08 Setembro 2023
Em seu blog Come Se Non, 04-09-2023, o teólogo Andrea Grillo escreve: “Desde 1999, uma decisão sinodal tentou resolver um conflito interno à Igreja siro-malabar de Kerala, na Índia, com uma decisão salomônica. Como existem nessa Igreja dois costumes na orientação da celebração (que sinteticamente são chamados de ‘voltado para o povo’ e ‘voltado para o altar’), a decisão foi propor uma celebração ‘meio a meio’, em que se celebra a primeira parte da missa ‘voltada para o povo’ e a segunda, ‘voltada para o altar’”.
Grillo afirma que, “nos últimos anos, a tensão cresceu muito, a ponto de chegar a confrontos físicos, ao recurso à polícia e às escoltas armadas devido a decisões de caráter litúrgico, com revoltas populares e do clero”.
O que chama a atenção em toda essa diatribe, segundo ele, “é que quase a totalidade das posições oficiais assumidas (tanto das autoridades siro-malabares quanto do Vaticano) se limitam a uma linguagem funcional, diplomática ou formal, sem tocar nas verdadeiras questões teológicas e litúrgicas em jogo”.
Nos dias 20 e 21 de abril passado, foi organizado um congresso internacional especificamente dedicado ao tema. Em seu blog, então, Grillo apresenta a palestra que proferiu na abertura do evento.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A liturgia eucarística pode ser definida com esta expressão conciliar "per ritus et preces id (misterium eucaristicum) bene intelligentes” (cf. SC 48). A liturgia é a compreensão do mistério eucarístico através dos ritos e orações que toda a Igreja celebra, reunida em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Escolhi começar por essa definição, que extraí do primeiro documento conciliar do Vaticano II, dedicado precisamente à liturgia, para me focar imediatamente três aspectos sobre os quais gostaria de me deter na minha conferência. Eu vou anunciá-los já no início e depois vou retomá-los um por um. Em primeiro lugar, devemos compreender as novidades fundamentais que o Concílio Vaticano II e a reforma litúrgica trouxeram à Igreja Católica, em cuja comunhão também se encontra a tradição siro-malabar. Ao mesmo tempo devemos entender que a nova compreensão da liturgia implica também uma nova compreensão do ser Igreja, do que significa ouvir a palavra, celebrar o culto e viver a caridade (§.1). Nesse âmbito, podem surgir questões na passagem entre "diferentes formas" de orientação no culto, sobre as quais é necessário sobretudo salvaguardar as grandes escolhas qualificadoras do caminho pós-conciliar (§. 2). Uma reformulação teológica da questão hoje pode oferecer uma solução também para as contraposições mais radicais (§. 3). Esses 3 passos podem oferecer a oportunidade de encontrar uma mediação diferente em relação a uma solução salomônica, mas demasiado extrínseca, burocrática e artificial, que se revela contrária ao espírito da liturgia, tal como foi proposta, ainda que sinodalmente, nos últimos anos. Por isso, gostaria de convidá-los a seguir o meu raciocínio, despojando-nos daquelas leituras ideológicas que se escondem nas palavras que usamos para representar a sã tradição da Igreja à qual pertencemos. Desta forma, gostaria de contribuir para uma operação de "pacificação eclesial" através de uma "terapia linguística", à luz do caminho realizados nestes últimos 60 anos.
Não é errado pensar que o texto de Sacrosanctum Concilium seja a descrição mais completa da "igreja em oração". Essa descrição implica algumas passagens delicadas, que desde 1963 estão escritas na história da Igreja Católica Romana e de cada uma das Igrejas em comunhão com ela. Nestes 60 anos caminhamos de forma mais ou menos linear sobre estas três perspectivas, que têm uma importância absoluta, não apenas litúrgica, mas também eclesial:
A liturgia não é mais a "cerimônia confiada aos clérigos", mas a linguagem de todo o povo de Deus. Na celebração litúrgica, especialmente na missa, os primeiros sujeitos são Cristo e a Igreja (não o padre ou o bispo). A Igreja é sujeito como povo de Deus, sob a presidência de um ministro qualificado (bispo ou presbítero) e com a função ministerial que é mais ampla que a presidência. Essa noção alargada de liturgia implica uma mudança de perspectiva e de olhar: a celebração não é o ato de alguém, mas de todos. Para isso deve-se falar de "actuosa participatio", como de uma realidade que a reforma litúrgica tem a função de reconstruir.
A reforma litúrgica, que a Igreja romana e as igrejas em comunhão com ela realizaram, é um ato de serviço a essa nova realidade, que podemos resumir em uma única frase. Quando se celebra a missa, "todos celebram", mesmo que apenas um presida e muitos sejam os ministros. Isso implica uma "consciência eclesial" que sai das tentações clericais e confia a identidade eclesial a todo o povo de Deus. Isso, obviamente, diz respeito não só à liturgia, mas também à catequese e à caridade, ou seja, também ao munus docendi e ao munus regendi. Contudo, para nós interessa compreender que o papel específico da liturgia é aquele de exprimir e fazer experimentar essa identidade eclesial no espaço e no tempo, per ritus et preces.
Se participação ativa significa que "todos realizam a única ação comum", mesmo que em diferentes níveis de autoridade, é evidente que as "mediações corporais" dessa ação se tornam muito importantes. De fato, como veremos, muitas transformações ocorridas imediatamente após o Concílio moveram-se justamente nessa direção: isto é, em tornar visível e tangível essa "actuosa participatio", permitindo que toda a assembleia possa viver "pessoalmente" toda a sequência ritual. A reforma litúrgica trabalhou muito sobre o “tempo” e sobre o “espaço”. A renovada estrutura do ano litúrgico e o repensamento da arquitetura das igrejas fazem parte desse importante desenvolvimento da relação entre ação visível e fé na graça invisível, que sempre caracteriza a tradição litúrgica e sacramental cristã.
Para enfrentar esse desafio da “reforma” a Igreja Católica providenciou imediatamente, já em 1964, uma norma clara. De fato, lemos na Inter oecumenici 91 “Praestat ut altare maius exstruatur a pariete seiunctum, ut facile circumiri et in eo celebratio versus populum peragi possit”. A razão do altar "separado da parede" é que "se possa ficar/circular em volta" e se torne possível a "celebração para o povo". O texto de 1964 corresponde quase literalmente ao texto do Institutio Generalis Messalis Romani, edição de 2002, que diz o número 299 "Altare exstruatur a pariete seiunctum, ut facile circumiri et in eo celebratio versus populum peragi possit, quod expedit ubicumque possibile sit".
Isso indica um horizonte que se descortina a partir do texto da SC, que não fala concretamente da transformação do espaço celebrativo, mas da própria ação celebrativa. Como é evidente, essa novidade deparou-se com uma série de resistências com suas objeções. A resistência às novas lógicas passou sobretudo por um duplo imaginário: aquele da Eucaristia como “ação do sacerdote” e o do perfil do presbítero como “sacerdote da Eucaristia”. Quando se pensa assim, todo o fascínio da celebração eucarística tende a se enrijecer sobre a ação “do padre”. O missal de Pio V vivia dessa evidência, tornando efetivamente o povo um “mudo espectador” de uma ação atribuída quase exclusivamente ao padre, exceto pela “participação devota” na consagração. Uma certa forma de pensar a primazia da missa "para o altar" (no sentido antigo do termo, ou seja, com o altar não central, mas encostado à parede) traz consigo uma idealização da potestas sacerdotale, que tende a absorver todo o valor da Missa. A reforma litúrgica saiu desse "cone de sombra" que havia iniciado no final do primeiro milênio, na tradição latina.
No entanto, há uma segunda objeção, mais recente, que surgiu apenas a partir dos anos 1980, e que afirma que a "posição" do padre (ou bispo) deve compartilhar aquela do povo, estando "aquém" do altar, ou seja, "para o altar". Isso teria a vantagem de "abrir a assembleia" ao advento do Senhor, evitando que se feche sobre si mesma. Não seria importante "olhar-se na cara", mas "estar em caminho para o oriente". Uma outra variante seria a proposta por J. Ratzinger, ou seja, uma "orientação para a cruz" (colocada no altar), que superaria as contraposições e poderia ser considerada "a orientação interior da fé".
Aqui, no entanto, a consideração da tradição é fortemente restrita. Para sair dessas diatribes é preciso trabalhar a linguagem que usamos para falar sobre o que fazemos quando celebramos a Eucaristia. Por isso, na terceira parte do meu texto, que será também a mais ampla e mais criativa, tentarei orientar o nosso olhar e o nosso pensamento de uma forma diferente. Para caminhar rumo a uma reconciliação mediada por uma linguagem mais fiel ao que nos pede a ação ritual. Mudar a forma de olhar e mudar a forma de pensar implica em mudar a forma de falar!
Demasiadas vezes somos condicionados pelas palavras que utilizamos. Não devemos nos deixar impor palavras erradas por formas de pensar a Eucaristia que não são inteiramente adequadas. Na origem do mal-entendido, que hoje dilacera a experiência da Igreja siro-malabar, está uma linguagem bastante ambígua, ou seja, que diz uma verdade, mas não diz toda a verdade. Vamos propor uma breve história:
A redescoberta da centralidade da “missa com povo” obrigou-nos a repensar profundamente o espaço da celebração, recuperando a posição central do altar. A mudança de “orientação” depende de uma mudança de entendimento: a missa é um ato da “comunidade sacerdotal”. Assim, os "altares laterais" perdem valor e o altar-mor muda de forma.
A expressão que é usada imediatamente depois do Concílio, e que ainda hoje repetimos, indica uma "tendência" que então se iniciava. E utiliza as palavras que na época podiam ser melhor compreendidas. Mas a expressão "para que com ele se possa realizar a celebração para o povo", parece ser uma expressão que hoje merece um aprofundamento decisivo.
Certamente no debate pós-conciliar assumiram um valor simbólico e constituem uma forma de identificar, mesmo forçando um pouco, dois mundos e duas formas de celebração e de vida eclesial. Mas aqui gostaria de sinalizar um elemento que poderia aconselhar encontrar uma mediação "intrínseca" entre as duas tradições. Se examinarmos bem, a expressão "versus" não é de forma alguma exclusiva, exceto no caso do altar. Dizer “versus altare” significa excluir “versus populum”. O contrário não é verdade. De fato, quando se fala "versus populum" também se inclui "versus altare", porque o altar está "entre" quem preside e o povo.
d) Aqui me parece que as reservas em relação ao "versus populum", acusadas de "fechar a igreja sobre si mesma" ao invés de abri-la à transcendência de Deus (algo que ao contrário seria garantida pelo versus altare), é um argumento muito fraco, porque perde o valor "inclusivo" assegurado apenas pelo "versus populum" e não pelo "versus altare". Quem se vira para o altar e está de costas para o povo é obrigado, de tanto em tanto, a se virar. Quem se volta para o altar, além do qual está o povo, vive a realidade dos "circumstantes"! É simultaneamente versus altare e versus populum.
A redescoberta pós-conciliar da "missa versus populum" não se dá à custa do altar, mas recupera a necessidade de unificar, num só ato, a dupla mas não contraditória orientação para o altar e para o povo. Se o altar pode ser "circulado" pelo ato de culto, então a orientação para o altar e a orientação para o povo podem acontecer no mesmo ato. Em vez disso, a orientação "para o altar não separado da parede" pelo ministro e toda a assembleia cria uma possibilidade diferente, que introduz continuamente a necessidade de uma "reorientação versus populum" intermitente.
Esse embaraço de linguagem exige uma nova forma de falar e pensar.
A verdadeira questão a se colocar é: se o altar é realmente o centro, então pode fazer sentido que a alternativa seja se ficamos "diante" ou "ao redor" do altar. Se a posição do altar for central, conforme prescrevem as normas, a orientação "para o altar" é de todos. De quem preside e do povo. A alternativa não é versus populum ou verso altare, mas na forma de entender o "versus altare". Se o altar for central, todos estarão “em direção ao altar”! Porque todos serão "circumstantes" e "circumeuntes", todos estão e se movem ao redor do altar.
Assim como não foi possível para a Igreja romana sair das tensões causadas pela reforma litúrgica, permitindo que o rito romano da reforma e o anterior não reformado fossem celebrados na mesma paróquia, também não é possível que na mesma missa se possa encontrar uma verdadeira "paz espacial" celebrando uma parte "para o povo" e uma parte "para o altar". A solução de dividir a orientação entre liturgia da palavra e liturgia eucarística é uma ficção desprovida de fundamento histórico e até desprovida de objeto: seria curioso pensar que a liturgia da palavra fosse "para o altar" quando é pensada institucionalmente em relação ao ambão e não em relação ao altar! A liturgia da palavra em si nunca é versus altare. No entanto, é justo sinalizar que as duas liturgias (da palavra e da eucaristia) têm orientações distintas. Mas isso é "in re", não deriva de uma decisão sinodal, mas da própria realidade da Eucaristia. Na liturgia da Palavra estamos “ao redor do ambão” e na Liturgia Eucarística estamos “ao redor do altar”. Essa é a linguagem que também pode unificar a tradição celebrativa siro-malabar.
Não se deve raciocinar com a preposição "na frente de, diante de, para o" (que infelizmente também é usada no texto sinodal), mas com expressões como "em torno de, ficando ao redor de, movendo-se em torno de". Esse olhar é o certo, que pode superar as lógicas de uma oposição que resulta infundada. Para recuperar o sentido da "reforma litúrgica" e permanecer na lógica do caminho comum, devem ser criadas as condições da comunhão não com um compromisso para baixo, mas com um aprofundamento do caminho comum. Então, com uma lógica de misericórdia, não se deverá contrapor "para o altar" e "para o povo". Sendo a ação litúrgica uma ação “de todos os batizados”, prevê que em toda a celebração eucarística estejamos primeiro “ao redor do ambão” e depois “ao redor do altar”. O povo é o sujeito deste duplo "estar em torno". Nunca se vira as costas a ninguém e não se pode aceitar que uma primeira parte seja "para o povo" e uma segunda seja "para o altar". Em vez disso, o objetivo deverá ser alcançar uma comunhão mais profunda, permitindo que todos os bispos, todos os presbíteros, todos os religiosos e todos os batizados estejam, em sua Qurbana, primeiro reunidos em torno do ambão e depois reunidos em torno do altar. A Palavra e o Sacramento são o centro da orientação. Não há necessidade de voltar-se para o oriente nem elevar o olhar para a cruz: o Senhor fala do ambão e o Senhor age do altar: é o Crucificado e o Ressuscitado, é o Senhor presente e que vem, é o Senhor que adoramos como presente e o Senhor que esperamos como futuro. Com a sua Palavra a assembleia vive em comunhão, com o seu Corpo e seu Sangue anuncia a morte e o aguarda no final dos tempos.
Será possível mostrar misericórdia uns aos outros. Mas não "partindo ao meio" o único rito comum, mas suportando que alguns celebrem a mesma liturgia (os mesmos textos) com ações parcialmente diferentes. Não com um meio-a-meio que resulta artificial e não conforme à lógica litúrgica, mas com a possibilidade de que o altar, onde ainda não foi afastado da parede, permaneça na sua posição e conduza necessariamente a um "versus altare" que não pode incluir também o “versus populum”. A paciência nessa diversidade é a virtude a ser cultivada. Alterar o rito e o caminho da reforma de todos, para criar uma comunhão artificial e fictícia, é na minha opinião um beco sem saída.
Do vosso percurso na história siro-malabar podemos todos sair mais ricos: amadurece, em vós, devido a incompreensões, uma nova consciência útil para toda a Igreja. As expressões que os Padres que compunham o Consilium usaram em 1964 diziam uma novidade “em embrião” e a diziam com a expressão “versus populum”: não era uma revolução, mas uma melhor compreensão. Graças às reformas foram realizadas depois de 1964, até hoje, podemos reconhecer aquela linguagem como ainda pensada em termos que poderíamos definir como "clericais". O "povo" não é apenas "destinatário" da celebração do padre. O povo é “sujeito de celebração”, ainda que sob a presidência do bispo-padre e graças à mediação dos ministros. Uma assembleia reunida em torno do ambão e em torno do altar faz uma experiência na qual, dirigindo-se como sujeito Igreja ao grande mistério de Cristo, descobre Cristo Senhor como sujeito que doa a sua graça à Igreja. Um recurso arquitetônico (afastar os altares da parede) fez-nos amadurecer na identidade: transformou o "versus" num "ao redor". E fez isso sobretudo como experiência de uma Igreja "ao redor do altar", que está em comunhão com o seu Senhor. Ao mesmo tempo, recuperar também a experiência "ao redor do ambão" nos permite crescer ainda mais naquela plena "formação litúrgica" à qual o Papa Francisco nos chamou em sua carta eu Desiderio Desideravi, de onde retiro a citação do número 36, com a qual gostaria de concluir:
“os ministros ordenados desempenham uma ação pastoral de primária importância quando tomam pela mão os fiéis batizados para os guiar dentro da repetida experiência da Páscoa. Recordemo-nos sempre de que é a Igreja, Corpo de Cristo, o sujeito celebrante, não só o sacerdote. O conhecimento que vem do estudo é só o primeiro passo para poder entrar no mistério celebrado. É evidente que para poder guiar os irmãos e irmãs, os ministros que presidem à assembleia devem conhecer o caminho, quer porque o estudaram no mapa da ciência teológica quer porque o frequentaram na prática de uma experiência de fé viva, alimentada pela oração e não certamente apenas como obrigação a satisfazer”.
Não há mais uma alternativa entre "versus populum" e "versus altare". Se o sujeito celebrante é a Igreja, Corpo de Cristo, e não apenas o sacerdote, já não existe mais a alternativa entre povo e altar, mas apenas permanece a diferença (no tempo e no espaço) entre “circa ambom” e “circa altare”. A Palavra e o Sacramento orientam ao redor de si o povo de Deus, o corpo de Cristo, o templo do Espírito.
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Voltado para o altar ou para o povo? Falsas alternativas, soluções artificiais e novas linguagens: o caso da Igreja siro-malabar. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU