A partir da experiência missionária em Moçambique, IHU promove debate sobre a realidade da África e de um povo capaz de resistir, lutar e enfrentar os desafios de nosso tempo
Quando pensamos em África – aliás, reduzindo esse imenso continente de mais de 30 milhões de quilômetros quadrados e 54 países a uma massa homogênea de gente –, logo imaginamos pobreza e fome, gente precisando de ajuda. O sentimento pode até ser recheado de boas intenções, mas, no fundo, reedita um pensamento colonialista que marcou o continente e sufocou a história de diversos povos. “Existem de fato várias Áfricas. Mas não devemos perder de vista a dimensão continental dessa longa cronologia. A história da África foi muitas vezes fragmentada e escrita baseada em preconceitos, principalmente europeus”, observa o filósofo senegalês Souleymane Bachir Diagne, hoje com 67 anos, em entrevista publicada pelo IHU.
Em suas reflexões, Souleymane Bachir Diagne nos convida a olhar para esse lugar não como carência, mas como parte constitutiva dos próprios seres humanos, e até da vida, no planeta. “Não apenas a vida humana começou na África, mas tudo se passa como se houvesse no continente um formidável centro de criação contínua da diversidade de seres vivos, o que eu chamo de elã vital na África. Isso se traduz em uma grande diversidade genética, vegetal e humana, que obviamente se deve à geografia particular do continente. A multiplicidade de povos e línguas manifesta essa mesma vitalidade”, sugere. É nesta mesma linha que vai Lewis Gordon, professor de Filosofia e Estudos Africanos da Universidade de Connecticut, nos EUA. “Se tomarmos a África como exemplo, ou a África Atlântica, significa que devemos levar a sério os povos que lá habitavam: fulânis, iorubás, igbo. Muitos desses povos foram sequestrados e transformados no que chamamos de povos negros. Mas é preciso entender que não foram somente eles”, diz, em conferência realizada no IHU.
Alex Zanotelli, missionário comboniano que por anos atuou no Sudão, em entrevista concedida ao IHU em 2017, observou que, na atualidade, é preciso desconstruir o que chama de neocolonialismo neoliberal. “Nada mais é do que o triunfo do mercado global. A África está cada vez mais presa à cobiça do Ocidente, mas também de países como China e Índia. A África é o continente crucificado”, explica.
Olhar a cultura e o passado destes povos africanos é fundamental, mas também é preciso ter em perspectiva a realidade presente e esta, sim, é marcada pela carência e até pela fome. É como um jogo de desconstrução de um passado roubado e a construção de um futuro, mas não com este olhar neocolonizador. Por isso é preciso um outro olhar, um acompanhar.
O modo de vida da população africana diz muito sobre a história e a cultura da humanidade na Terra | Foto: CNBB-Sul 3
É nesse sentido que a Igreja Católica no Brasil tem conduzido as chamadas “missões ad gentes”, missão para os povos, em tradução livre. Uma dessas missões ocorre em Moçambique, que fica no sudeste da África. “A missão é transformadora. Para isso, precisamos primeiro passar por um processo de ‘amolecimento’. Permitir-se desconstruir e olhar sob outro ponto de vista. Colocar abaixo a Igreja que segue colonizando, o missionário como portador de Deus, e a missão como via exclusiva de salvação”, observa Victória Holzbach, missionária leiga que atuou em Moçambique, em relato enviado ao IHU.
Mapa: Unilab
Mas no que consiste uma missão humanitária em pleno século XXI, superando esta lógica de colonização? E qual o papel da Igreja neste contexto?
Estas e outras questões orientarão o debate promovido pelo IHU. Na próxima quinta-feira, dia 17-08-2023, a partir das 17h30, ocorrerá o encontro intitulado “Um Olhar sobre a África a partir de Moçambique – testemunhos, perspectivas e limites”. Será um debate via videoconferência transmitido pelos canais do IHU nas redes sociais, e contará com a presença de três missionários: Isaque Gomes Correa, que como voluntário atuou em Moçambique e hoje atua no IHU; Lourdes Dill, religiosa da congregação Filhas do Amor Divino – FAD; e dom Luiz Fernando Lisboa, bispo da Diocese de Cachoeira de Itapemirim, no Espírito Santo.
Natural de São Paulo das Missões, no Rio Grande do Sul, é religiosa da Congregação das Filhas do Amor Divino – FAD. Atuou em diversas cidades gaúchas, vivendo mais de 30 anos em Santa Maria, cidade que esteve sempre envolvida no Projeto Esperança/Cooesperança, setor vinculado ao Banco da Esperança da Arquidiocese de Santa Maria. É agente Caritas há mais de 40 anos, período em que também atua na área da economia solidária.
Irmã Lourdes (Foto: acervo pessoal)
Graduada em Economia Doméstica de Extensão Urbana e Rural, possui especialização em Movimentos Sociais, Organização Popular e Democracia Participativa, pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Realizou inúmeros cursos relacionados a Teologia de Libertação, cooperativismo, economia solidária, agricultura familiar, ecologia, políticas públicas, segurança alimentar, desenvolvimento Sustentável, movimentos sociais, entre outros. A irmã também é reconhecida pelas suas contribuições na organização de centenas de grupos que atuam na área de economia solidária e agricultura familiar.
"Muita gente pequena em muitos lugares pequenos, fazendo coisas pequenas mudarão a face da Terra", é uma das diretrizes básicas da vida e da atuação da Irmã Lourdes Dill. Ela é uma pioneira na atuação junto o cooperativismo popular. Durante mais de duas décadas ela coordenou o no Projeto Esperança/Cooesperança, com sede em Santa Maria, RS, "atuando em 34 municípios. No território da cidadania são mais de 5 mil famílias beneficiadas, em um universo de mais de 23 mil pessoas e 260 grupos organizados trabalhando em forma de feira" (entrevista com Lourdes Dill, que pode ser conferida aqui). Ela integrou o Conselho Econômico e Social do Rio Grande do Sul. Ela com mais três coirmãs estão partindo para Moçambique assumindo uma nova missão naquele país.
Bispo na Diocese de Itapemirim, no Espírito Santo, cursou Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR e Teologia no Instituto Teológico São Paulo – ITESP. Possui especialização em Liturgia e Missiologia, pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, e mestrado em Teologia Pastoral pela PUCPR, onde também foi um dos coordenadores do Curso de Especialização em Missiologia.
Dom Luiz Fernando Lisboa (Foto: CNBB-Leste 2)
No início de 2001, foi como missionário ad gentes para a Diocese de Pemba, em Moçambique, onde trabalhou por oito anos. Em 2013, foi nomeado pelo Papa Francisco como bispo de Pemba. Na Conferência Episcopal de Moçambique foi secretário-geral e coordenador do Departamento Social. Em 2021, foi nomeado bispo da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim, onde atua hoje.
D. Luiz Fernando Lisboa participou do evento "Religiões e dignidade humana: da indiferença à defesa dos direitos humanos", promovido pelo CEPAT, parceiro estratégico do IHU. O vídeo do evento pode ser acessado aqui.
Tradutor e revisor de textos, é graduado em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Em 2021, concluiu mestrado em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale. Atuou em Moçambique no período de 2007 e 2008, como voluntário internacional e publicou artigos em jornais e revistas locais e nacionais sobre cultura, linguagem e identidade.
Isaque Gomes Correa (Foto: acervo pessoal)
Entre suas publicações, destacam-se: "O ser do homem: razões do pessimismo e do otimismo na contemporaneidade" (EDIPUCRS, 2015; reimpresso em 2017), "Revisão de textos na era digital: o que e como revisar" (PUB Editorial, 2019) e "Vida social em Memórias póstumas: dissimulação, encenação e espetáculo" (PUB Editorial, 2023). É revisor das publicações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
A relação da Igreja no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, com Moçambique iniciou em 1989, a partir de uma visita de dom Francisco Silota, bispo auxiliar da Arquidiocese da Beira, em Moçambique. Foi a partir de seus relatos da vivência na África que o episcopado gaúcho resolveu abraçar a missão junto ao povo moçambicano. Em 1993, dom Laurindo Guizzardi e a irmã Amalia Vivian, encarregados do Setor das Missões do Regional Sul 3 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, viajam a Moçambique para, de perto, verem como melhor poderiam servir.
Dom Laurindo em meio a famílias moçambicanas | Foto: CNBB-Sul 3
Depois de percorrerem 11 dioceses em Moçambique e estabelecerem uma relação com as comunidades locais, em julho de 1994, foi enviada a primeira equipe missionária do Rio Grande do Sul para Moçambique. Inicialmente, foram apenas um padre, duas religiosas da congregação das Irmãs Bernardinas e uma religiosa da congregação Irmãs Missionárias de Santa Terezinha. Em vários locais da Arquidiocese de Nampula e de Diocese de Gilê (Zambézia) os missionários do Regional Sul 3 estiveram atuando.
A partir do ano 2000, a missão do Regional Sul 3 firmou seu trabalho nas Paróquias de São Miguel Arcanjo, em Micane e São Paulo Apóstolo, em Larde, com sede na Vila de Moma, em Moçambique. Desde 1994, foram enviados 69 missionários e missionárias para Moçambique, entre eles leigas, leigos, padres, diáconos, seminaristas, religiosas e religiosos. Agora em outubro, saem do Rio Grande do Sul mais seis novos missionários e missionárias com destino a Moçambique. Dois vão para Moma, na missão já conduzida pelo Regional Sul 3 da CNBB. Outras quatro religiosas da Congregação das Filhas do Amor Divino – FAD, entre elas a irmã Lourdes, iniciarão uma nova missão em Micane.
O diálogo e os laços que se estabelecem com a população local são fundamentais para a prática de missão | Foto: CNBB-Sul 3
Victória Holzbach é uma jovem de 32 anos, com um sorriso largo e um olhar profundo. Quem a avista de longe percebe uma típica gaúcha com descendência europeia. No entanto, assim que essa jornalista nascida em Passo Fundo abre a boca é possível perceber que padrões, etnias, fenótipos e biótipos têm pouca importância para ela. O que quer mesmo é estar com gente, servir e seguir uma tal ética de Cristo, aquele que ensina a missionar e olhar pelos necessitados. Foi esse desejo que a fez aceitar viver em Moçambique, onde esteve de 2016 a 2019. De volta ao Brasil, segue trabalho pelas missões, como ela diz, “em todo lugar que estivermos, seja no meu próprio chão ou além-fronteiras”.
Confira o relato desta jovem ao IHU sobre o que é ser missionário num mundo como o que vivemos hoje.
Victória atuando com crianças em Moçambique | CNBB-Sul 3
“Ser missionário é compreender que Deus nos chama e conta conosco para a missão D’Ele em todo lugar que estivermos, seja no meu próprio chão ou além-fronteiras. Essa missão que nos é confiada precisa passar longe das realizações pessoais, dos nossos egos humanos ou mesmo da pretensão de deixar grandes obras ou marcas. O mandato de Deus é para que, em atitude permanente de saída, sejamos anunciadores e promotores da paz, da justiça e da vida.
Por isso, ser missionário é olhar e escutar a realidade com os ouvidos do coração, sentir e pensar com as pessoas – especialmente as mais vulneráveis, e agir sempre em favor da vida abundante anunciada e desejada por Deus a todos nós.
A missão é transformadora. Para isso precisamos primeiro passar por um processo de ‘amolecimento’. Permitir-se desconstruir e olhar sob outro ponto de vista. Colocar abaixo a Igreja que segue colonizando, o missionário como portador de Deus, e a missão como via exclusiva de salvação.
O missionário, a missionária, precisa deixar o escudo de lado também para se reconhecer frágil, humano e limitado. Isso nos ajuda a ser um sujeito diferente e a mudar nossos paradigmas. Por outro lado, perceber que qualquer pouco que somos ou oferecemos de nós mesmos é capaz de ajudar ou significar para alguém, tem lá o seu potencial de conversão. Se reconhecer capaz de ser para o outro um sinal, ainda que pequeno, de alegria, esperança e de vida.
Também acredito muito na interculturalidade como um caminho de transformação, não só pessoal, mas de toda a missão proposta e vivida pela Igreja hoje. Reconhecer na pessoa e na cultura do outro as inúmeras expressões de Deus manifestado nas relações, na história, nos ancestrais, no cheiro, no som, no toque do batuque, no riso das crianças, no grito de alegria das mulheres e em tantas outras expressões.
Em mim, a transformação passou e ainda passa muito por isso. Compreendi ali que o Deus que caminha com seu povo se manifesta nas relações, nas partilhas, no tempo não medido pelo relógio. Percebi que há infinitamente mais para aprender do que para ensinar. Moçambique me abrigou como casa e o povo macua me acolheu como família”.
Para Victória, a missão é doação, mas o missionário também recebe muito | Foto: | CNBB-Sul 3