01 Setembro 2023
"A societas inaequalis vive de duas diferenças incontestáveis: aquela entre homem e mulher e aquela entre leigos e clérigos. A primeira é considerada “natural”, enquanto a segunda é 'institucional'", escreve Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, publicada por Come Se Non, 30-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“…disse-vos que era humilde, mas não um portento de humildade.
Tinha o que era necessário para se pôr por baixo daquela boa gente,
mas não para se igualar a eles”
A.Manzoni, Os noivos, cap. 38
A Igreja viveu durante muitos séculos na convicção de que a “desigualdade” respondia à ordem quista por Deus, a ponto de identificar a própria diferença de Deus e perceber que a negação da desigualdade era a negação do próprio Deus. A nova sociedade, originária das revoluções industriais e políticas, fez da igualdade e da liberdade o seu próprio princípio, pelo menos no plano formal. Isso projetou imediatamente uma luz negativa sobre a defesa da autoridade e da desigualdade, que caracterizava o mundo anterior e dentro dele também a Igreja. Nesse embate, porém, acontecia uma passagem complexa, que com Ch. Taylor podemos chamar de transformação paradigmática da “sociedade da honra”, baseada na diferença, para a “sociedade da dignidade”, baseada na igualdade.
Uma testemunha que viveu tal passagem “ao vivo”, e que o fez com toda a participação e paixão possíveis, foi Alessandro Manzoni. O seu grande romance é uma reflexão profunda e sincera sobre essa “passagem entre mundos”. Com a vantagem de um distanciamento construído com a ficção literária, Manzoni delineia o desconforto produzido pela “sociedade da honra” diante do surgimento dos primeiros sinais de uma “sociedade da dignidade”. Justamente no final das peripécias do romance encontramos a descrição do novo “poderoso”, o Marquês, que substituiu Dom Rodrigo, no qual Manzoni destaca uma característica marcante:
“disse-vos que era humilde, mas não um portento de humildade. Tinha o que era necessário para se pôr por baixo daquela boa gente, mas não para se igualar a eles”.(cap 38)
Essa impossível “igualdade”, ressaltada por Manzoni entre 1825 e 1847, ainda era uma preocupação central para a Igreja Católica 60 anos depois, que sentia a necessidade de afirmar a sua própria identidade como “societas inaequalis”, fundada na diferença de Deus, que devia reproduzir-se na diferença entre a orientação dos clérigos e a obediência dos leigos.
Em singular consonância com essa paixão pela “desigualdade”, ainda em 1853, em “La Civiltà Cattolica”, apareceu a resenha de um livro que corria o risco de ser “posto no índice” naqueles anos, A cabana do Pai Tomás ("La schiavitù in America e la Capanna dello zio Tom" La Civiltà Cattolica, 1853, IV, 2, 2, 481-499), onde aparece uma série de pesadas considerações sobre a “servidão”. O livro, embora classificado como "não ruim", postulava estes juízos terríveis:
“O escravo negro ou de qualquer outra cor que não seja branca é, como o mancipio entre os pagãos, estritamente não pessoa, mas coisa, embora (entende-se) coisa viva e com movimento... uma raça, digamos, que, colocada no grau mais baixo da espécie humana, na tez tão negra que desagrada o ébano, na juba lanosa e aveludada, no rosto achatado e estranhamente obtuso, no olho que, quando não é estúpido, ou é feroz ou revela uma astúcia esperta, nas faculdades intelectuais lentas, circunscritas, inertes... Assim neles a condição de escravos parece ter vindo a confirmar o que a natureza havia disposto; e a repugnância que outras raças sentem ao se aproximar deles parece condená-los a uma servidão eterna. Pois todos veem que diferenças semelhantes não são eliminadas com os artigos dos códigos. Quer a escravatura seja ou não legalmente admitida num Estado da Confederação, será sempre verdade que um branco nunca se sentará na mesma mesa com um homem de cor, não quererá entrar na mesma carruagem com ele ou dividir o banco, não só no teatro, mas até no templo…”. A societas inaequalis não facilitava!
Da mesma forma, uma instrução da Congregação para o Santo Ofício de treze anos mais tarde (1866), estabelecia o seguinte:
"Embora os Pontífices Romanos tenham tentado de tudo para abolir a escravatura entre todos os povos, e isso se deve principalmente ao fato que já há vários séculos não se encontram mais escravos junto a muitos povos cristãos, no entanto [...] a escravidão, em si, não é de forma alguma repugnante nem ao direito natural nem ao direito divino, e pode haver muitas justas razões para isso, de acordo com a opinião de respeitados teólogos e intérpretes dos cânones sagrados. De fato, a posse do senhor sobre o escravo nada mais é do que o direito de dispor para sempre do trabalho do escravo, para suas próprias comodidade, as quais é justo que um homem forneça a outro homem. Segue-se que não é repugnante ao direito natural nem ao direito divino que o servo seja vendido, comprado, doado. Portanto, os cristãos… podem licitamente comprar escravos, ou entregá-los em pagamento de dívidas ou recebê-los como presentes, sempre que estejam moralmente certos de que esses servos não tenham sido tirados do seu legítimo senhor nem arrastados injustamente para a escravidão... porque não é lícito comprar, sem a autorização do proprietário, bens alheios, tirados por roubo".
Pio X a afirma ainda em 1906 (Vehementer nos), mas também hoje muitos fiéis estão convencidos de que a Igreja Católica só possa existir como "societas inaequalis". No entanto, a Igreja Católica, quando se interpretou como sociedade inaequalis acreditou salvar a diferença de Deus ao salvaguardar duas diferenças estruturais para a sociedade da honra: aquela entre clérigos e leigos e aquela entre homens e mulheres. É interessante notar que no limiar da ordenação, ou seja, entre a aquisição da autoridade e a condição de obediência, pela tradição existia uma série de impedimentos que impediam o sujeito de ter acesso à autoridade. Mas se havia remédio ou emancipação para a incapacidade, a escravidão, o homicídio, a condição de filho natural ou de portador de deficiência, para o sexo feminino não. A societas inaequalis vive de duas diferenças incontestáveis: aquela entre homem e mulher e aquela entre leigos e clérigos. A primeira é considerada “natural”, enquanto a segunda é “institucional”.
A resistência a essas diferenças não terminou com o fim da societas inaequalis, com a superação da escravidão e da sociedade classista. Não é por acaso que o projeto de redescoberta de uma dimensão “sinodal” da Igreja esbarra precisamente contra essas duas resistências estruturais: por um lado, a diferença entre clérigos e leigos, e pelo outro, entre homens e mulheres. O progresso numa Igreja, que partilha uma coparticipação no governo da Igreja de forma mais estrutural, implica uma revisão profunda das duas oposições que caracterizaram teologicamente pelo menos o último milênio. Esta não é de forma alguma uma tarefa simples. Porque, por um lado, os “leigos” caracterizam-se precisamente pelo fato de “não ter a autoridade dos clérigos”; e por outro lado, as “mulheres” caracterizam-se pelo fato de “não ter a autoridade dos homens”. Se mantemos essa dupla diferença “ontológica”, cada palavra sobre o Sínodo resulta mera retórica e conversa sem fruto.
Desse pressuposto deriva uma dupla consequência curiosa: por um lado, a pretensão de que, para compreender e justificar essas diferenças, não se raciocina em termos de autoridade ou poder, mas em termos de “serviço”. Por outro lado, que a urgente redescoberta da fraternidade possa de alguma forma desafiar a liberdade e a igualdade. Examinemos brevemente esse duplo e instrutivo paradoxo.
– Por um lado, a substituição do “serviço” pelo “poder” não resolve muito, nem na forma de pensar a diferença entre leigos e clérigos, nem na forma de conceber a diferença entre homens e mulheres. O exercício da autoridade no serviço é um fator discriminatório que ainda hoje exclui, de fato, uma grande parte dos sujeitos das decisões eclesiais. Em vista dessa perspectiva falar em autoridade, poder, ministério ou serviço pouco muda.
– Não devemos esquecer que a “fraternidade” pôde integrar em sentido positivo a injustiça produzida pela falta de liberdade e pela desigualdade. Não causa surpresa que um mundo que descobriu a dignidade universal e a liberdade de todos os homens e de todas as mulheres tenha, durante um certo tempo, colocado entre parênteses a lógica fraterna. Embora esta, como a Fratelli tutti denuncia abertamente seja uma ilusão, é preciso reconhecer que a fraternidade na sociedade da dignidade não é mais uma válvula de descarga para as injustiças produzidas pelas diferenças, mas deve encontrar novas razões e novos ideais para que a sociedade não caia na indiferença.
Entre os maiores desafios que o caminho sinodal nos pede para enfrentar está precisamente aquele da superação convicta e não ideológica da estrutura “de honra” da ecclesia, para descobrir como, na “sociedade da dignidade”, seja possível reconhecer a grandeza da liberdade e da igualdade de todos os homens e mulheres, ganhando uma nova evidência de ser “irmãos e irmãs”, não como o corretivo das injustiças sociais, mas como a fonte mais autêntica e humanamente menos arriscada de ser livres graças à diversidade e de ser iguais graças à diferença. Como o Marquês sucessor de Dom Rodrigo, a questão de poder ficar acima ou poder ficar abaixo, mas nunca se igualar continua a ser decisiva também para a autointerpretação que a Igreja dá de si mesma e para superar a pretensão e/ou presunção de poder se identificar como “societas inaequalis”.
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A tentativa da “societas inaequalis” e o desafio sinodal. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU