ser um grupo seleto que tende ao sectarismo ou uma comunidade aberta que abraça a vulnerabilidade”.
Neste ano, a Fundação Centesimus Annus – Pro Pontífice concedeu o prêmio ao estudo sobre a vulnerabilidade, realizado pela professora Montero, procedente do Chile. Casada e mãe de uma filha de dez anos, atualmente, trabalha em tempo integral como teóloga e pesquisadora na Universidade Católica Silva Henríquez, em Santiago do Chile. Recebeu o prêmio internacional Economia e Sociedade, da fundação pontifícia, pelo seu livro intitulado Vulnerabilidad: hacia una ética más humana.
Carolina Montero expressou surpresa ao receber o prêmio, considerando-o um reconhecimento significativo não só para ela, mas também para o trabalho das teólogas latino-americanas.
A entrevista é de Ary Waldir Ramos Díaz, publicada por El Debate, 03-03-2024. A tradução é do Cepat.
Professora Carolina Montero, a vulnerabilidade é um antídoto à mentalidade hierárquica e clerical que pode estar na raiz de males como os abusos sexuais, o abuso de consciência e de poder na Igreja?
É uma das categorias com as quais podemos combater os abusos, não só a nível eclesial, mas também a nível da sociedade em geral. Atualmente, predomina o que chamamos de mito da autonomia, onde cada pessoa se considera autossuficiente para fazer o que quiser. Na realidade, do momento em que nascemos até morrermos, somos todos interdependentes.
Isso deveria ser mais evidente na Igreja, já que o Evangelho caminha por aí, mas a Igreja também está imersa nesta cultura da autonomia, poder e êxito. Isto gera clericalismo, fomenta o infantilismo no laicato e cria situações que intensificam a vulnerabilidade que todos nós compartilhamos. Sem dúvida, incide nas crises dos abusos que, há mais de 40 anos, vivemos na Igreja.
Podemos considerar a vulnerabilidade dos sobreviventes de abusos como um elemento catalisador para promover uma mudança na mentalidade clerical em alguns setores dentro da Igreja, no Chile e no mundo?
Nas conferências internacionais, quando me perguntam como podemos recuperar o prestígio que tínhamos como Igreja, costumo expressar que essa Igreja já chegou ao seu fim. É o fim da Igreja como a conhecíamos. Esta é uma oportunidade para recriá-la ou para cairmos no sectarismo. Estamos em uma encruzilhada e devemos escolher o nosso caminho. Vamos nos tornar um pequeno grupo de eleitos ou nos transformaremos em uma Igreja do Evangelho para todos, mais simples, mais vulnerável e mais humana?
O Papa Francisco denuncia a globalização da indiferença e a cultura do descarte. Como um estudo ético-antropológico da vulnerabilidade pode nos ajudar a construir um mundo menos violento e sem guerras, com relações sociais mais saudáveis, horizontais e felizes?
A globalização como fenômeno social oferece diversas interpretações e em sua origem poderia ter se transformado em algo solidário, em uma aldeia global. No entanto, o que alcançamos foi uma nova forma de discriminação, excluindo pessoas, gerando novos analfabetismos e novas formas de pobreza. Paradoxalmente, restabeleceu-se a cultura do mais forte a partir deste novo paradigma, tornando-se hegemônica.
Em uma cultura onde todas as culturas deveriam coexistir, agora, no Ocidente, predomina principalmente a cultura neoliberal como hegemônica. A ascensão da vulnerabilidade de cada cultura como autobiográfica, singular e concreta oferece uma oportunidade para a reestruturação. A globalização é uma realidade que veio para ficar. A questão está em como vamos vivê-la. Se optarmos por vivê-la a partir da vulnerabilidade, existem mais possibilidades de experimentá-la de maneira solidária, compassiva e humana.
Em relação à figura de Jesus, como você destaca seu exemplo ao assumir a vulnerabilidade humana, especialmente em sua encarnação, e como isto se reflete na antropologia relacional?
Jesus é a personificação suprema da vulnerabilidade. Deus, que era completamente independente e autossuficiente, escolhe se relacionar e se encarnar em seu nascimento. Este ato se intensifica quando se observa como escolhe se encarnar: na pobreza e na periferia. É uma decisão divina de fazer parte da humanidade. Além disso, na forma como Jesus se relaciona com as pessoas, destaca-se a sua profunda humanidade e vulnerabilidade, deixando-se afetar pela dor alheia, comovendo-se diante da indigência, da necessidade e da doença.
Jesus é a encarnação suprema da vulnerabilidade. Finalmente, na Cruz, apresenta-se como a figura da vulnerabilidade do amor levado ao extremo, do despojamento pessoal, da capacidade de entregar a vida sem retê-la por autossuficiência, mas por amor. E, por sua vez, receber novamente a vida por amor.
Você argumenta que a cultura clerical produz infantilismo no laicato. Como isto se relaciona com a vulnerabilidade?
Em geral, a vulnerabilidade é tida como uma fragilidade ou um aspecto negativo. Quando falo em vulnerabilidade, refiro-me à abertura constitutiva do ser humano em ser permeável, ser afetável pela vida, pelo mundo, pelo transcendente, pelos outros. Então, o infantilismo não é resultado da vulnerabilidade; o infantilismo é o resultado do clericalismo. É uma via de mão dupla: o clericalismo se alimenta do infantilismo e o infantilismo promove o clericalismo.
A vulnerabilidade não entra aí. Seria necessário despojar-se da pretensão de poder de muitos. Aqui, falo do masculino porque a cultura clerical é majoritariamente masculina. Precisamos viver a partir de uma horizontalidade, de uma sinodalidade que permita que todos nós nos situemos como vulneráveis: leigos, clérigos, hierarquia. Todos somos vulneráveis.
Se falamos de uma Igreja sinodal e de uma Igreja que está buscando redescobrir o papel da mulher, você considera que a mulher também propõe naturalmente uma cultura de acolhida da vulnerabilidade, em contraste com uma visão masculina predominante, na qual vence o mais forte ou o melhor?
Sim, mas isso também é uma construção cultural. Tornamos a acolhida, a generatividade e o cuidado como próprios da mulher. Como reestruturar a nossa sociedade? Penso que esses valores que tradicionalmente foram atribuídos à mulher devem pertencer a todos, homens e mulheres. A vulnerabilidade que hoje se tenta explicar, como novas masculinidades, é uma possibilidade certa, na qual o homem pode expressar suas emoções, suas fragilidades etc.
Desmasculinizar a Igreja?
Isso tem a ver com os espaços reais, não apenas simbólicos, que são atribuídos às mulheres na Igreja, mas também com os espaços onde a voz da mulher possui uma incidência real. Nas decisões, nas formas de governar, nas estruturas. À noite, em Roma, é muito impactante observar como, à beira da Basílica de São Pedro, dormem tantas pessoas em situação de rua. E isso rasga o coração.
Aí, o que se atribui à mulher como sensibilidade para a acolhida, na verdade, é sensibilidade humana. Que permitamos que os homens também sintam e sejam afetados por essa realidade. Então, como é deixar de pretender ter uma masculinidade intensa, forte, que também escraviza os homens e que pode nos abrir a características que são da humanidade e que são de Jesus [?]. Jesus não estaria com o poder, estaria ao lado das pessoas em situação de rua.
Você considera que a relação de Jesus com as mulheres também pode ser um modelo para a Igreja?
Sim, mas Jesus também foi um homem do seu tempo. Ele avançou muito, mas penso que é preciso avançar mais. Depois de 2.000 anos, hoje, a exigência é muito mais forte para nós do que foi para Jesus.
Em sua avaliação, a Igreja está em uma encruzilhada: ou se abre, como pede o Papa Francisco, ou acaba sendo uma Igreja de eleitos e de seita. Em que horizonte a vulnerabilidade se situa para justamente abrir a Igreja, sem acabar sendo uma seita?
Se nos conectarmos com a vulnerabilidade da Igreja, que é justamente a crise dos abusos, que a tornou vulnerável à força; se usarmos isto para torná-la permeável, para deixar-se afetar, para fazê-la generativa em sua resposta, optaremos por um caminho de abertura e de recriação. Se escolhermos nos defender, se escolhermos acobertar, se escolhermos a proteção institucional, optaremos pelo fechamento e por sermos mônadas solipsistas.
Alguns teólogos dizem que depois da crise da Reforma Protestante, há cinco séculos, a crise dos abusos representa para a Igreja uma das crises mais fortes a ser enfrentada.
Muitos teólogos dizem que desde a crise, desde o cisma protestante, esta é a maior crise da Igreja.
Então, para você, o estudo da ética da vulnerabilidade é uma chave para buscar soluções para esta crise dos abusos?
É uma reformulação do ideal. No fundo, o ideal não é mais o ideal kantiano do dever, mas, sim, o ideal da possibilidade certa da humanidade. Deve ser a humanidade concreta de cada pessoa. Não o ideal dos valores abstratos.
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“Estamos no fim da Igreja como a conhecíamos”. Entrevista com Carolina Montero Orphanopoulos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU