09 Setembro 2020
O relatório feito pela Universidade Católica analisa as 194 denúncias feitas durante 50 anos: “Bispos e superiores de ordens religiosas não acionaram nenhum inquérito”.
A reportagem é de Roberto Urbina Avendaño, publicada por Vida Nueva Digital, 08-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Existe consenso em que a resposta oferecida pela Igreja Católica (no Chile) às denúncias sobre os abusos sexuais do clero foi limitada, insuficiente e negligente”. Assim afirma o documento “Compreendendo a crise da Igreja no Chile”, uma pesquisa realizada durante dois anos pela Pontifícia Universidade Católica do Chile e que repassa os últimos cinquenta anos deste flagelo no país.
O relatório indica que 194 clérigos (incluindo irmãos e diáconos) foram denunciados por abuso sexual a menores de 18 anos, cometidos no Chile no período entre 1970-2019. Desses casos, 52 estão sendo ou foram investigados somente pela justiça canônica, 18 pela justiça civil e 116 por ambas, de maneira que apenas 8 casos apareceram unicamente na imprensa e carecem de investigação em algum tribunal. “91% dos clérigos dos quais se abriu alguma investigação receberam uma acusação na justiça canônica (119), ordinária (8) ou em ambas (49), o que acredita a verossimilitude de quase todas as denúncias prévias”, assegura o estudo.
“Do total de clérigos comprometidos, 167 deles são padres, o que representa 3,6% dos presbíteros do país que tem ou tiveram tal condição no período considerado neste estudo. Estes números são similares aos que se encontra nos relatórios feitos pela Conferência Episcopal dos Estados Unidos (4%) e pela Conferência Episcopal Alemã (4,4%) para períodos de tempo semelhantes”, detalha o documento.
O estudo chega a afirmar que “as autoridades religiosas demoraram muito para compreender (e em alguns casos ainda não o fizeram) que o contato sexual com menores é uma ofensa sacerdotal de natureza, alcance e profundidade muito diferentes, de forma alguma subsumível na tradicional falta de fornicação”. Em seguida, descreve três aspectos dessa resposta das autoridades: “manter os fatos no quadro do segredo eclesiástico, a fim de evitar escândalos no exercício do ministério sacerdotal; manter qualquer reclamação dentro da jurisdição do tribunal eclesiástico e evitar contato com os tribunais civis; e evitar sanções disciplinares contra o padre envolvido, de onde partem procedimentos como a transferência da paróquia ou o confinamento em cargo administrativo que evite o contato pecaminoso”.
“O esforço para manter essa forma de resposta no caso de abuso infantil teve consequências completamente desastrosas. A Igreja perseverou no segredo eclesiástico, embora desta vez se trate de acontecimentos que suscitam legítima e evidente preocupação pública; Ignorou sistematicamente que o abuso de menores é um crime passível de sanções penais e não apenas uma falta ou um pecado, e ordenou sanções quase sempre desproporcionais à gravidade do problema que incluía em muitos casos o processo tradicional de transferência de padres que seguiram abusando de crianças”, afirma o relatório.
Trata-se de um estudo interdisciplinar realizado por iniciativa do centro universitário, consequência da fracassada visita do papa Francisco ao Chile, em janeiro de 2018, e do posterior envio do arcebispo de Malta, Charles Scicluna, e do membro da Congregação para a Doutrina de a Fé, Jordi Bertomeu, com a tarefa de investigar as denúncias de abusos cometidos por padres no Chile.
Na apresentação do documento, o reitor da PUC Ignacio Sánchez, recorda o envio daquela missão investigativa e o conteúdo da subsequente “Carta ao Povo de Deus em peregrinação no Chile”, enviada pelo Papa na qual reconhece que “não agimos na hora certa reconhecendo a magnitude e a gravidade dos danos que estavam sendo causados em tantas vidas”.
Em seguida, Sánchez indica os objetivos do estudo: “poder informar sobre a extensão e a natureza desses abusos; esclarecer as dificuldades encontradas para oferecer uma resposta eficaz e oportuna; estimar os danos e o impacto que tudo isso causou nas vítimas; e também no coração de todos os católicos e da sociedade como um todo, de todo o povo de Deus que está a caminho”.
Josefina Martínez, psicóloga do Conselho Nacional de Prevenção de Abusos e Acompanhamento às Vítimas, da Conferência Episcopal do Chile, expressou na apresentação pública do documento: “Com razão, os sobreviventes podem se perguntar por que só agora as universidades estão se dedicando ao estudo do assunto (...) Preocupa-me que surja interesse depois da visita do papa Francisco ao Chile e não nos casos que foram relatados antes. O relatório levanta a importância de colocar o foco em uma série de fatores ligados à vida sacerdotal, me parece importante que estudos futuros se empenhem nisso e também no estudo de outros religiosos não clericais, porque sabemos que o abuso também está presente aí”.
Em 80 páginas, o documento faz sua análise em três partes: natureza e alcance do abuso sexual de menores na igreja chilena; resposta da igreja à crise; e impacto e danos causados pela crise. Na sua preparação, trabalharam 16 acadêmicos de seis faculdades, durante dois anos, o que garantiu o caráter interdisciplinar da pequisa.
A principal negligência identificada no estudo indica que “bispos e superiores de ordens religiosas não acionaram nenhuma investigação apesar de terem histórico de comportamento irregular por parte do clero, enquanto outros demoraram a iniciar investigações ou o fizeram somente após pressão da imprensa e outros meios”. Algumas autoridades argumentam que “esses eram boatos ou boatos que não exigiam ação”. Algumas advertências foram até feitas pelos próprios padres, mas foram igualmente ignoradas.
O relatório também coleta ampla evidência das inúmeras dificuldades enfrentadas pelas vítimas em fazer e credenciar sua denúncia às autoridades religiosas, como a recusa da autoridade em considerar os fatos denunciados críveis, o esforço deliberado das autoridades para impedir que isso ocorresse formalmente uma denúncia (seja civil ou canônica) e a tentativa das autoridades religiosas de chegar a um acordo prévio com a vítima que evitaria um processo judicial por meio de pagamento em dinheiro ou algum outro meio de acordo.
O Conselho Nacional de Prevenção de Abusos e de Acompanhamento das Vítimas é o único organismo que criou a Conferência Episcopal chilena. O relatório afirma que este importante organismo “não teve contato significativo com vítimas durante todo este período e, por consequência, não conseguiu articular nenhuma iniciativa de verdade, justiça e reparação de alcance de nacional”.
Também se descreve no informe as condutas de secretismo e clericalismo como fatores que favorecem estes delitos. Consequência disso, se descreve o ambiente de encobrimento que reinou na Igreja chilena até gerar o que o papa Francisco chamou de “cultura de abuso e encobrimento”, em sua Carta ao Povo de Deus que peregrina no Chile.
“A prática de ocultar e guardar silêncio sobre as faltas cometidas pelos padres e religiosos, a fim de proteger o renome da Igreja e o prestígio da missão sacerdotal, debilitou enormemente a capacidade de responder adequadamente no momento”, expressa o relatório.
Por fim, o documento destaca três compromissos necessários: “o cuidado e a atenção das vítimas. Se deve reconhecer, sem reserva alguma que todo comportamento sexual exercido sobre um menor de idade por parte de um padre (ou de qualquer adulto) é um abuso, ao mesmo tempo imoral e criminal”; “o compromisso com a verdade. Nenhuma denúncia de abuso deve ser ocultada, desestimada ou ignorada, mesmo que não reúna imediatamente todos os elementos de verossimilitude necessários”; e “a prevenção, de tal forma que assegura que a Igreja possa ser considerada um lugar confiável e seguro para qualquer criança de nosso país, e que se possa dizer como no Salmo, ‘mais vale um dia em teus átrios, do que milhares em minha casa. Prefiro o umbral da casa de Deus do que habitar na tenda dos injustos’ (Salmo 83)”.
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Chile. O relatório definitivo dos abusos: “a resposta da Igreja foi insuficiente e negligente” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU