24 Agosto 2018
A reflexão de hoje começa com uma declaração do cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga, arcebispo Tegucigalpa (Honduras): "Imprensa e TV dos EUA obsessivamente se concentraram sobre escândalos sexuais que aconteceram quarenta ou trinta anos atrás. Por quê? Se há padres ou bispos que se mancharam com graves culpas devem ser punidos com as apropriadas censuras canônicas e, se necessário, também devem enfrentam a justiça civil. Mas sem caça às bruxas, sem modalidades persecutórias por parte das autoridades".
A reportagem é de Luis Badilla, jornalista, publicada por Il sismografo, 23-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Voltando no tempo e procurando entre os arquivos de jornais mais lidos nestas três décadas, descobre-se que a palavra "encobrimento" (da pedofilia clerical) é de uso recente também porque os meios de comunicação, com algumas louváveis exceções, sobre esse assunto foram muito cautelosos e silenciosos desde o início dos anos 1990 e, em alguns casos, nem sequer tocaram no tema, como ainda é o caso em alguns países.
Durante vários anos, as tímidas crônicas que denunciavam abusos sexuais por parte do clero muitas vezes acrescentavam frases ambíguas e genéricas com o intuito de relativizar a gravidade dos fatos denunciados. As hemerotecas, a esse respeito, listam de tudo e muito mais entre as possíveis explicações da pedofilia por parte dos membros do clero: invenções da CIA, calúnias da Maçonaria, exageros de má-fé, casos isolados e circunscritos, fofoca do momento, golpe de mídia controlado pelos judeus, busca desesperada por ressarcimentos.
Alguns - na verdade, poucos - tentaram raciocinar de uma maneira diferente, mais séria, mais honesta e cristã, menos propagandística e fanática. É também graças a essas investigações e pesquisas mais sérias que se manifestaram algumas vozes mais autorizadas, muitas entre cardeais e bispos, para questionar, por exemplo, as consequências da secularização, a queda da qualidade da formação dos seminários, o relaxamento das normas sobre a seleção de candidatos ao sacerdócio, a relação entre sexualidade humana e doutrina católica, a conduta dos bispos e assim por diante.
Infelizmente, foram vozes que clamaram no deserto, logo silenciadas, marginalizadas e às vezes até intimidadas.
A estratégia para reduzir, minimizar e desacreditar as acusações de pedofilia dentro da Igreja, em uma tentativa de neutralizá-las aos olhos da opinião pública, muito em breve foi estendida também para as pessoas, especialmente aos denunciantes e às vítimas de abusos.
Contra esses novos "alvos" foram usados todos os possíveis artifícios retóricos para retratá-los como desequilibrados, sedentos por dinheiro e publicidade, caluniadores profissionais, casos psiquiátricos. Eu mesmo, em dezembro de 2003, quando perguntei no Vaticano a um bispo chileno atualmente ainda no cargo a respeito de quem eram os acusadores Cruz, Murillo e Hamilton no caso Karadima, recebi esta resposta lapidar: "comunistas pagos para desacreditar a Igreja" (sic).
Em suma, para muitas pessoas que sofreram com a tragédia da pedofilia clerical, o encobrimento também significou ser duas ou mais vezes vítima. Além da devastação de serem profanados na privacidade do próprio corpo, da própria consciência e da própria dignidade - fundamentos da doutrina cristã - essas pessoas também tiveram que carregar sobre si a humilhação e a devastação do inocente não-acreditado e, por vezes estigmatizado como culpado do que ele viveu. Em suma: um horror no horror.
Em toda essa dinâmica, revendo notas, crônicas, reportagens e entrevistas da época, chamam à atenção as palavras de dois cardeais ainda muito relevantes na Igreja: um é o arcebispo de Tegucigalpa, Cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga, membro Coordenador do Conselho dos nove cardeais consultores do Santo Padre (C9) e o decano do Colégio Cardinalício, cardeal Angelo Sodano, ex-secretário de Estado. Hoje vamos falar apenas sobre o primeiro.
No rescaldo do escândalo dos abusos sexual, e de seu encobrimento entre os vértices eclesiásticos na diocese de Boston – que emergiu de um estudo do "Boston Globe" - diferentes fontes da época (2001 e 2002) atribuíram a D. Rodríguez Maradiaga algumas considerações muito eloquentes para entender um dos pontos fundamentais da "cultura do encobrimento". Segundo o cardeal, os eventos relatados foram o resultado de uma linha editorial ditada por poderosos lobbies judeus para as principais redações jornalísticas: "Boston Globe", "The New York Times" e “CNN". Esses posicionamentos do cardeal tiveram uma repercussão limitada, mas anos mais tarde, entre março e abril de 2010, "The New York Times" lembrou que na Itália o jornal "La Repubblica" alegava que em círculos católicos influentes, as denúncias sobre casos de pedofilia em grande aumento eram consideradas filhas de "lobby judeu de Nova York”.
O jurista judeu Alan Dershowitz comentou no "Huffington Post" (6 de maio de 2010) (1) esses fatos, recordando as declarações do cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga (proferidas em maio de 2002, para a revista 30Giorni, a verdadeira fonte do que era atribuído ao cardeal hondurenho (2).
Aqui está o resumo das declarações de Oscar Rodríguez Maradiaga para "30Giorni", como foram proferidas em 7 de junho pela agência AdnKronos: "É um ataque sem precedentes sobre a Igreja Católica, a única Igreja que cria obstáculos para a política desumanizante” dos EUA tanto no Oriente Médio, como sobre o aborto, a eutanásia, a pena capital, o que está em ato nos Estados Unidos após a divulgação dos abusos sexuais perpetrados por dezenas de padres em crianças. O arcebispo hondurenho de Tegucigalpa, o jovem cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga, não mediu palavras para denunciar o que chamou de ''fúria contra a Igreja Católica nos Estados Unidos que lembra os tempos de Stalin e Hitler''. "Isso não é justiça: é perseguição", disse em uma entrevista ao semanal dirigido por Giulio Andreotti, "30 Giorni". “Nós todos sabemos -argumentava Maradiaga- que Ted Turner é abertamente anti-católico, e ele é dono não só da CNN, mas também da Time Warner. Sem falar nos outros jornais, como o New York Times, o Washington Post e o Boston Globe, que se tornaram protagonistas de uma perseguição contra a Igreja". De acordo com o cardeal é significativo que, enquanto a atenção da mídia estava voltada para o Oriente Médio, ''com todas as injustiças que foram feitas contra o povo palestino, imprensa e TV EUA obsessivamente se concentraram nos escândalos sexuais que aconteceram quarenta, trinta anos atrás. Por quê?" Pergunta-se Maradiaga. E indiretamente responde fazendo perguntas retóricas.
Qual é a Igreja que repetidamente recebeu Arafat e repetidamente reiterou a necessidade da criação de um estado palestino? Qual é a Igreja que não aceita que Jerusalém seja a capital indivisível do estado de Israel, mas que deve ser a capital das três grandes religiões monoteístas? Qual é a Igreja que não aceita projetos de família que não estejam em conformidade com o plano de Deus? É a Igreja Católica''. ''Se há padres ou mesmo bispos - afirmava o cardeal - que se mancharam de graves culpas devem ser punidos com as apropriados censuras canônicas e, se necessário, também devem enfrentar a justiça civil''. "Mas sem caça às bruxas, mesmo dentro da Igreja", acrescentava, "sem modalidades persecutórias por parte das autoridades civis, como ao contrário está acontecendo". (3)
Sobre essas declarações retumbantes, que por sua autoridade marcaram naquele momento uma linha de conduta, de defesa e de ataque por parte Igreja diante da avalanche de acusações sobre atos de pedofilia, o então especialista em Vaticano do National Catholic Reporter, John Allen Jr., assim escrevia em 19 de julho de 2002: "Em Roma sente um cheiro de antissemitismo na avaliação da crise dos abusos sexuais" (4).
O episódio do card. Oscar Rodriguez Maradiaga aqui narrado e documentado mostra que no início do milênio, a hierarquia católica, diante do crescendo impressionante de denúncias de crimes de pedofilia, tentou reagir de duas maneiras: em uma primeira hipótese tentando montar uma distração gigantesca, chamando em causa uma suposta interferência de lobbies judaicos; ou – segunda hipótese – tentado sair das dificuldades espalhando bobagens e demonstrando que não estava entendendo nada e que aos vértices da igreja faltava completamente uma capacidade coerente para reagir aos casos de pedofilia. As análises da época se dividiam, mais ou menos igualmente, entre essas duas interpretações.
A 15 anos de distância as coisas estão mais claras. Setores importantes e poderosos da hierarquia católica, partindo da Santa Sé, desde o início escolheram a política do encobrimento, porque desde o primeiro momento, com todas as informações confidenciais que eles tinham, perceberam que a pedofilia clerical era de enorme gravidade e quantitativamente muito difundida em igrejas particulares.
À hierarquia de então faltou uma lúcida consciência, mais tarde declarada por Bento XVI em 2010: os abusos sexuais na Igreja "tiveram consequências tão trágicas para as vidas das vítimas e das suas famílias e obscureceram a luz do Evangelho de tal maneira que nem séculos de perseguição haviam conseguido". (5)
(Com a colaboração de Francesco Gagliano)
Notas:
(1) Huffington Post - 6 de maio de 2010
(2) Declarações do Card. Rodríguez Maradiaga à revista 30Giorni, maio de 2002. O editor da entrevista é Gianni Cardinale. O texto agora não está disponível no arquivo on line da publicação. Atualização: o autor G. Cardinale, através de outro jornalista, nos enviou o link da entrevista completa, pelo que agradecemos.
(3) Mbr / Zn / Adnkronos - Cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga: Igreja católica sob julgamento, parece a época de Stalin e Hitler
(4) Comentário do National Catholic Reporter - John Allen, 19 de julho de 2002. A whiff of anti-Semitism in Rome’s assessment of sex abuse crisis
(5) Carta do Santo Padre Bento XVI aos católicos da Irlanda - Cidade do Vaticano, 19 de marco de 2010, Solenidade de São José
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A "cultura do encobrimento" em câmara lenta - Parte 2. A sistemática demolição das denúncias de abusos por parte da Igreja e a teoria do "lobby judaico" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU