24 Março 2023
"Após dez anos à frente do bispado de Roma, os frutos colhidos da caminhada pastoral que o Papa Francisco vem peregrinando junto com o Povo de Deus são profundos e dinâmicos. No que se refere à fidelidade ao Concílio, Francisco se mostra aberto, mas não apenas. Está empenhado, e não parece ser um empenho fácil, em fazer da Igreja, a Assembleia do Povo de Deus, o lugar que revela nossa irmandade, o lugar da comunhão", escreve Ismael Oliveira, leigo, graduando em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e Francisco Leiva Neves Carvalho, presbítero da Diocese de Iguatu, CE, vigário na paróquia São Francisco, na área pastoral Trussu.
Quando o Papa Francisco escolheu o método, o jeito e a forma de trilhar e concretizar seu plano de pastoral para a Igreja Católica, havia ali um pano de fundo que naturalmente permanece assistindo a caminhada eclesial desde as conclusões do Concílio Vaticano II.
Francisco nunca esqueceu os ventos da “nova Igreja”, do florido aggiornamento, cujas bases estão nas primitivas comunidades cristãs, tornando não apenas nova, mas uma Igreja fiel ao projeto primeiro da experiência cristã. Podemos dizer, assim sendo e sem qualquer equívoco, que Francisco é anterior ao fato conclusão do conclave em 13 de março de 2013. Gestado em tempos anteriores, o pontificado do papa do “fim do mundo” nasce antes daquela data celebrada por todas e todos nós, justificando o empenho de nossa adesão ao que ele propõe e sugere.
Há muita convergência entre o que Francisco instiga para o desabrochar da Igreja em tempos atuais e as nossas compreensões e desejos, que muito baseados no próprio Concílio, mas também anterior a ele, no que se refere às ideias de eclesiologia, ecumenismo, leitura da bíblia e reforma litúrgica.
No passo em que celebramos os dez anos do pontificado do Papa Francisco como bispo de Roma, pretendemos aprofundar, por meio deste relato, algumas marcas do seu pontificado como adesão clara à reforma litúrgica, fato agregador das demais reformas, seguindo a leitura basilar de que, ao reformar a liturgia, o Concílio renovou a ideia de reforma do todo. É fato que Francisco abraçou essa causa, como dito, por ser um fruto do Vaticano II.
Ao participar da Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, em fevereiro de 2019, o papa retoma, no início do discurso, o número 48 da Constituição Sacrosanctum Concilium, que versa, que alude sobre a participação ativa, piedosa, consciente e plena dos fiéis na celebração, fixando a dimensão memorial na ação litúrgica. Ele recorda a SC justificando a necessidade da reforma da oração, mas com base nas origens da caminhada da Igreja, que guardam as primícias da fé. E é por isso que, ainda no discurso, diz: “Sabemos que não basta mudar os livros litúrgicos para melhorar a qualidade da liturgia”. Temos aqui uma referência daquilo que compreendemos como “liturgia conceitual”, costumeiramente denominada rubricista ou simplesmente fundamentalista.
A fala por si não é um rechaço à ideia da reforma dos livros, textos e rituais, que por sinal são necessárias com o avançar das mudanças e das dimensões que a inculturação, por exemplo, vai alcançando. Nesse gesto, retomando a reforma e salientando que não basta mudar o livro, ele reconhece a aposta que fazemos por uma celebração de encontro com Jesus, que provoca à experiência pascal e não à performance puramente rigorosa da regra. Percebemos que essa marca de satisfação na experiência dele também marca seu cotidiano, especialmente em gestos que demonstram um acesso à dimensão da vida na celebração.
Os gestos são importantes, pois imprimem e constituem, na celebração, aquilo que chamamos de rito. Por esse motivo, não é exceção incluir no rito o gesto que realizamos na vida, com nosso jeito de ser, possibilitando o acesso da nossa compreensão, nos convertendo, mudando nossas realidades e provocando uma implosão do novo que rompe da experiência orante.
Citando o Concílio, o Papa Francisco reafirma a necessária busca por fazer da oração a nossa força de transformação. A oração reflete nosso modelo estrutural de organização, decifrando como a dimensão da vida é compreendida e assumida pela comunidade dos que seguem Jesus. No discurso para a congregação do Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, é nessa ideia que ele se apega, sugerindo, como sempre, a motivação de uma comunhão eclesial entre as instâncias da Igreja, promovendo o diálogo e a sinodalidade. A sugestão é de uma oração como força orientadora de como podemos nos estruturar.
Ainda no campo dos gestos vivos, vitais e essenciais, Francisco busca sistematizar sua palavra, o que podemos entender como discurso, em suas atitudes, no rito, na celebração, nos encontros. O rito do lava-pés, na Celebração Vespertina da Ceia do Senhor, no noite da Quinta-feira Santa, além de uma recordação do gesto realizado por Jesus (na dimensão teológica, à luz do evangelho de João, a ideia do lava-pés atravessa também a ideia do serviço, da doação, compreendida mais adiante como exercício eucarístico), nos mergulha na proposta-serviço na gratuidade. Desde 2013, o Papa Francisco celebra o lava-pés com detentos e detentas em Roma.
Do gesto à prática pastoral, Francisco restitui o valor do rito como experiência de convergência entre o que é celebrado no ação litúrgica (a saber, como diz o Missal Romano: “Depois da homilia, o celebrante procede ao lava-pés no qual toma parte um grupo de fiéis, para lembrar o que fez Jesus na última Ceia, num ato de amor e de serviço para com os apóstolos”) e sua pretensão pastoral, inclusive anterior ao pontificado, de reestabelecer e reafirmar a dimensão preferencial da Igreja pelos pobres (lavar os pés de pessoas excluídas, desprovidas, encarceradas etc.).
Nesse sentido, podemos confirmar que a prática e a compreensão da lex orandi, lex credendi, dando à liturgia o lugar primeiro da teologia, dignifica a prática pastoral evangelizadora como fruto perene de uma fé celebrada, que antecede e prefigura as mudanças nos rumos estruturais e na dimensão missionária da Igreja. São palavras do próprio papa quando, em um curso para agentes da liturgia, em Roma, disse que ela “é a arte primeira da Igreja (a liturgia), aquela que a constitui e caracteriza” (Papa Francisco). Do rito à prática, Francisco reafirma em suas ações que o Concílio Vaticano II, pela SC, devolveu à liturgia o lugar de ponto alto de toda a ação da Igreja, sendo também, ao mesmo tempo, a fonte que mantém e nutre sua força (SC 10).
O Papa Francisco sempre se mostrou sensível à proposta da inculturação, à qual estabelece como “diversidade cultural no anúncio do Evangelho e na prática pastoral”. Não distante, demonstra claramente uma forte tendência ao que anteriormente recordamos sobre recuperar, na celebração liturgia, a capacidade de “curtir” o que nela acontece, a partir do que é tateado por nós nos sinais sensíveis, nos aproximando do mistério pascal, diante do qual mergulhamos na celebração. A liturgia, propõe o Vaticano II, conversa e proseia com outras tantas linguagens, por meio das quais acessamos outros saberes e expressões propriamente culturais, não resumidas unicamente ao que já está determinado pela imposição de algumas culturas sobre as outras.
Temos aqui uma valorização do dinamismo das linguagens, que também são símbolos. Assim, Francisco, também como citamos acima, por ser fiel às proposições do Concílio, não reconhece na liturgia o lugar da pura repetição desgastantes do gesto pelo gesto, ou ainda da palavra pela palavra, sem que isso não nos direcione à experiência pascal, em cada oração. Reconhecemos, e o papa também, que toda celebração transcorre no caminhar da história, nos sinais dos tempos de agora, no lugar onde ela acontece e é celebrada. Não fosse assim, aqui no Brasil, nesse Quarto Domingo da Quaresma que celebramos, como propõe o hinário da CNBB, não teríamos cantado, na abertura da celebração, o “samba” composto por Reginaldo Veloso, ainda nos anos 70, na versão do salmo 122(121), o conhecido “Fiquei foi contente com o que me disseram: ‘a gente vai pra casa do Senhor’”.
Não é puramente incluir o ritmo ou a melodia do mesmo modo como fazemos nas nossas festas e confraternizações, mas na raiz de nossa linguagem cultural, nos valendo do que é mais genuíno de nossa história, celebrar ao passo que vivemos, desde o nosso lugar. E o mais empolgante: o gesto sensível na celebração tem força dinâmica de transformar essa realidade, fazendo com que ela “transite de condições de vida menos humanas para condições de vida mais humanas”. Em suas viagens apostólicas, o Papa Francisco aposta no uso, geralmente, de vestes locais, quando não pelas vestes mais sóbrias, celebrando com aqueles e aquelas que vivem naquela realidade, assumindo uma postura de respeito à caminhada comunitária dos diversos povos e culturas.
A viagem ao Brasil, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, foi uma exceção. Mesmo com uma caminhada litúrgica de recepção do Concílio e um Hinário Litúrgico amplamente difundido nas comunidades, pouco se viu e ouviu de realidade brasileira nas celebrações, preparadas no estilo musical e estético das novas comunidades. Ao toque do que propõe o próprio papa, a liturgia sempre vai nos recordar de sua força inclusiva, jamais exclusiva. A caminhada anterior ao Concílio, que, enfim, o fez acontecer, e também o seu após, garantiu essa natureza participativa, portanto sinodal, que é eclesial, com alicerces na liturgia.
Após dez anos à frente do bispado de Roma, os frutos colhidos da caminhada pastoral que o Papa Francisco vem peregrinando junto com o Povo de Deus são profundos e dinâmicos. No que se refere à fidelidade ao Concílio, Francisco se mostra aberto, mas não apenas. Está empenhado, e não parece ser um empenho fácil, em fazer da Igreja, a Assembleia do Povo de Deus, o lugar que revela nossa irmandade, o lugar da comunhão.
Em tempos de Sínodo sobre a Sinodalidade, algumas propostas ousadas avançam no horizonte como o reforço à vocação batismal, o Domingo como lugar do batismo e da comunidade, o ecumenismo, a participação laical, sobretudo feminina, nos espaços de decisão. Francisco está bem disposto a conversar sobre isso, esperamos que nossas estruturas também.
CELAM. Conclusões de Medellín. São Paulo: Paulinas, 1979.
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Caminho trilhado indica caminho adiante: o pontificado do Papa Francisco na perspectiva da reforma litúrgica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU