21 Outubro 2023
"Uma Igreja que sabe ser diálogo pode conversar comigo, conosco, com quem não tem certezas graníticas, mas não recusa a busca da verdade ou das verdades, aquelas que gostaríamos sempre de encontrar na atitude da amizade fraterna de quem as anuncia neste tempo, certamente não com a presunção de um juiz 'fora do tempo'!", escreve Riccardo Cristiano, jornalista italiano, em artigo publicado por Settimana News, 18-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como é bastante evidente que nas dubia dos cardeais não existe dúvida alguma, apenas certezas, e como a sua segunda formulação é, para mim, até angustiante porque parece reduzir a fé a palavras cruzadas, sinto a necessidade de expressar toda a minha gratidão àqueles que dizem que devemos sempre seguir em frente para melhor entender a Palavra de Deus.
Quem, como eu, não está dentro da Igreja - nem sequer contra ela - percebe, na busca de quem realmente procura, com a respiração em suspenso, um plano divino na contínua evolução do mundo, o enorme mérito de não se considerar como Deus e de não considerar os outros como portadores de falsas crenças e, portanto, expressões de uma falsa humanidade.
O que mais me surpreende é o fato de aqueles que rejeitam a busca não estarem dispostos a reconhecer que a Igreja da Idade Média era profundamente diferente daquela das origens. Eles se iludem pensando que o poder dos tempos passados possa simplesmente retornar, voltando àquele modelo de Igreja.
Eles querem acreditar que, ao anunciá-la, a sua Igreja voltará a ser societas perfecta, de modo a perpetuar a experiência – aliás, apenas europeia - da Idade Média. Eles simplesmente não conseguem entender que, graças a Deus, aquele projeto desvaneceu para sempre.
O termo “modernidade” é banido dos ambientes contrários à sinodalidade pela única razão de rejeitarem a existência de “outros”, na forma de pluralidade: crentes e não crentes, diferentes por cultura, tão distantes a ponto de viverem num tempo diferente do nosso, uma vez que a história não corre linearmente, à mesma velocidade, em todo o globo.
Não se lamenta pela Idade Média por razões complexas, mas extremamente simples: no imaginário é o tempo em que o mundo inteiro coincide com o nosso mundo ocidental, um mundo com uma cultura única. E as próprias Cruzadas – de saudosa memória e invocadas pelos guardiões da societas perfecta− nada mais são do que a tentativa desesperada de se salvar da autodestruição e do fracasso: da queda da pia ilusão.
O Papa Urbano II, bem mais honesto e concreto que os seus seguidores, disse isso em Clermont: “Não vos detenha o pensamento de alguma propriedade, nenhuma preocupação pelas coisas domésticas, pois esta terra que vós habitais, circundada por todo lado pelo mar ou pelas montanhas, ficou estreita para vossa multidão, não é exuberante de riqueza e apenas fornece do que viver a quem a cultiva. Por isso vós vos ofendeis e vos hostilizais reciprocamente, vós vos fazeis guerra e com frequência vos matais entre vós mesmos. Cessem, pois os ódios intestinos, apaguem-se os contenciosos, aplaquem-se as guerras e sossegue toda discórdia e inimizade. Empreendei o caminho do Santo Sepulcro, arrancai aquela terra àquele povo celerado e submetei-la a vós."
O Papa nascido dos Francos dirigia-se sobretudo para os seus, para aumentar a afirmação continental. O plano de expansão e de submissão continuou com a transformação da unicidade de Deus na unicidade do Papa com o Dictatus Papae de Gregório VII. Não é difícil compreender porque, em tempos de poderes absolutos e de cismas, tenha sido escolhido esse caminho.
Quando o projeto medieval de submissão aos poderes absolutos de chocou com a resistência do Islã, então aflorou o “moderno”: o monismo universal do poder único é impossível, da mesma forma que é impossível uma Igreja que ensina numa só língua, se veste de uma só maneira, reconhece uma só cultura, a única “verdadeira”.
Obviamente a modernidade também nasceu dentro de uma ilusão totalitária: da convicção de ter descoberto a receita da felicidade, válida para todos, em todos os lugares, da mesma forma, graças às ciências. Se a lei da gravidade funcionava para todos os cantos do globo, as ciências sociais também deveriam ter funcionado em todos os lugares, para tornar a humanidade feliz segundo a única receita possível e válida em todos os lugares.
Porém, com a afirmação da modernidade, afirmou-se a alternativa do pluralismo. Paradoxalmente, hoje parece que apenas a Igreja conciliar de Francisco saiba como trazer o pluralismo – juntamente com religiões e culturas outras – para dentro da própria Igreja.
O pluralismo, na minha opinião, é o coração deste pontificado. A sua redescoberta do pluralismo “em Deus” recupera o erro da Torre de Babel: errada porque não existe um único pico para alcançar o céu da mesma maneira, no mesmo tempo e com a mesma língua!
O pluralismo é a essência da sabedoria divina: só renunciando ao monismo ideológico – inteiramente humano – poderemos apreendê-la.
Portanto – atendo-se aos temas, tão específicos, que as dubia tentam encerrar nas prisões das quais há muito saíram – a resposta da novidade do pontificado de Francisco é a substituição decisiva da ilusão ideológica pela prioridade do discernimento.
Não permite, por exemplo, que sejam transformadas em normas universalmente válidas as novidades de Amoris laetitia: nem todos os divorciados recasados devem ter acesso à comunhão porque, quando se supera a ideologia, não se assenta uma ideologia diferente, mas sim o discernimento efetivamente pastoral, afetivo, parte da vivência concreta das pessoas em suas consciências. O discernimento não se faz com ideias abstratas, mas com um profundo sentido de realidade e de humanidade. Só assim a Igreja pode tentar falar com os contemporâneos, pós-modernos, pós-ideológicos, em muitos casos, pós-crentes, pelo menos segundo as categorias tradicionais.
Sim, somos todos um pouco assim. Falo isso por mim: a condição pós-crente, pós-moderna, pós-ideológica é dolorosa e difícil, pede para ser mais uma vez “encantada”, fascinada, por uma narrativa teológica diferente. Eu ainda não escolhi o que quero, mas sei o que rejeito.
Rejeito o dogmatismo ideológico que torna, como acontece à noite, “todos os gatos pardos”, todos os divorciados iguais, todos os homossexuais viciosos ou depravados. Pergunto para alguns que escrevem ou subscrevem as dubia: vocês têm certeza? Vocês já falaram sobre isso com as pessoas? O que vocês sabem de suas vidas?
Uma Igreja que sabe ser diálogo pode conversar comigo, conosco, com quem não tem certezas graníticas, mas não recusa a busca da verdade ou das verdades, aquelas que gostaríamos sempre de encontrar na atitude da amizade fraterna de quem as anuncia neste tempo, certamente não com a presunção de um juiz “fora do tempo”!
A Igreja que vejo com prazer e interesse, para não afundar na absolutez da minha solidão, não divide a humanidade em categorias, em pessoas louvadas ou condenadas por definição: irrepreensível, casado, paroquiano fiel, assinante do semanário diocesano, etc.; mas é uma Igreja que escuta atentamente, com participação, as dúvidas, as renúncias, as derrotas, os anseios... tudo o que está guardado neste “eu” contemporâneo, isolado e desconectado.
As esperanças que, na minha opinião, muitos pós-crentes depositam no evento do Sínodo são as esperanças de quem procura uma amizade, não juízes certos de verdades eternas: amigos, amigas, que sabem acompanhar na difícil arte do discernimento sobre a vida e o mundo, para descobrir como se possa viver juntos, da melhor maneira, em paz, aceitando-nos com as nossas diferenças.
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Pluralismo e discernimento, coração do pontificado. Artigo de Riccardo Cristiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU