22 Agosto 2018
“A boa notícia é que não começamos do zero a construir o catolicismo pós-moderno. Muitos grupos — de base e/ou comunidades eucarísticas, grupos religiosos de mulheres, capítulos do Dignity, entre outros — têm experimentado novas formas de ser Igreja por décadas. A teologia sacramental e a eclesiologia necessárias para desmantelar o sistema hierárquico e substituí-lo por estruturas igualitárias, globalmente conectadas e com bases funcionais de acordo com o Evangelho já consta na literatura”, escreve Mary E. Hunt, teóloga feminista e co-fundadora e co-diretora da Women's Alliance for Theology, Ethics and Ritual (WATER), em Silver Spring, Maryland, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 21-08-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O suposto e reiterado abuso de poder de Theodore McCarrick sobre os subordinados (não esquecendo um caso de abuso de menor, mas concentrando nos casos relacionados ao trabalho no momento) aumenta o espectro do clericalismo e implora por mudança.
O teólogo e padre Bryan Massingale concorda com o cardeal de Chicago Blase Cupich que o sentimento de ter direitos que prevalece entre alguns homens ordenados poderiam levar a comportamento de exploração. Ambos concordam que a questão não é se os homens são gays ou hetero (ou, devo acrescentar, algo além desse quadro binário), mas se têm, em virtude de seu status clerical, acesso a privilégio e poder dentro da comunidade eclesiástica que podem livrá-los de prestar contas.
Massingale e Cupich citam que o clericalismo é o problema. Eu concordo até certo ponto, mas acho que o problema é mais profundo, na verdade está localizado na base, enraizado na bifurcação entre clérigos e leigos que embasam a instituição Católica Romana.
Esta estrutura de cima para baixo, dividida entre clero e leigos, condiciona relacionamentos e funções na Igreja. O Catecismo da Igreja Católica diz que a ordenação "confere um caráter espiritual indelével" a um padre que "não pode ser repetido nem conferido para um tempo limitado”, que “fica para sempre” (1583). O padre é considerado ontologicamente diferente do leigo. Seu lugar na estrutura hierárquica reflete essa diferença. Seus papéis como celebrante sacramental e tomador de decisões são contingentes.
Além disso, em dioceses e ordens, a instituição que paga, alimenta e inclusive o enterra é construída para manter o bem-estar da instituição e de si próprio; espera-se que tenha lealdade semelhante à instituição.
Não admira que os bispos e superiores tenham transferido, acobertado e protegido os criminosos do clero. É simplesmente assim que o sistema funciona, não é um caso raro e anormal como eu esperaria que algum participante honesto poderia dizer. O desastre da Pensilvânia é prova disso. Mas é possível mudar. Mesmo que todos os bispos dos Estados Unidos renunciassem (ou tivessem de sair) e fossem substituídos por outros clérigos, prevejo que pouco melhoraria. A estrutura, não apenas os indivíduos que cometem erros, é o problema, e estruturas podem mudar.
A ordenação é a linha vermelha brilhante de divisão deste esquema. Imagine uma pirâmide com uma linha um pouco abaixo do topo, que é onde está no clero no sistema eclesiástico. Os números estão bem abaixo de 1% dos bilhões de católicos, mas este sistema acaba dividindo a comunidade em estratos muito desiguais.
A teóloga bíblica feminista Elisabeth Schüssler Fiorenza convenientemente chamou isso de “kiriarcado” para sinalizar as muitas formas de "domínio" dos que têm privilégios de raça, gênero, classe, entre outros, e também, nesse caso, clerical. O que está em questão é a estrutura e não apenas o abuso; o sistema clerical/leigo, não apenas o clericalismo.
O caso McCarrick deixa isso muito claro. Como observou o padre jesuíta Thomas Reese, "a punição eclesial normal para sacerdotes que abusam de crianças é expulsão (excomunhão) do sacerdócio".
Em outras palavras, o pior que pode acontecer a McCarrick é ser excomungado, ou seja, ter de deixar o pedestal clerical.
Sendo claro, por suas muitas e variadas acusações de transgressão, o pior que pode acontecer é ele passar a ser como a maioria de nós, devendo viver de forma decente sem o status clerical. Ele será de novo o que era quando foi batizado: leigo.
Ouso dizer que há destinos piores e punições mais severas.
Claro que para os sacerdotes excomungados há outras consequências, principalmente de questões econômicas e reputação. Mas as raízes de todos estão na mesma estrutura.
A linguagem usada pela Congregação para a Doutrina da Fé não é ao acaso na redação das normas para "redução [ênfase nossa] ao status de leigo, dispensando das obrigações ligadas à ordenação sagrada". É para isso que serve. Tenho certeza de que é assim que seria recebido por pessoas como McCarrick, cujas décadas de acesso irrestrito às crianças, presunção de virtude pessoal sem provas e incontáveis oportunidades de se envolver em discurso religioso, político e social os condiciona a sentidos irrealistas de si mesmos.
Mas quando tudo isso acabar, em círculos religiosos, grande parte dos crimes hediondos e dos terríveis atos de má fé dos sacerdotes farão com que voltem ao status de leigos, com o qual o resto das pessoas vive a vida inteira. Algo está muito errado neste panorama.
Não é a minha intenção acusar e condenar Theodore McCarrick (agora cuidadosamente chamado "arcebispo" em vez de "cardeal" pelos colegas eclesiásticos, um lembrete sutil de que perdeu apenas o título a que renunciou, não seu privilégio eclesiástico, como o direito a vale-refeição). Pelo contrário, quero indiciar todo o sistema eclesiástico que cria as condições para tal desigualdade. O sistema é injusto para todos, embora de forma diferente dependendo da posição, incluindo até mesmo McCarrick na velhice.
A boa notícia é que não começamos do zero a construir o catolicismo pós-moderno. Muitos grupos — de base e/ou comunidades eucarísticas, grupos religiosos de mulheres, capítulos do Dignity, entre outros — têm experimentado novas formas de ser Igreja por décadas. A teologia sacramental e a eclesiologia necessárias para desmantelar o sistema hierárquico e substituí-lo por estruturas igualitárias, globalmente conectadas e com bases funcionais de acordo com o Evangelho já consta na literatura.
Esses novos modelos suprem as necessidades dos católicos da atualidade e, se houver algum, dos católicos do futuro. Seria um legado digno dos melhores momentos de McCarrick como ser humano sem apagar seus pecados como clérigo. E poderemos verdadeiramente receber a todos cantando "All Are Welcome".
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Mudança real contra abuso começa com estrutura dos leigos e clero da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU